O paradoxo da democracia[i]

segunda-feira, 3 de junho de 2024

 Por Adriano Miranda Lima[ii]

Um pouco por todo o lado, o debate político tem vindo a degradar-se a olhos vistos nos regimes democráticos, fenómeno que suscita mais preocupação nas sociedades europeias ocidentais porque nelas foi onde o Estado se fundou na mais bem conseguida intermediação entre o direito, a moral e a liberdade. É onde a concepção abstracta da liberdade – filha dilecta da democracia − é criteriosamente modelada pelo instrumento jurídico de coerção, criando-se assim condições para que a liberdade do cidadão se circunscreva nos limites em que não interfira com a liberdade alheia. Aqui reside uma prerrogativa essencial do estado de direito, sem o que seria como viver num estado de natureza, onde tudo fica à mercê da força ou do arbítrio.

De facto, assiste-se, hoje, a situações que desprestigiam a democracia, provocam atrições deletérias e corroem a coesão social em torno do que é fundamental. Tal acontece não só na casa mãe da democracia como em outros cenáculos. O discurso político é normalmente dogmático, poucas vezes conciso e quase nunca axiomático, como que votando Aristóteles às urtigas, seja pela semântica, seja pelos decibéis vociferados. Em vez de debates na sua verdadeira acepção, com fecunda troca de ideias e confronto de opiniões primando pelo construtivismo, o que se vê são discussões iradas e exaltadas, com um histrionismo por vezes apalhaçado por parte de alguns actores. Nem sequer a sensatez permite reconhecer que, pela lei natural, ninguém pode ser tão imaculadamente detentor da verdade ou senhor de virtudes sacrossantas, nem o outro pode ser tão falho de razão e lucidez. Se assim fosse, os problemas seriam de fácil solução porque bastaria circundar os presumidos iluminados num espaço inviolável e incontaminável e sujeitar a uma quarentena os supostamente deserdados. Quando hoje ocorre a discussão sobre os limites da liberdade de expressão, apercebe-se de que faltará, talvez, uma harmonização dos significados e dos conceitos, o mesmo é dizer uma compatibilização entre o direito positivo − fruto de um ordenamento jurídico, e o direito natural – princípios universalmente reconhecidos pela razão.

Mas algo parece ter piorado nos últimos tempos quando o abuso da liberdade de expressão transcende o debate político e se converte, lateralmente, em atitudes reprováveis – piadas de racismo e misoginia − nos bastidores e corredores do Parlamento, dirigidas a deputadas negras, lésbicas ou gordas, de forma mais ou menos dissimulada. As denúncias foram feitas por duas deputadas de esquerda e visaram o terceiro partido mais votado. É a evidência de que o nível e a qualidade dos representantes do povo na casa mãe da democracia já não são o mesmo de antes, sobretudo desde que ganhou maior expressão eleitoral o actual partido populista.

Constata-se, assim, que o regime democrático gera um paradoxo quando não evita que o uso espúrio e incontrolado da liberdade ataque os seus alicerces. Deste modo, pergunta-se se a concepção abstracta da liberdade não deve atentar numa permanente reavaliação da consistência do vínculo jurídico e filosófico que a prende estruturalmente à democracia. Claro que sim, pois não o fazer é consentir a intrusão de Cavalos de Tróia no reduto da democracia. É que a corrosão do debate parlamentar nunca foi tão notória, parecendo haver uma estratégia concertada para descredibilizar a democracia em prol de uma qualquer forma de autocracia. Os seus agentes estão identificados, uns agindo com mais estrépito e visibilidade, outros mais insidiosamente. A solução do problema caberá acima de tudo ao povo, mediante o escrutínio eleitoral, e aí pouco poderá fazer o legislador ou a conciliação entre o direito positivo e o direito natural, de onde se conclui que cada povo tem a democracia que merece, dado que ela é e será sempre uma obra inacabada. Até porque, conscientemente ou não, o povo pode mesmo sentenciar o fim da democracia por via eleitoral, o que confere toda a actualidade ao paradoxo apontado por Karl Popper no seu livro “The Open Society and Its Enemies”. É bom que os democratas não se desliguem de uma pedagogia cívica pró-activa e constante sobre o que deve ser uma cidadania consciente e responsável.



[i] Artigo originalmente publicado no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Texto escrito de acordo com a ortografia anterior ao AO 90

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