Por se tratar de um assunto
da maior importância para a sociedade cabo-verdiana ou dela merecedora de uma
prioridade alta, em termos de atendimento e de procura de soluções para a sua erradicação, volto a aflorá-lo neste
espaço.
Na minha opinião, este
problema já ganhou contornos, entre nós, para ser considerado anti-social,
anormal e com configuração, em muitos aspectos, de criminoso!
O drama está localizado.
Encontra-se nos dias de hoje mais generalizado, na faixa populacional mais
carente em escolarização/educação, oriunda ela própria de estrutura familiar
disfuncional, monoparental e, regra geral, de menos rendimento económico. Como
se de um círculo vicioso se tratasse. Numa palavra e resumindo: na camada
social mais pobre e menos escolarizada, de Cabo Verde.
Urge extirpar do nosso meio
este autêntico “cancro” social que afecta larga faixa da população. É grande o
mal que faz e vem fazendo às crianças trazidas ao mundo, nestas condições.
Note-se que se trata da faixa da
população que, regra geral, tem mais filhos.
A este propósito tomei a
liberdade - com a devida vénia à autora do texto e ao Jornal «Expresso das
Ilhas» - de transcrever a reportagem que achei ilustrativa:
“Paternidade
- Pensão de alimentos: um cheque a zeros
Escrito
por Sara Almeida, Expresso das Ilhas
-
Edição 703 de 20 de Maio de 2015 -
Progenitores
que se escusam a apoiar financeira e afectivamente os filhos são comuns em Cabo
Verde. Mas se do ponto de vista do afecto - e embora esta seja a vertente
fulcral - não há mecanismos legais que obriguem a esse apoio, o mesmo não se
passa quando o assunto é dinheiro. A pensão de alimentos é um direito legal da
criança. Um direito desrespeitado diariamente, sendo que as causas dessa
transgressão são muitas. Vão da má-fé do pai (ou da mãe), ao orgulho da mãe (ou
do pai), passando por problemas actuais mais alargados como a má conjuntura
económica. No olho do furação, há parte de uma geração à deriva, com o futuro
comprometido.
F. é vendedeira e a flor da idade já passou,
mas não levou com ela a sua garra. Trabalha de sol a sol, para garantir o único
sustento de uma casa de seis: ela e mais cinco filhos, quatro dos quais
menores. Dos três progenitores da sua prole, nada recebe. Um deles (e apenas
um) durante os primeiros tempos pós-separação, quando tinha dinheiro ainda dava
algum. Depois, quando ela engravidou de outro homem, deixou de o fazer. Mas,
orgulhosa, F. garante que não precisa. Graças ao seu trabalho, em sua casa,
ninguém passa fome.
“Deus
me dê saúde, que o resto faço eu. Nunca precisei de ninguém”, diz de rosto
alteado. Cinco filhos, três pais, nenhuma ajuda.
A
realidade de F. e filhos é semelhante à de várias famílias. Em termos de
percentagem de pais que não contribuem para o sustento dos filhos, não
encontramos dados concretos. Mas o Censo 2010 apontava que mais de metade das
crianças vive sem o pai (53,3%). E conhecendo um pouco da realidade
cabo-verdiana, é fácil presumir que que uma elevada percentagem também não terá
nenhum apoio, sequer financeiro, por parte do progenitor.
Basta
ir a uma escola para perceber a dimensão deste problema. Na Escola Secundária
Pedro Gomes (Praia), por exemplo, estudam cerca de 1600 alunos e “o grosso dos
alunos não tem apoio dos pais. Podemos constatar isso no acto da estipulação
das propinas”, observa Sandra Querido, Responsável pelos Assuntos Sociais e
Comunitários da Pedro Gomes.
Quando
são analisados os documentos, verifica-se pois que não têm esse apoio e mais:
“muitos nem sabem onde o pai anda, o que faz, se trabalha ou não”.
