Reflexos de valores humanistas/cristãos na criação poética cabo-verdiana – A poesia de Osvaldo Alcântara, um exemplo emblemático

sábado, 19 de outubro de 2013
Antes de entrar propriamente no tema deste escrito que sintetizei como reflexos de valores humanistas/cristãos na poesia de Osvaldo Alcântara farei, ainda que de forma breve e muito resumidamente, algum enquadramento histórico/literário da matéria.
É já para nós, dado adquirido que os Homens da Cultura, ao longo de séculos, a seu modo, com os dons e os instrumentos que a época histórica, o seu saber, e os meios que possuíam, lhes proporcionaram, foram e são os escultores e os registadores daquilo que aconteceu connosco e que lírica e simbolicamente estão tão bem sugeridos nos últimos versos – muito apreciados e também frequentemente ditos – do belo poema de Jorge Barbosa intitulado, «Prelúdio»: “...Quando o descobridor chegou / e saltou da proa do escaler varado na praia /.e se persignou / receoso ainda e surpreso (...) nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este destino ainda de todos nós.”
 Ora, iniciou-se a nossa condição de Homens que havia de ser e é culturalmente mestiça. Foi o começo simbólico (nos versos do poeta) da configuração da nossa idiossincrasia e consequentemente daquilo a que comummente se chama a nossa gesta/identitária. Os Homens das Letras, do pensamento, das ciências, das artes, e da música, lavraram tudo isso nos seus textos, nas suas partituras, nas suas telas e esculturas.
 Abriria aqui um parêntesis para comparar o seguinte: Eduardo Lourenço, grande pensador português contemporâneo, escreveu em relação à questão da identidade dos Açores um ensaio belíssimo e no qual li – “mutatis mutandis,” com as devidas diferenças e adaptações – algo que se pode aplicar – In illo tempore – ao caso de Cabo Verde, pois que já possuíamos de há, pelo menos um século, antes da independência, aquilo que Lourenço conceptualizou como: “ Uma consciência bastante elevada de uma personalidade singular no espaço mais geral da cultura portuguesa”. Mas o interessante é que essa nossa identidade cultural forjada ao longo do tempo, no isolamento quase cósmico do meio do oceano, descendendo de dois grandes grupos humanos, o africano e o europeu que aqui aportaram forçadamente, quase todos com saudades do continente e da terra que deixaram para trás. Todos enfrentando uma luta duríssima contra um imbatível adversário, uma natureza inóspita causadora de um cortejo de malefícios e tragédias humanas e sociais, que se acreditavam então como imponderáveis desígnios, determinados por Deus e pelo destino;
 Apesar de tudo isso, a construção da nossa identidade cultural, não se caracterizou felizmente, em muitos momentos, «por oposição ou por ressentimento ao grupo maior» porque este último era também parte estruturante dessa mesma identidade. Daí talvez que estejamos numa situação que nos permita perceber, apreender e interiorizar a nossa identidade cultural sob formas não extremadas, não exacerbadas.
Dito desse modo, não exclui, no entanto, que por vezes a questão da identidade se ponha entre nós, de forma obsessiva e com algum formato de “ajuste de contas.” Será? Por vezes assim parece, e isso leva-me ao poeta Alexandre O’Neill, que para o caso português diz que é “uma questão”que temos, mais connosco mesmos” do que talvez com os outros.
Actualmente e graças ao muito citado “mundo global”, às tecnologias de informação e de ligação, reaproximámo-nos com naturalidade dos outros espaços e de outras comunidades, com especial realce para as que connosco comungam e partilham a bela a língua portuguesa. Fecho o parêntesis.
Retomo o que vinha dizendo, é também para nós, lugar-comum, que alguns Homens da pena, através dos seus escritos e das suas intervenções, cada um à sua maneira, colocaram, acrescentaram uma “pedra” ao edifício da nossa identidade. De entre eles notabilizaram-se naturalmente os escritores e o poetas como contribuintes ou, contribuidores e foram-no de facto, para o reconhecimento, para a distinção e para o registo e a fixação da identidade cultural da comunidade a que pertencemos.
   Fernando Pessoa definiu essa contribuição num verso lapidar: A alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos...
Com isto entro no tema a que me propus, o exemplo poético de Osvaldo Alcântara e já fixado o seu perfil.
