Quando a parentalidade é mais do que irresponsável...

sexta-feira, 22 de maio de 2015

 

Por se tratar de um assunto da maior importância para a sociedade cabo-verdiana ou dela merecedora de uma prioridade alta, em termos de atendimento e de procura de soluções para a  sua erradicação, volto a aflorá-lo neste espaço.

Na minha opinião, este problema já ganhou contornos, entre nós, para ser considerado anti-social, anormal e com configuração, em muitos aspectos, de criminoso!

O drama está localizado. Encontra-se nos dias de hoje mais generalizado, na faixa populacional mais carente em escolarização/educação, oriunda ela própria de estrutura familiar disfuncional, monoparental e, regra geral, de menos rendimento económico. Como se de um círculo vicioso se tratasse. Numa palavra e resumindo: na camada social mais pobre e menos escolarizada, de Cabo Verde. 

Urge extirpar do nosso meio este autêntico “cancro” social que afecta larga faixa da população. É grande o mal que faz e vem fazendo às crianças trazidas ao mundo, nestas condições. Note-se que se trata da  faixa da população que, regra geral, tem mais filhos.

A este propósito tomei a liberdade - com a devida vénia à autora do texto e ao Jornal «Expresso das Ilhas» - de transcrever a reportagem que achei ilustrativa:

“Paternidade - Pensão de alimentos: um cheque a zeros

            Escrito por  Sara Almeida, Expresso das Ilhas

            - Edição 703 de 20 de Maio de 2015 -

Progenitores que se escusam a apoiar financeira e afectivamente os filhos são comuns em Cabo Verde. Mas se do ponto de vista do afecto - e embora esta seja a vertente fulcral - não há mecanismos legais que obriguem a esse apoio, o mesmo não se passa quando o assunto é dinheiro. A pensão de alimentos é um direito legal da criança. Um direito desrespeitado diariamente, sendo que as causas dessa transgressão são muitas. Vão da má-fé do pai (ou da mãe), ao orgulho da mãe (ou do pai), passando por problemas actuais mais alargados como a má conjuntura económica. No olho do furação, há parte de uma geração à deriva, com o futuro comprometido.

 F. é vendedeira e a flor da idade já passou, mas não levou com ela a sua garra. Trabalha de sol a sol, para garantir o único sustento de uma casa de seis: ela e mais cinco filhos, quatro dos quais menores. Dos três progenitores da sua prole, nada recebe. Um deles (e apenas um) durante os primeiros tempos pós-separação, quando tinha dinheiro ainda dava algum. Depois, quando ela engravidou de outro homem, deixou de o fazer. Mas, orgulhosa, F. garante que não precisa. Graças ao seu trabalho, em sua casa, ninguém passa fome.

“Deus me dê saúde, que o resto faço eu. Nunca precisei de ninguém”, diz de rosto alteado. Cinco filhos, três pais, nenhuma ajuda.

A realidade de F. e filhos é semelhante à de várias famílias. Em termos de percentagem de pais que não contribuem para o sustento dos filhos, não encontramos dados concretos. Mas o Censo 2010 apontava que mais de metade das crianças vive sem o pai (53,3%). E conhecendo um pouco da realidade cabo-verdiana, é fácil presumir que que uma elevada percentagem também não terá nenhum apoio, sequer financeiro, por parte do progenitor.

Basta ir a uma escola para perceber a dimensão deste problema. Na Escola Secundária Pedro Gomes (Praia), por exemplo, estudam cerca de 1600 alunos e “o grosso dos alunos não tem apoio dos pais. Podemos constatar isso no acto da estipulação das propinas”, observa Sandra Querido, Responsável pelos Assuntos Sociais e Comunitários da Pedro Gomes.

Quando são analisados os documentos, verifica-se pois que não têm esse apoio e mais: “muitos nem sabem onde o pai anda, o que faz, se trabalha ou não”.

 Quando C. engravidou, o pai do seu filho disse que o não era. Tinha sido o seu primeiro amor, e único homem até então. Ficou tão magoada que, mesmo quando o ex-namorado se arrependeu da sua atitude  - e cedeu em perfilhar o filho – nunca pediu pensão alguma. Diz que com o que ganha como empregada doméstica (12 contos brutos) e com a ajuda que recebe da família- principalmente da mãe emigrada, não precisa. Recusa-se mesmo.