Quando C. engravidou, o pai do seu filho disse
que o não era. Tinha sido o seu primeiro amor, e único homem até então. Ficou
tão magoada que, mesmo quando o ex-namorado se arrependeu da sua atitude - e cedeu em perfilhar o filho – nunca pediu
pensão alguma. Diz que com o que ganha como empregada doméstica (12 contos
brutos) e com a ajuda que recebe da família- principalmente da mãe emigrada,
não precisa. Recusa-se mesmo.
Há
muitas mulheres que, embora precisem, por orgulho, nada exigem. Nem todos são
como C., que recusa, simplesmente não o
pedem.
Também
aos serviços de acção social da Pedro Gomes chegam mães a garantir que o pai
não contribui com nada. E orgulhosamente respondem: “não vou correr atrás”.
Há
o orgulho das mães, mas de facto elas não deveriam ter de “correr atrás”
daquilo a que os seus filhos têm direito.
Mentalidades
que é preciso mudar são, na realidade, o pior problema aqui. Ciúmes, rancor, e
uma gama de sentimentos negativos semelhantes, sobrepõe-se ao amor ao filho.
Ensombra-o. Da parte dos pais há, por exemplo, a ideia de que se pagar a
alimentação do filho, a mãe, com a qual já não tem nenhum relacionamento,
também vai comer. Com esse dinheiro vai ainda alimentar filhos de outros
homens, caso ela os tenha. E é pior ainda quando ela já arranjou outro
companheiro. Aí, ele estará a pagar para o outro homem também comer.
“Há
essa mentalidade”, reconhece o magistrado Pedro Borges. Na curadoria de menores
da Comarca da Praia, onde desempenhou funções de 2011 até ao fim do passado mês
de Abril, ouviu várias afirmações dessas. “Mas depois de se analisar acaba por
se chegar à conclusão de que isso não corresponde à verdade. Hoje temos um
nível de vida que é extremamente caro. Aqui, com 1500 ou 5000 escudos ninguém
consegue alimentar uma criança por mês, quanto mais alimentar outro homem,”
aponta.
Depois,
há outros entraves, completamente diferentes. Casos de pais, que apesar do seu
amor pelos filhos vêem-se sem nada para lhes oferecer. Então, “não visitam os
filhos porque não tem nada para dar. Ficam com vergonha”, conta o ex-curador de
menores.
Temos
falado essencialmente de mães. Isto porque o mais comum é que sejam elas a
“ficar” com os filhos após separação, mas também há casos em que os filhos
moram com os pais.
São
mais raros mas há. Na Escola Pedro Gomes, em cerca de 1600 alunos, menos de 20
vivem só com o pai – todos os outros vivem com a mãe ou com os avós. E, da
experiência desta professora, nesses casos, nenhuma mãe contribui. Além disso,
por norma são casos que por detrás trazem problemas mais complexos do que a
separação dos pais: conflitos da criança com a mãe, problemas da mãe, problemas
comportamentais da criança.
“Há
sempre um problema por detrás que leva a criança a ficar com o pai, pelo menos
aqui no nosso meio”, reitera a professora.
Seja
como for, o pai, quando tem a guarda do filho, tem também direito a receber a
mesma pensão. O que acontece é que, por orgulho – e talvez devido aos
estereótipos de masculinidade – o homem nunca exige à mãe que preste alimento.
Não quer.
No
meio disto tudo, esquece-se o fundamental. A pensão de alimentos é um direito
da criança, um “direito fundamental e não está na disponibilidade da mãe ou do
pai negar essa pensão”, relembra Pedro Borges.
O panorama, em termos de pagamento da pensão
de alimentos não é bom, reconhece o magistrado. Mas, embora haja pais que de
facto, simplesmente, não querem pagar, muitas vezes não é essa a situação. O
ex-curador acredita, aliás, que a maior parte dos pais assume ou quer assumir
as suas responsabilidades com os filhos.