Não vou apresentar o poeta Osvaldo Alcântara porque creio desnecessário para o leitor, mas apenas reiterar, uma vez que já muitos o disseram, em que me incluo pois já o disse algumas vezes em outras circunstâncias, que Osvaldo Alcântara/Baltazar Lopes da Silva (1907-1989) é uma referência de peso na historiografia literária e cultural destas ilhas. Poeta, Contista, romancista, ensaísta, filólogo, ele deixou-nos um legado portentoso, à nossa escala, claro! Porque fonte de pesquisa constante e sempre fascinante para quem procure penetrar na fenomenologia cultural crioula, a que Manuel Ferreira justamente classificou de «Aventura Crioula», pois bem, sobre isso, Osvaldo Alcântara/Baltazar Lopes é uma base segura de indagação e de estudo para o entendimento do fenómeno hoje designado já sem reservas, acredito, de: cabo-verdianidade. Para se conhecer a obra deste autor, recomendo vivamente a leitura dos textos/ensaios do Prof. Alberto Carvalho da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e o Dr. Leão Lopes com o livro: «Baltazar Lopes, um homem arquipélago, na linha de todas as batalhas» São hoje dois prestigiados biógrafos de Baltasar Lopes da Silva.
Outra questão que aproveitava aqui a oportunidade para rapidamente expor é que estamos perante um poeta que é ao mesmo tempo ensaísta e que por vezes, Osvaldo Alcântara usou, em linguagem poética, as profundas reflexões que Baltazar Lopes expandiu nos seus ensaios sobre a condição do Homem em geral e com particular acuidade, sobra a condição do Homem cabo-verdiano. Apercebe-se, lendo a poesia de Osvaldo Alcântara, desta espécie de contaminação frutuosa entre o ensaio e alguns poemas.
Agora reportando-me ao contexto histórico/literário que forjaram o super-estrato intelectual de Osvaldo Alcântara teremos de ir, por um lado, ao Realismo e ao Neo-realismo literário do século XX, e cujo humanismo antropocêntrico, que vinha de trás, conheceu certo esplendor e evolução nas obras de escritores e poetas franceses e portugueses, e isto para me referir ao que me parece estar mais próximo e ter sido mais conhecido e mais estudado pelo nosso poeta Osvaldo Alcântara a quem costumo aproximar o seu modo de criar poesia ao tipo de poesia de Antero Quental, de Miguel Torga, de Alexandre O’Neill, de Sofia Melo Breyner Andresen, passando por Carlos Drumont de Andrade indo até mesmo ao de Fernando Pessoa, pois que, na linha deles, também os textos/poéticos de Osvaldo Alcântara, tanto interpelam o seu semelhante, como se solidarizam com ele, como o levam ainda a questionar o Ser e o que está para além do Ser indo até ao Ser supremo…  
Por outro lado, esta poesia pode ancorar-se naquilo que mais recentemente Julie Kristeva explanou numa excelente comunicação sobre as origens e o papel do Humanismo/cristão/europeu no pensamento actual, literário/cultural, mas já global, e o lugar que o mesmo tem como mediador cultural nos conflitos, igualmente muito actuais e tendo como particulares destinatários, aqueles que pretendem destruir o outro, o seu semelhante, em nome de crenças religiosas. Explica a autora como o humanismo deve ser entendido nas sociedades actuais e, passo a citar:
Filho da cultura europeia, o humanismo é o encontro de diferenças culturais favorecidas pela globalização e pela informatização. O humanismo respeita, traduz e reavalia as variantes das necessidades de crer e dos desejos de saber que são patrimônio universal de todas as civilizações.” Fim de citação.
Ora bem é nesse humanismo cristão, a que nem falta uma “praxis” do bom samaritano é que assenta largo espólio da poética de Osvaldo Alcântara.
Começarei por exemplicar isto, com o poema intitulado «Caim», Tema sugerido pela Bíblia e transfigurada e metaforicamente na fala do sujeito poético, quando suplica ao pecador fratricida que expie o seu erro, que seja marcado por isso, mas que, apesar de tudo, a redenção não estará totalmente perdida, pois que existe a voz do poeta:
“Irmão, desce/ao fundo do meu poço. // Houve um tempo em que te quis perdoar. // Inútil era a minha paixão. // Hás-de nascer mil vezes, / mil vezes virás ceifar a minha seara / no fundo do pecado. // Tens de ser marcado, tatuado, / para que a tua mancha seja indelével / como o Pecado Original. // Na hora em que o céu se fechar / só um grito sem eco será o teu remorso. / Então, no escuridão do caminho / esta minha alma irá sem cansaço / dizer-te que a redenção não está perdida. // Não deixes que a luz do Sol desapareça / no atalho que as tuas mãos cavaram / nas trevas do Triunfo. 
