Ora aí está um
tema que há muito trago em mente para sobre ele me debruçar, um pouco.
O título foi-me sugerido por
aquilo que entre nós aconteceu num passado recente, em que a “ideologia”
conduziu a interpretação e a classificação de textos literários, com ênfase no
estudo dos textos poéticos. E como resultado, nasceu uma espécie de
“modismo” sob forma maniqueísta de divisão, que colocavam de um lado os
poetas “militantes” e do outro lado, os poetas considerados “alienados,”
ou quase isso...
Mas antes de continuar,
atinemos em alguns significados do vocábulo ideologia que nos ajude a situá-lo
no contexto histórico e social da época, aqui nas ilhas e, durante os primeiros
anos da independência, tempos esses, carregados de tópicos, de sugestões e de
exaltações, obrigatoriamente virados para a independência acabada de obter e
para uma postura marxista/leninista, ou disso imitativa, ainda muito fresca.
Ora bem, é nesta ambiência,
que se dá o estudo de textos poéticos no ensino secundário.
Mas como antes dito, vamos
ao significado de ideologia. Dos significados retirados do Dicionário de Política
(Dinalivro, 2004) da palavra Ideologia, e entre algumas informações
e definições que o referido dicionário fornece, escolhi as que me pareceram
mais próximas do conteúdo deste escrito. Assim, passo a
transcrevê-las: “...talvez não exista palavra na linguagem política,
filosófica e sociológica com uma tal gama de significados e de frequência de
emprego como a palavra Ideologia.”
Em termos de definição,
seleccionei da mesma fonte a seguinte:
“O carácter da ideologia é
atribuído a uma crença, a uma acção ou a um estilo político pela presença
neles, de certos elementos típicos como o doutrinarismo, o dogmatismo, uma
forte componente passional, etc... que foram diversamente definidos e
organizados por vários autores». (Fim de transcrição).
Creio que foi um pouco
nesta acepção e desta visão que durante anos, padeceu o estudo liceal da
Literatura cabo-verdiana e, particularmente, da sua poesia.
Esta “ideologia” alastrou-se
com carácter epidémico, diria, a algumas disciplinas curriculares dos liceus em
Cabo Verde, de que a História, tal como a Literatura, também não escapou.
Estamos a falar de um largo período de tempo que teve início com a
independência e com a alteração curricular, entendida de forma
natural, pois que passou a incluir o estudo de textos dos nossos
autores que se estendeu, presumo, até o presente momento.
Na decorrência disso, surgiu
a tal malfadada divisão entre os poetas, “ideologicamente” vinculados a
um tipo de poemas que glorificavam ou não, aquilo que se considerava, na época,
revolucionário, combatente, contestatário e, por outro lado, a poesia sem
marcas ideológicas, mas igualmente de carácter interventivo social,
contestatário, sem ser
disso explícito nem tão pouco vinculativo.
Parecia que só aquele tipo
de poesia - o primeiro - era válido na poética cabo-verdiana.
A linguagem subtilizada,o
protesto implícito, a intervenção social sugerida, o não-dito, mas
subentendido, não foram então, tão procurados nas análises poéticas, como
deveriam ter sido.
Exactamente! Os tais poetas
apodados de evasionistas versus anti-evasionistas, foi o grande
“chavão” que ensombrou gerações de estudantes do ensino secundário no estudo da
poesia cabo-verdiana dos últimos quarenta anos, e que acabou por retirar parte
da significativa grandeza e beleza da nossa poesia..
Recuando um pouco no tempo,
esta doutrinação não explicitamente assumida, que começou a ser inculcada, a
partir de 1975, ou um pouco antes, logo a seguir ao processo do 25 de Abril,
fazia crer aos estudantes de Literatura cabo-verdiana dos Liceus, de que só
deveriam considerar “boa” poesia, “bom” poeta aquela ou aquele que fosse
“engajado” (termo então em moda) com a causa da revolução, da independência;
aquele cuja mensagem escrita estivesse dentro do molde que era exigido,
da exaltação explícita do facto heróico, nacionalista, da resistência, ou similar.
Um pequeno exemplo que chega
a ser caricatural, embora ilustrativo: Achavam alguns “ideólogos” da Literatura
de então, que um poema como «Ressaca», de Osvaldo Alcântara, carregava um traço
“menos” na perspectiva deles, em relação ao poema «Não vou para Pasárgada» de
Ovídio Martins. Pasme-se! Porquê? Porque este último, fazia o protesto em
directo. Logo, tinha na óptica desses mesmos “ideólogos” valor acrescentado
para o edifício poético nacional.