“É
a conjuntura economia actual que muitas vezes obriga a que os pais não cumpram
as suas obrigações. Porque, querendo ou não, tem afectado grandemente a
situação dos pais em Cabo Verde”, analisa.
O
desemprego tem vindo a subir, galopante. Áreas como a da construção civil viram
os seus “postos de trabalho reduzidos consideravelmente”. Sem trabalho, não há
salário, e sem salário não há dinheiro. As pensões ficam por pagar.
“
E a situação é para piorar. Várias vezes eu recebi mães, famílias, que não têm
como suportar os filhos” e chegam ao desespero de pedir para que estas sejam
entregues ao Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA).
Porém
“institucionalizar crianças por causa de alimentos também não é solução”,
observa.
Os
problemas da economia também se reflectem na escola. Na Pedro Gomes, as
propinas variam entre os cerca de 1200 escudos anuais e 18 mil escudos,
dependendo do ciclo frequentado e dos rendimentos dos pais.
Quando
não há declarações de rendimentos de uma das partes (e como referido, muitas
vezes falta a do pai) é difícil estipular a propina. É ainda difícil saber se
há uma tentativa de driblar o sistema, para não pagar ou não.
Mas
esta escola conhece relativamente bem a realidade dos seus alunos. Esforça-se por isso, nomeadamente através
das visitas ao domicílio. E nota um descarrilamento das condições económicas,
que tem reflexo inclusive nas receitas da escola.
“Pelo menos na nossa escola, a nível de
emprego, cada vez é pior. Há pessoas que num ano apresentam o rendimento, mas
este ano nem trabalho têm. A situação está mesmo má”, conta Sandra Querido.
A
justiça, de olhos vendados, fica também de mãos atadas. Os pais deixam de pagar
e as mães dirigem-se à curadoria de menores (ou procuradoria no caso de outras
comarcas que não a da Praia). O pai declara: “estou desempregado, não tenho
rendimentos”. O que fazer?
Toda
esta situação desemboca, porém, em injustiça. Isto porque, se ao pais sem
trabalho já não pode ser exigido apoio monetário, a mãe, também sem
rendimentos, é obrigada a desenrascar-se para arranjar o pão dos filhos.
“As
mães têm sido muito sofredoras, nessa parte”, lamenta Pedro Borges. “É
extremamente difícil, e nós sentimos isso”.
Na realidade, Cabo Verde sempre foi país de
pais ausentes. Mas as mudanças em todo o tecido social criaram uma estrutura
(ou falta dela) que não suporta esta ausência. Pedro Borges aponta, como um dos
factores principais desta mudança, o êxodo rural. Nas cidades, os modos de subsistência
são outros, e já não há um familiar por perto para olhar pela criança, quando a
mãe está a trabalhar.
“E
as crianças ficam desprotegidas”.
A
mãe vai à luta. Faz-se à vida. Sai de manhã cedo de casa e chega à noite.
Cansada, sem capacidade de diálogo ou de preocupação efectiva sobre a educação.
Nada sabe do que os filhos fizeram na sua ausência. E essa ausência, considera
o ex- curador de menores Pedro Borges, está intimamente ligada ao aumento da
criminalidade juvenil.
Com
mais rendimento – como o proporcionado pela pensão - eventualmente menos horas
de trabalho seriam necessárias. Mais apoio poderia ser dado ou (pior mas
válido) terceirizado em locais que não a escola.
Embora
a parte económica seja importante, na realidade nem sequer parece ser a mais
importante. A ausência da figura paterna a outros níveis é-o mais, concordam os
entrevistados.
“A
maior parte das crianças sente muito a falta do pai”, daquilo que “o dinheiro
não compra”, considera Sandra Querido. Na educação dos filhos, então, é assombrosa
essa falta de interesse paternal.
E,
no geral, a ausência da figura paterna, na vida das crianças, tem reflexo no
aproveitamento escolar. “Fizemos uma pesquisa dos alunos que têm um
comportamento não adequado e vimos que a maioria não vive com o pai, vive só com a
mãe”, que trabalha e passa o dia fora, aponta a professora.