Outro exemplo demonstrativo vou retirá-lo ou, melhor encontrá-lo nos versos  do poema «Evangelho Segundo o Rei de Pasárgada» afirma que em “Que lá os homens podem amar as estrelas que Deus Nosso Senhor criou…” e no mesmo poema informa o leitor que “Em Pasárgada tem Cristo Nosso Senhor”
Afinal o poeta quis simbolizar nestes versos a grande missão do poeta que teve o privilégio da viagem até Pasárgada dizendo-lhe ou, melhor, ordenando-lhe: “Sê Pedro e Paulo, /tira a inspiração dos traços que deixaram as sandálias dos apóstolos.” e acrescenta o poeta dirigindo-se ao Rei de Pasárgada:
“A tua herança, Ò rei, está escrita nas tuas palavras, /em que prometeste aos homens lúcidos e humildes a civilização de Pasárgada”
E expressa finalmente o maior desejo do Rei de Pasárgada,
“Que os poetas sejam irmãos em Cristo”
Reportando ao poeta brasileiro Manuel Bandeira a quem Osvaldo Alcântara pedira o mote de «Pasárgada» verifica-se que, dadas as circunstâncias diferenciadas e particulares em que Manuel Bandeira criara o seu célebre poema tornara-o luxuriante, envolveu-o em algum fulgor sensual, sugeriu algum erotismo e mesmo algum humor brincalhão por antítese e por contraste, à situação que ele vivia na altura da sua criação. Numa linha diferente, Osvaldo Alcântara quando glosa o mote sugerido pelo grande poeta brasileiro, replete-o de alguma mística filosófica/questionadora Vira-o para uma contemplação humanística/cristã, diz o poeta, num dos versos, – do célebre e que também já foi de controverso entendimento, e de muita e injusta interpretação, o conhecido poema: «Saudade de Pasárgada». A determinada altura, confessa o poeta: – “Em Pasárgada eu saberia onde é que Deus tinha depositado/o meu destino…” E o interessante é que ao longo do conjunto de poemas denominado «Itinerário de Pasárgada»” o poeta diante o “Rei de Pasárgada” tem uma atitude reverencial que é mais usado para o divino do que para o rei temporal, permitam-me esta comparação já anacrónica.
Creio descortinar, por vezes, na poesia culta e filosófica de Osvaldo Alcântara algo que se percebe como a elevação de uma prece, de uma oração, especialmente em momentos em que a matéria poética trata questões suscitadas pelos encontros, e com especial ênfase, pelos desencontros, entre Homens e entre o Homem e Deus.
E esta dialéctica adensa-se no poema «Amigo», em que há como que um chamamento ao entendimento e à harmonia há muito perdidos entre os humanos. E a quem o poeta recorre para restabelecer tudo isto? Vamos escutar o seu apelo bem forte:
«Amigo, a Tua palavra está novamente / clandestina no Deserto / o ar ressoa o Teu nome, /homens gritam o Teu nome / o Teu nome, / mas puseram-no a fugir para a cama fofa / dos dicionários de sinónimos. // O lábaro impuro tem a violência / do tempo em que nem eras uma suspeita. // Vem, Amigo, / chicoteia outra vez que faltam séculos de séculos /para o Teu reino ser achado // na aldeia encoberta conta a Tua parábola. // Lá ninguém fugiu de Ti / lá terás a Tua cama para te deitares, / e a água humilde do canto da casa será a dádiva / dos filhos dos Teus filhos. // Olha por Nicolau. / Os mercadores nada poderão com ele. // Confio em Ti, Amigo / confio em Ti, Amigo.// O inefável invade docemente a minha tristeza. / Sei que a Tua espada há-de fulgurar nas batalhas necessárias / e Nicolau nunca mais voltará a ser moeda / das riquezas de Caim.
Para terminar, acrescentarei que é com um humanismo eivado de valores cristãos, valores esses, que aliás são naturalmente pertença histórica/social interiorizada pelo homem cabo-verdiano, e ponto de partida do seu caldeamento cultural, que Osvaldo Alcântara alcançou também a bênção (permitam-me a comparação) da sua palavra poética.

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