A "Ideologia" e a leitura poética...

domingo, 17 de maio de 2015
Ora aí está um tema que há muito trago em mente para sobre ele me debruçar, um pouco.

O título foi-me sugerido por aquilo que entre nós aconteceu num passado recente, em que a “ideologia” conduziu a interpretação e a classificação de textos literários, com ênfase no estudo dos textos poéticos. E como resultado,  nasceu uma espécie de “modismo” sob forma maniqueísta de divisão, que colocavam de um lado os poetas  “militantes” e do outro lado, os poetas considerados “alienados,” ou quase isso...

Mas antes de continuar, atinemos em alguns significados do vocábulo ideologia que nos ajude a situá-lo no contexto histórico e social da época, aqui nas ilhas e, durante os primeiros anos da independência, tempos esses, carregados de tópicos, de sugestões e de exaltações, obrigatoriamente virados para a independência acabada de obter e para uma postura marxista/leninista, ou disso imitativa, ainda muito fresca.

Ora bem, é nesta ambiência, que se dá o estudo de textos poéticos no ensino secundário. 

Mas como antes dito, vamos ao significado de ideologia. Dos significados  retirados do Dicionário de Política (Dinalivro, 2004)  da palavra Ideologia, e entre  algumas informações e definições que o referido dicionário fornece, escolhi as que me pareceram mais próximas do conteúdo deste escrito. Assim, passo a   transcrevê-las: “...talvez não exista palavra na linguagem política, filosófica e sociológica com uma tal gama de significados e de frequência de emprego como a palavra Ideologia.”

Em termos de definição, seleccionei da mesma fonte a seguinte:

“O carácter da ideologia é atribuído a uma crença, a uma acção ou a um estilo político pela presença neles, de certos elementos típicos como o doutrinarismo, o dogmatismo, uma forte componente passional, etc... que foram diversamente definidos e organizados por vários autores». (Fim de transcrição).

Creio que foi um pouco  nesta acepção e desta visão que durante anos, padeceu o estudo liceal da Literatura cabo-verdiana e, particularmente, da sua poesia.

Esta “ideologia” alastrou-se com carácter epidémico, diria, a algumas disciplinas curriculares dos liceus em Cabo Verde, de que a História, tal como a Literatura, também não escapou. Estamos a falar de um largo período de tempo que teve início com a independência e com a alteração curricular, entendida de forma   natural, pois que  passou a incluir o estudo de textos dos nossos autores  que se estendeu, presumo, até o presente momento.

Na decorrência disso, surgiu a tal malfadada divisão entre os poetas,  “ideologicamente” vinculados a um tipo de poemas que glorificavam ou não, aquilo que se considerava, na época, revolucionário, combatente, contestatário e, por outro lado, a poesia sem marcas ideológicas, mas igualmente de carácter interventivo social, contestatário,  sem ser disso  explícito  nem tão pouco vinculativo.

Parecia que só aquele tipo de poesia - o primeiro -   era válido na poética cabo-verdiana.

A linguagem subtilizada,o protesto implícito, a intervenção social sugerida, o não-dito, mas subentendido, não foram então, tão procurados nas análises poéticas, como deveriam ter sido.

Exactamente! Os tais poetas apodados de evasionistas versus anti-evasionistas, foi o grande “chavão” que ensombrou gerações de estudantes do ensino secundário no estudo da poesia cabo-verdiana dos últimos quarenta anos, e que acabou por retirar parte da significativa grandeza e beleza da nossa poesia..

Recuando um pouco no tempo, esta doutrinação não explicitamente assumida, que começou a ser inculcada, a partir de 1975, ou um pouco antes, logo a seguir ao processo do 25 de Abril, fazia crer aos estudantes de Literatura cabo-verdiana dos Liceus, de que só deveriam considerar “boa” poesia, “bom” poeta aquela ou aquele que fosse “engajado” (termo então em moda) com a causa da revolução, da independência; aquele cuja  mensagem escrita estivesse dentro do molde que era exigido, da exaltação explícita do facto heróico, nacionalista, da resistência, ou similar.

Um pequeno exemplo que chega a ser caricatural, embora ilustrativo: Achavam alguns “ideólogos” da Literatura de então, que um poema como «Ressaca», de Osvaldo Alcântara, carregava um traço “menos” na perspectiva deles, em relação ao poema «Não vou para Pasárgada» de Ovídio Martins. Pasme-se! Porquê? Porque este último, fazia o protesto em directo. Logo, tinha na óptica desses mesmos “ideólogos” valor acrescentado para o edifício poético nacional.