Há muitas mulheres que, embora precisem, por orgulho, nada exigem. Nem todos são como  C., que recusa, simplesmente não o pedem.

Também aos serviços de acção social da Pedro Gomes chegam mães a garantir que o pai não contribui com nada. E orgulhosamente respondem: “não vou correr atrás”.

Há o orgulho das mães, mas de facto elas não deveriam ter de “correr atrás” daquilo a que os seus filhos têm direito.

Mentalidades que é preciso mudar são, na realidade, o pior problema aqui. Ciúmes, rancor, e uma gama de sentimentos negativos semelhantes, sobrepõe-se ao amor ao filho. Ensombra-o. Da parte dos pais há, por exemplo, a ideia de que se pagar a alimentação do filho, a mãe, com a qual já não tem nenhum relacionamento, também vai comer. Com esse dinheiro vai ainda alimentar filhos de outros homens, caso ela os tenha. E é pior ainda quando ela já arranjou outro companheiro. Aí, ele estará a pagar para o outro homem também comer.

“Há essa mentalidade”, reconhece o magistrado Pedro Borges. Na curadoria de menores da Comarca da Praia, onde desempenhou funções de 2011 até ao fim do passado mês de Abril, ouviu várias afirmações dessas. “Mas depois de se analisar acaba por se chegar à conclusão de que isso não corresponde à verdade. Hoje temos um nível de vida que é extremamente caro. Aqui, com 1500 ou 5000 escudos ninguém consegue alimentar uma criança por mês, quanto mais alimentar outro homem,” aponta.

Depois, há outros entraves, completamente diferentes. Casos de pais, que apesar do seu amor pelos filhos vêem-se sem nada para lhes oferecer. Então, “não visitam os filhos porque não tem nada para dar. Ficam com vergonha”, conta o ex-curador de menores.

Temos falado essencialmente de mães. Isto porque o mais comum é que sejam elas a “ficar” com os filhos após separação, mas também há casos em que os filhos moram com os pais.

São mais raros mas há. Na Escola Pedro Gomes, em cerca de 1600 alunos, menos de 20 vivem só com o pai – todos os outros vivem com a mãe ou com os avós. E, da experiência desta professora, nesses casos, nenhuma mãe contribui. Além disso, por norma são casos que por detrás trazem problemas mais complexos do que a separação dos pais: conflitos da criança com a mãe, problemas da mãe, problemas comportamentais da criança.

“Há sempre um problema por detrás que leva a criança a ficar com o pai, pelo menos aqui no nosso meio”, reitera a professora.

Seja como for, o pai, quando tem a guarda do filho, tem também direito a receber a mesma pensão. O que acontece é que, por orgulho – e talvez devido aos estereótipos de masculinidade – o homem nunca exige à mãe que preste alimento. Não quer.

No meio disto tudo, esquece-se o fundamental. A pensão de alimentos é um direito da criança, um “direito fundamental e não está na disponibilidade da mãe ou do pai negar essa pensão”, relembra Pedro Borges.

 O panorama, em termos de pagamento da pensão de alimentos não é bom, reconhece o magistrado. Mas, embora haja pais que de facto, simplesmente, não querem pagar, muitas vezes não é essa a situação. O ex-curador acredita, aliás, que a maior parte dos pais assume ou quer assumir as suas responsabilidades com os filhos.

“É a conjuntura economia actual que muitas vezes obriga a que os pais não cumpram as suas obrigações. Porque, querendo ou não, tem afectado grandemente a situação dos pais em Cabo Verde”, analisa.

O desemprego tem vindo a subir, galopante. Áreas como a da construção civil viram os seus “postos de trabalho reduzidos consideravelmente”. Sem trabalho, não há salário, e sem salário não há dinheiro. As pensões ficam por pagar.

“ E a situação é para piorar. Várias vezes eu recebi mães, famílias, que não têm como suportar os filhos” e chegam ao desespero de pedir para que estas sejam entregues ao Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA).

