Por Adriano Miranda Lima[ii]
Um
pouco por todo o lado, o debate político tem vindo a degradar-se a olhos vistos
nos regimes democráticos, fenómeno que suscita mais preocupação nas sociedades
europeias ocidentais porque nelas foi onde o Estado se fundou na mais bem
conseguida intermediação entre o direito, a moral e a liberdade. É onde a
concepção abstracta da liberdade – filha dilecta da democracia − é
criteriosamente modelada pelo instrumento jurídico de coerção, criando-se assim
condições para que a liberdade do cidadão se circunscreva nos limites em que
não interfira com a liberdade alheia. Aqui reside uma prerrogativa essencial do
estado de direito, sem o que seria como viver num estado de natureza, onde tudo
fica à mercê da força ou do arbítrio.
De
facto, assiste-se, hoje, a situações que desprestigiam a democracia, provocam
atrições deletérias e corroem a coesão social em torno do que é fundamental.
Tal acontece não só na casa mãe da democracia como em outros cenáculos. O
discurso político é normalmente dogmático, poucas vezes conciso e quase nunca
axiomático, como que votando Aristóteles às urtigas, seja pela semântica, seja
pelos decibéis vociferados. Em vez de debates na sua verdadeira acepção, com
fecunda troca de ideias e confronto de opiniões primando pelo construtivismo, o
que se vê são discussões iradas e exaltadas, com um histrionismo por vezes
apalhaçado por parte de alguns actores. Nem sequer a sensatez permite
reconhecer que, pela lei natural, ninguém pode ser tão imaculadamente detentor
da verdade ou senhor de virtudes sacrossantas, nem o outro pode ser tão falho
de razão e lucidez. Se assim fosse, os problemas seriam de fácil solução porque
bastaria circundar os presumidos iluminados num espaço inviolável e
incontaminável e sujeitar a uma quarentena os supostamente deserdados. Quando
hoje ocorre a discussão sobre os limites da liberdade de expressão, apercebe-se
de que faltará, talvez, uma harmonização dos significados e dos conceitos, o
mesmo é dizer uma compatibilização entre o direito positivo − fruto de um
ordenamento jurídico, e o direito natural – princípios universalmente
reconhecidos pela razão.
Mas
algo parece ter piorado nos últimos tempos quando o abuso da liberdade de
expressão transcende o debate político e se converte, lateralmente, em atitudes
reprováveis – piadas de racismo e misoginia − nos bastidores e corredores do
Parlamento, dirigidas a deputadas negras, lésbicas ou gordas, de forma mais ou
menos dissimulada. As denúncias foram feitas por duas deputadas de esquerda e
visaram o terceiro partido mais votado. É a evidência de que o nível e a
qualidade dos representantes do povo na casa mãe da democracia já não são o
mesmo de antes, sobretudo desde que ganhou maior expressão eleitoral o actual
partido populista.
Constata-se,
assim, que o regime democrático gera um paradoxo quando não evita que o uso
espúrio e incontrolado da liberdade ataque os seus alicerces. Deste modo,
pergunta-se se a concepção abstracta da liberdade não deve atentar numa
permanente reavaliação da consistência do vínculo jurídico e filosófico que a
prende estruturalmente à democracia. Claro que sim, pois não o fazer é
consentir a intrusão de Cavalos de Tróia no reduto da democracia. É que a
corrosão do debate parlamentar nunca foi tão notória, parecendo haver uma
estratégia concertada para descredibilizar a democracia em prol de uma qualquer
forma de autocracia. Os seus agentes estão identificados, uns agindo com mais
estrépito e visibilidade, outros mais insidiosamente. A solução do problema caberá
acima de tudo ao povo, mediante o escrutínio eleitoral, e aí pouco poderá fazer
o legislador ou a conciliação entre o direito positivo e o direito natural, de
onde se conclui que cada povo tem a democracia que merece, dado que ela é e
será sempre uma obra inacabada. Até porque, conscientemente ou não, o povo pode
mesmo sentenciar o fim da democracia por via eleitoral, o que confere toda a
actualidade ao paradoxo apontado por Karl Popper no seu livro “The Open Society
and Its Enemies”. É bom que os democratas não se desliguem de uma pedagogia
cívica pró-activa e constante sobre o que deve ser uma cidadania consciente e
responsável.
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