A linguagem culta, multifacetada, plurissignificativa, metafórica, exarada na poesia e no poema «Ressaca»  de Osvaldo Alcântara poeticamente codificado, pois que escrito e publicado num tempo e num espaço sem liberdade, possivelmente não lhes chegava ao entendimento. Daí a catalogação de “evasionista,” tal como fizeram, aliás, com excelentes poemas de Jorge Barbosa.

Pois bem, a subtileza imagística, a plurissignificação das palavras escolhidas, a linguagem metafórica, a beleza rítmica, a musicalidade versatória, entre outros atributos que distinguem um bom texto poético, não eram tidos em plena valorização.

À posteriori, reflectindo sobre o fenómeno, concluo que este maniqueísmo  acabou por vingar e vincar na generalidade, levando muitos professores a uma certa abordagem “facilitista” e a uma análise reducionista do texto poético cabo-verdiano.

Interessante, é que surgiram teses literárias ufanosamente baseadas neste pseudo-pasárgada/anti-pasárgadismo, e modelos forçados do género, aliás, muito em moda ao tempo, e que serviam na análise comparada dos textos de alguns dos nossos melhores poetas.

Lembro-me de como repudiei  “ab initio” a divisão ideológica e redutora feita e que estava a ser tão prejudicial à nossa causa poética!

Dou graças por ter escapado, felizmente, dessa onda!

Hoje, passadas já algumas décadas, quando olho para trás, regozijo-me por não me ter deixado envolver nesta abordagem tão redutora dos nossos textos poéticos! E tão injusta para os nossos grandes poetas!

Trabalhava com os meus alunos dos anos terminais do Liceu, à partida, sem qualquer preconceito e, sobretudo, sem qualquer pré-juízo formado ao tratar poetas tão diferentes e tão importantes como: Osvaldo Alcântara, Gabriel Mariano, Mário Fonseca, Jorge Barbosa, Arménio Vieira, Eugénio Tavares, Ovídio Martins, Pedro Cardoso, Onésimo Silveira, Januário Leite, Pedro Corsino Azevedo, Manuel Lopes, José Lopes, Yolanda Morazzo, Osvaldo Osório, Aguinaldo Fonseca, Corsino Fortes, Terêncio Anahory, Daniel Filipe, entre muitos outros, que a minha memória neste momento não me permite elencar.

Para além da originalidade de cada um deles, valorizávamos-lhes sim, a riqueza poética, a mensagem contida e a especificidade de cada um dos seus textos. Por vezes, as similitudes e/ou as diferenças nos temas tratados, quando nós os comparávamos.  Um parêntese aqui, para dizer que este plural “nós” não é majestático, (a indicar a 1ª pessoa do singular) não, é real, pois que se tratava de um exercício feito na e em aula, envolvendo participativamente, os alunos e a professora.

Sempre pensei que caberia mais tarde, ao então aluno, portador de alguns estudos sobre a matéria, fazer a sua própria filtragem, a sua escolha e a sua selecção de autores e de textos que, para ele, melhor consagram ou consagraram a “poesis” cabo-verdiana, dentro de cada género. Desde o tipo  lírico/amoroso/mornista, romântico, passando pelo texto designado de poesia protestatória, de intervenção social, da epopeia/heróica, indo à poesia narrativa e dramatizada. Enfim, fazer a escolha do(s) poeta(s), “mais poeta” − permitam-me a graça − e o que produziu melhor poesia no seu tempo e não só. Mas também,  aquela que  chegou  à actualidade ainda poesia...

Voltando às aulas, é minha opinião, que quase todos os poetas estudados, e cada um a seu modo, no seu tempo, nas suas circunstâncias e com as suas motivações, tratou nos textos legados, a denominada “caboverdianidade” afinal, o traço identificativo e distintivo da poesia feita nestas ilhas, ao longo de séculos.

E foi assim, durante largos anos, o estudo da poesia cabo-verdiana nas escolas secundárias do país. Sob invólucro “ideológico” ou querendo parecer isso, limitou-se em muitos casos, a fruição plena do texto poético, pois o seu autor já vinha carimbado. Por outro lado, sobrevalorizou-se o chamado poeta de circunstância, do protesto imediato. Aquele cujos poemas estariam fatalmente circunscritos a um determinado momento histórico, sem garantia de perenidade da poesia neles inscrita.







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