“Alguns
mostram essa falta que sentem, da forma mais errada que é com a indisciplina. E
quando entram no caminho da indisciplina não têm aproveitamento escolar e
acabam por engrossar a lista daqueles que depois abandonam a escola”, observa.
Abandonam
os estudos. E depois? Alguns vão trabalhar. A nível de trabalho infantil, ainda
segundo dados do Censo 2010, cerca de 63% dos menores que trabalham vivem sem o
pai – a maioria portanto. Outros entram na delinquência e criminalidade.
E
tudo “isto vai afectar as crianças no futuro”.
Sem estudos, sem orientação, futuro comprometido.
Mesmo
os que continuam os estudos secundários têm depois mais dificuldades em
prosseguir no ensino superior. Com sorte e alguma ajuda (a Pedro Gomes, por
exemplo, já “tem estado a trabalhar no sentido de arranjar bolsas para os que
têm boas notas”) talvez consigam. Mas geralmente têm de trabalhar. Muitos
acabam por desistir.” Fim da transcrição.
Repare bem, caro leitor, o
que dizem as estatísticas (dados do Censo de 2010) sobre a composição da
famiília cabo-verdiana. Mais de 53% (parece-me que a percentagem, infelizmente,
é bem mais alta) das crianças, vivem sem a presença do pai em casa. Não conhecem,
ou desconhecem por completo, esta figura tutelar tão importante e estruturadora
em todos os níveis da socialização afectiva, educativa e organizadora da vida
dela! No fundo, são etapas de vida completas e irreversivelmente queimadas! O
pai “passa-lhe ao lado,” literalmente falando. Sem dela querer saber.
A mãe só, e portadora de
muitos filhos, quase sempre de vários
progenitores. Outro drama que deve ser acautelado, prevenido e
despistado na educação dos adolescentes e
dos jovens.
Resultado: crianças quase
entregues a si próprias, ao “Deus dará” e que facilmente resvalam para a
marginalidade, para a delinquência e para a criminalidade.
Torna-se premente encarar
com muita seriedade o planeamento familiar e não permitir que seja “letra
morta” entre nós.
Enfim, com tudo isto em
presença, questiona-se: Que esperar do futuro de um país que apresenta esta
(des)configuração familiar? Disfuncional, monoparental e desprovida de
educação!... Que cidadania, quando numa parte significativa da população, a noção
e a vivência de família nuclear se eclipsa, se apaga, não existe? Quando não se
cuida da infância totalmente desvalida?
Enquanto esta vergonha
social continuar a ensombrar a organização familiar e social destas ilhas,
escusemo-nos de vãs glórias, de proclamar aos quatro ventos que estamos
desenvolvidos, civilizados e quejandos... Não, assim não os seremos jamais! E
não os seremos enquanto não se pegar na problemática da família e levá-la a
sério. Colham-se, estudem-se e adaptem-se os bons exemplos de países que
debelaram esta tragédia!
Desde há muito que se vem
pedindo isso!
As ilhas Maurícias, para
exemplo, e se não estou em erro, tratou este problema com alguma eficácia
notável.
Já houve muitas
oportunidades perdidas para nós. O que é lamentável. Mas nunca será demasiado
tarde, para se procurarem e se tratarem as causas que neste particular,
tão gravemente afectam e interpelam a
sociedade cabo-verdiana.
A UNICEF bem que podia
assentar “arraiais” aqui. Eu sei e comprendo que considere o país pequeno demais para nele criar um
observatório, ou algo similar, e monotorizar expressamente este enorme drama,
por que passa Cabo Verde. Mas o facto é que Cabo Verde precisa, necessita com
muita urgência, de uma atenção muito grande, mas mesmo muito grande, por parte
de organismos que cuidam da causa da Criança e da Família.
0 comentários:
Enviar um comentário