A linguagem culta,
multifacetada, plurissignificativa, metafórica, exarada na poesia e no poema
«Ressaca» de Osvaldo Alcântara poeticamente codificado, pois que escrito
e publicado num tempo e num espaço sem liberdade, possivelmente não lhes
chegava ao entendimento. Daí a catalogação de “evasionista,” tal como fizeram,
aliás, com excelentes poemas de Jorge Barbosa.
Pois bem, a subtileza
imagística, a plurissignificação das palavras escolhidas, a linguagem
metafórica, a beleza rítmica, a musicalidade versatória, entre outros atributos
que distinguem um bom texto poético, não eram tidos em plena valorização.
À posteriori, reflectindo sobre o fenómeno, concluo
que este maniqueísmo acabou por vingar e vincar na generalidade, levando
muitos professores a uma certa abordagem “facilitista” e a uma análise
reducionista do texto poético cabo-verdiano.
Interessante, é que surgiram
teses literárias ufanosamente baseadas neste pseudo-pasárgada/anti-pasárgadismo, e modelos forçados do género,
aliás, muito em moda ao tempo, e que serviam na
análise comparada dos textos de alguns dos nossos melhores poetas.
Lembro-me de como
repudiei “ab initio” a divisão ideológica e redutora feita e que
estava a ser tão prejudicial à nossa causa poética!
Dou graças por ter escapado,
felizmente, dessa onda!
Hoje, passadas já
algumas décadas, quando olho para trás, regozijo-me por não me ter deixado
envolver nesta abordagem tão redutora dos nossos textos poéticos! E tão injusta
para os nossos grandes poetas!
Trabalhava com os meus
alunos dos anos terminais do Liceu, à partida, sem qualquer preconceito e,
sobretudo, sem qualquer pré-juízo formado ao tratar poetas tão diferentes e tão
importantes como: Osvaldo Alcântara, Gabriel Mariano, Mário Fonseca, Jorge
Barbosa, Arménio Vieira, Eugénio Tavares, Ovídio Martins, Pedro Cardoso,
Onésimo Silveira, Januário Leite, Pedro Corsino Azevedo, Manuel Lopes, José
Lopes, Yolanda Morazzo, Osvaldo Osório, Aguinaldo Fonseca, Corsino Fortes,
Terêncio Anahory, Daniel Filipe, entre muitos outros, que a minha memória neste
momento não me permite elencar.
Para além da originalidade
de cada um deles, valorizávamos-lhes sim, a riqueza poética, a mensagem contida
e a especificidade de cada um dos seus textos. Por vezes, as similitudes e/ou
as diferenças nos temas tratados, quando nós os comparávamos. Um
parêntese aqui, para dizer que este plural “nós” não é majestático, (a indicar
a 1ª pessoa do singular) não, é real, pois que se tratava de um exercício feito
na e em aula, envolvendo participativamente, os alunos e a professora.
Sempre pensei que caberia
mais tarde, ao então aluno, portador de alguns estudos sobre a matéria, fazer a
sua própria filtragem, a sua escolha e a sua selecção de autores e de textos
que, para ele, melhor consagram ou consagraram a “poesis” cabo-verdiana, dentro
de cada género. Desde o tipo lírico/amoroso/mornista, romântico, passando
pelo texto designado de poesia protestatória, de intervenção social, da
epopeia/heróica, indo à poesia narrativa e dramatizada. Enfim, fazer a escolha
do(s) poeta(s), “mais poeta” − permitam-me a graça − e o que produziu melhor
poesia no seu tempo e não só. Mas também, aquela que chegou à
actualidade ainda poesia...
Voltando às aulas, é minha
opinião, que quase todos os poetas estudados, e cada um a seu modo, no seu
tempo, nas suas circunstâncias e com as suas motivações, tratou nos textos
legados, a denominada “caboverdianidade” afinal, o traço identificativo e
distintivo da poesia feita nestas ilhas, ao longo de séculos.
E foi assim, durante largos
anos, o estudo da poesia cabo-verdiana nas escolas secundárias do país. Sob
invólucro “ideológico” ou querendo parecer isso, limitou-se em muitos casos, a
fruição plena do texto poético, pois o seu autor já vinha carimbado. Por outro
lado, sobrevalorizou-se o chamado poeta de circunstância, do protesto imediato.
Aquele cujos poemas estariam fatalmente circunscritos a um determinado momento
histórico, sem garantia de perenidade da poesia neles inscrita.
0 comentários:
Enviar um comentário