Antes
de entrar propriamente no tema deste escrito que sintetizei como reflexos de
valores humanistas/cristãos na poesia de Osvaldo Alcântara farei, ainda que
de forma breve e muito resumidamente, algum enquadramento histórico/literário da
matéria.
É
já para nós, dado adquirido que os Homens da Cultura, ao longo de séculos, a
seu modo, com os dons e os instrumentos que a época histórica, o seu saber, e
os meios que possuíam, lhes proporcionaram, foram e são os escultores e os
registadores daquilo que aconteceu connosco e que lírica e simbolicamente estão
tão bem sugeridos nos últimos versos – muito apreciados e também frequentemente
ditos – do belo poema de Jorge
Barbosa intitulado, «Prelúdio»:
“...Quando o descobridor chegou / e
saltou da proa do escaler varado na praia /.e se persignou / receoso ainda e
surpreso (...) nessa hora então/ nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ este
destino ainda de todos nós.”
Ora, iniciou-se a nossa condição de Homens que
havia de ser e é culturalmente mestiça. Foi o começo simbólico (nos versos do
poeta) da configuração da nossa idiossincrasia e consequentemente daquilo a que
comummente se chama a nossa gesta/identitária. Os Homens das Letras, do
pensamento, das ciências, das artes, e da música, lavraram tudo isso nos seus
textos, nas suas partituras, nas suas telas e esculturas.
Abriria aqui um parêntesis para comparar o
seguinte: Eduardo Lourenço, grande pensador português contemporâneo, escreveu
em relação à questão da identidade dos Açores um ensaio belíssimo e no qual li
– “mutatis mutandis,” com as devidas
diferenças e adaptações – algo que se pode aplicar – In illo tempore – ao caso de Cabo Verde, pois que já possuíamos de
há, pelo menos um século, antes da independência, aquilo que Lourenço
conceptualizou como: “ Uma consciência
bastante elevada de uma personalidade singular no espaço mais geral da
cultura portuguesa”. Mas o interessante é que essa nossa identidade
cultural forjada ao longo do tempo, no isolamento quase cósmico do meio do
oceano, descendendo de dois grandes grupos humanos, o africano e o europeu que
aqui aportaram forçadamente, quase todos com saudades do continente e da terra
que deixaram para trás. Todos enfrentando uma luta duríssima contra um
imbatível adversário, uma natureza inóspita causadora de um cortejo de
malefícios e tragédias humanas e sociais, que se acreditavam então como
imponderáveis desígnios, determinados por Deus e pelo destino;
Apesar de tudo isso, a construção da nossa
identidade cultural, não se caracterizou felizmente, em muitos momentos, «por oposição ou por ressentimento ao grupo maior» porque este último era também parte
estruturante dessa mesma identidade. Daí talvez que estejamos numa situação que
nos permita perceber, apreender e interiorizar a nossa identidade cultural sob
formas não extremadas, não exacerbadas.
Dito
desse modo, não exclui, no entanto, que por vezes a questão da identidade se
ponha entre nós, de forma obsessiva e com algum formato de “ajuste de contas.”
Será? Por vezes assim parece, e isso leva-me ao poeta Alexandre O’Neill, que
para o caso português diz que é “uma
questão”“que temos, mais connosco
mesmos” do que talvez com os outros.
Actualmente
e graças ao muito citado “mundo global”, às tecnologias de informação e de
ligação, reaproximámo-nos com naturalidade dos outros espaços e de outras
comunidades, com especial realce para as que connosco comungam e partilham a
bela a língua portuguesa. Fecho o parêntesis.
Retomo o que vinha dizendo, é também para nós, lugar-comum, que alguns Homens
da pena, através dos seus escritos e das suas intervenções, cada um à sua
maneira, colocaram, acrescentaram uma “pedra” ao edifício da nossa identidade.
De entre eles notabilizaram-se naturalmente os escritores e o poetas como
contribuintes ou, contribuidores e foram-no de facto, para o reconhecimento,
para a distinção e para o registo e a fixação da identidade cultural da
comunidade a que pertencemos.
Fernando Pessoa definiu essa contribuição
num verso lapidar: A alma de uma época
está em todos os seus poetas e filósofos...
Com isto entro no tema a que me
propus, o exemplo poético de Osvaldo Alcântara e já fixado o seu perfil.
Não vou apresentar o poeta Osvaldo
Alcântara porque creio desnecessário para o leitor, mas apenas reiterar, uma
vez que já muitos o disseram, em que me incluo pois já o disse algumas vezes em
outras circunstâncias, que Osvaldo Alcântara/Baltazar Lopes da Silva (1907-1989)
é uma referência de peso na historiografia literária e cultural destas ilhas.
Poeta, Contista, romancista, ensaísta, filólogo, ele deixou-nos um legado
portentoso, à nossa escala, claro! Porque fonte de pesquisa constante e sempre
fascinante para quem procure penetrar na fenomenologia cultural crioula, a que
Manuel Ferreira justamente classificou de «Aventura Crioula», pois bem, sobre
isso, Osvaldo Alcântara/Baltazar Lopes é uma base segura de indagação e de
estudo para o entendimento do fenómeno hoje designado já sem reservas,
acredito, de: cabo-verdianidade. Para
se conhecer a obra deste autor, recomendo vivamente a leitura dos
textos/ensaios do Prof. Alberto Carvalho da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa e o Dr. Leão Lopes com o livro: «Baltazar Lopes, um homem
arquipélago, na linha de todas as batalhas» São hoje dois prestigiados
biógrafos de Baltasar Lopes da Silva.
Outra questão que aproveitava aqui a
oportunidade para rapidamente expor é que estamos perante um poeta que é ao
mesmo tempo ensaísta e que por vezes, Osvaldo Alcântara usou, em linguagem
poética, as profundas reflexões que Baltazar Lopes expandiu nos seus ensaios
sobre a condição do Homem em geral e com particular acuidade, sobra a condição
do Homem cabo-verdiano. Apercebe-se, lendo a poesia de Osvaldo Alcântara, desta
espécie de contaminação frutuosa entre o ensaio e alguns poemas.
Agora reportando-me ao contexto
histórico/literário que forjaram o super-estrato intelectual de Osvaldo
Alcântara teremos de ir, por um lado, ao Realismo e ao Neo-realismo literário
do século XX, e cujo humanismo antropocêntrico, que vinha de trás, conheceu
certo esplendor e evolução nas obras de escritores e poetas franceses e
portugueses, e isto para me referir ao que me parece estar mais próximo e ter sido
mais conhecido e mais estudado pelo nosso poeta Osvaldo Alcântara a quem
costumo aproximar o seu modo de criar poesia ao tipo de poesia de Antero
Quental, de Miguel Torga, de Alexandre O’Neill, de Sofia Melo Breyner Andresen,
passando por Carlos Drumont de Andrade indo até mesmo ao de Fernando Pessoa,
pois que, na linha deles, também os textos/poéticos de Osvaldo Alcântara, tanto
interpelam o seu semelhante, como se solidarizam com ele, como o levam ainda a
questionar o Ser e o que está para além do Ser indo até ao Ser supremo…
Por outro lado, esta poesia pode
ancorar-se naquilo que mais recentemente Julie Kristeva explanou numa excelente
comunicação sobre as origens e o papel do Humanismo/cristão/europeu no
pensamento actual, literário/cultural, mas já global, e o lugar que o mesmo tem
como mediador cultural nos conflitos, igualmente muito actuais e tendo como
particulares destinatários, aqueles que pretendem destruir o outro, o seu
semelhante, em nome de crenças religiosas. Explica a autora como o humanismo
deve ser entendido nas sociedades actuais e, passo a citar:
“ Filho da cultura europeia, o humanismo é o encontro de diferenças
culturais favorecidas pela globalização e pela informatização.
O humanismo respeita, traduz e reavalia as variantes das necessidades de crer e
dos desejos de saber que são patrimônio universal de todas as civilizações.”
Fim de citação.
Ora bem é nesse humanismo cristão, a que
nem falta uma “praxis” do bom samaritano é que assenta largo espólio da poética
de Osvaldo Alcântara.
Começarei por exemplicar isto, com o poema intitulado «Caim», Tema
sugerido pela Bíblia e transfigurada e metaforicamente na fala do sujeito
poético, quando suplica ao pecador fratricida que expie o seu erro, que seja
marcado por isso, mas que, apesar de tudo, a redenção não estará totalmente
perdida, pois que existe a voz do poeta:
“Irmão,
desce/ao fundo do meu poço. // Houve um tempo em que te quis perdoar. // Inútil
era a minha paixão. // Hás-de nascer mil vezes, / mil vezes virás ceifar a minha
seara / no fundo do pecado. // Tens de ser marcado, tatuado, / para que a tua
mancha seja indelével / como o Pecado Original. // Na hora em que o céu se
fechar / só um grito sem eco será o teu remorso. / Então, no escuridão do
caminho / esta minha alma irá sem cansaço / dizer-te que a redenção não está
perdida. // Não deixes que a luz do Sol desapareça / no atalho que as tuas mãos
cavaram / nas trevas do Triunfo.
Outro exemplo demonstrativo vou
retirá-lo ou, melhor encontrá-lo
nos versos do poema «Evangelho Segundo o
Rei de Pasárgada» afirma que em “Que lá
os homens podem amar as estrelas que Deus Nosso Senhor criou…” e no mesmo
poema informa o leitor que “Em Pasárgada
tem Cristo Nosso Senhor”
Afinal o poeta quis simbolizar nestes
versos a grande missão do poeta que teve o privilégio da viagem até Pasárgada
dizendo-lhe ou, melhor, ordenando-lhe: “Sê
Pedro e Paulo, /tira a inspiração dos traços que deixaram as sandálias dos
apóstolos.” e acrescenta o poeta dirigindo-se ao Rei de Pasárgada:
“A
tua herança, Ò rei, está escrita nas tuas palavras, /em que prometeste aos
homens lúcidos e humildes a civilização de Pasárgada”
E expressa finalmente o maior desejo
do Rei de Pasárgada,
“Que
os poetas sejam irmãos em Cristo”
Reportando ao poeta brasileiro Manuel Bandeira
a quem Osvaldo Alcântara pedira o mote de «Pasárgada» verifica-se que, dadas as
circunstâncias diferenciadas e particulares em que Manuel Bandeira
criara o seu célebre poema tornara-o luxuriante, envolveu-o em algum fulgor
sensual, sugeriu algum erotismo e mesmo algum humor brincalhão por antítese e
por contraste, à situação que ele vivia na altura da sua criação. Numa linha
diferente, Osvaldo Alcântara quando glosa o mote sugerido pelo grande poeta
brasileiro, replete-o de alguma mística filosófica/questionadora Vira-o para
uma contemplação humanística/cristã, diz o poeta, num dos versos, – do célebre
e que também já foi de controverso entendimento, e de muita e injusta
interpretação, o conhecido poema: «Saudade de Pasárgada». A determinada altura,
confessa o poeta: – “Em Pasárgada eu
saberia onde é que Deus tinha depositado/o meu destino…” E o interessante é
que ao longo do conjunto de poemas denominado «Itinerário de Pasárgada»” o
poeta diante o “Rei de Pasárgada” tem uma atitude reverencial que é mais usado
para o divino do que para o rei temporal, permitam-me esta comparação já
anacrónica.
Creio descortinar, por vezes, na
poesia culta e filosófica de Osvaldo Alcântara algo que se percebe como a
elevação de uma prece, de uma oração, especialmente em momentos em que a
matéria poética trata questões suscitadas pelos encontros, e com especial
ênfase, pelos desencontros, entre Homens e entre o Homem e Deus.
E esta dialéctica adensa-se no poema
«Amigo», em que há como que um chamamento ao entendimento e à harmonia há muito
perdidos entre os humanos. E a quem o poeta recorre para restabelecer tudo
isto? Vamos escutar o seu apelo bem forte:
«Amigo,
a Tua palavra está novamente / clandestina no Deserto / o ar ressoa o Teu nome,
/homens gritam o Teu nome / o Teu nome, / mas puseram-no a fugir para a cama
fofa / dos dicionários de sinónimos. // O lábaro impuro tem a violência / do
tempo em que nem eras uma suspeita. //
Vem, Amigo, / chicoteia outra vez que
faltam séculos de séculos /para o Teu reino ser achado // na aldeia encoberta
conta a Tua parábola. // Lá ninguém fugiu de Ti / lá terás a Tua cama para te
deitares, / e a água humilde do canto da casa será a dádiva / dos filhos dos
Teus filhos. // Olha por Nicolau. / Os mercadores nada poderão com ele. // Confio
em Ti, Amigo / confio em Ti, Amigo.// O inefável invade docemente a minha
tristeza. / Sei que a Tua espada há-de fulgurar nas batalhas necessárias / e
Nicolau nunca mais voltará a ser moeda / das riquezas de Caim.
Para
terminar, acrescentarei que é com um humanismo eivado de valores cristãos,
valores esses, que aliás são naturalmente pertença histórica/social
interiorizada pelo homem cabo-verdiano, e ponto de partida do seu caldeamento
cultural, que Osvaldo Alcântara alcançou também a bênção (permitam-me a
comparação) da sua palavra poética.
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