Porém “institucionalizar crianças por causa de alimentos também não é solução”, observa.

Os problemas da economia também se reflectem na escola. Na Pedro Gomes, as propinas variam entre os cerca de 1200 escudos anuais e 18 mil escudos, dependendo do ciclo frequentado e dos rendimentos dos pais.

Quando não há declarações de rendimentos de uma das partes (e como referido, muitas vezes falta a do pai) é difícil estipular a propina. É ainda difícil saber se há uma tentativa de driblar o sistema, para não pagar ou não.

Mas esta escola conhece relativamente bem a realidade dos seus alunos. Esforça-se por isso, nomeadamente através das visitas ao domicílio. E nota um descarrilamento das condições económicas, que tem reflexo inclusive nas receitas da escola.

 “Pelo menos na nossa escola, a nível de emprego, cada vez é pior. Há pessoas que num ano apresentam o rendimento, mas este ano nem trabalho têm. A situação está mesmo má”, conta Sandra Querido.

A justiça, de olhos vendados, fica também de mãos atadas. Os pais deixam de pagar e as mães dirigem-se à curadoria de menores (ou procuradoria no caso de outras comarcas que não a da Praia). O pai declara: “estou desempregado, não tenho rendimentos”. O que fazer?

Toda esta situação desemboca, porém, em injustiça. Isto porque, se ao pais sem trabalho já não pode ser exigido apoio monetário, a mãe, também sem rendimentos, é obrigada a desenrascar-se para arranjar o pão dos filhos.

“As mães têm sido muito sofredoras, nessa parte”, lamenta Pedro Borges. “É extremamente difícil, e nós sentimos isso”.

 Na realidade, Cabo Verde sempre foi país de pais ausentes. Mas as mudanças em todo o tecido social criaram uma estrutura (ou falta dela) que não suporta esta ausência. Pedro Borges aponta, como um dos factores principais desta mudança, o êxodo rural. Nas cidades, os modos de subsistência são outros, e já não há um familiar por perto para olhar pela criança, quando a mãe está a trabalhar.

“E as crianças ficam desprotegidas”.

A mãe vai à luta. Faz-se à vida. Sai de manhã cedo de casa e chega à noite. Cansada, sem capacidade de diálogo ou de preocupação efectiva sobre a educação. Nada sabe do que os filhos fizeram na sua ausência. E essa ausência, considera o ex- curador de menores Pedro Borges, está intimamente ligada ao aumento da criminalidade juvenil.

Com mais rendimento – como o proporcionado pela pensão - eventualmente menos horas de trabalho seriam necessárias. Mais apoio poderia ser dado ou (pior mas válido) terceirizado em locais que não a escola.

Embora a parte económica seja importante, na realidade nem sequer parece ser a mais importante. A ausência da figura paterna a outros níveis é-o mais, concordam os entrevistados.

“A maior parte das crianças sente muito a falta do pai”, daquilo que “o dinheiro não compra”, considera Sandra Querido. Na educação dos filhos, então, é assombrosa essa falta de interesse paternal.

E, no geral, a ausência da figura paterna, na vida das crianças, tem reflexo no aproveitamento escolar. “Fizemos uma pesquisa dos alunos que têm um comportamento não  adequado e vimos que a  maioria não vive com o pai, vive só com a mãe”, que trabalha e passa o dia fora, aponta a professora.

“Alguns mostram essa falta que sentem, da forma mais errada que é com a indisciplina. E quando entram no caminho da indisciplina não têm aproveitamento escolar e acabam por engrossar a lista daqueles que depois abandonam a escola”, observa.

Abandonam os estudos. E depois? Alguns vão trabalhar. A nível de trabalho infantil, ainda segundo dados do Censo 2010, cerca de 63% dos menores que trabalham vivem sem o pai – a maioria portanto. Outros entram na delinquência e criminalidade.

E tudo “isto vai afectar as crianças no futuro”.  Sem estudos, sem orientação, futuro comprometido.

Mesmo os que continuam os estudos secundários têm depois mais dificuldades em prosseguir no ensino superior. Com sorte e alguma ajuda (a Pedro Gomes, por exemplo, já “tem estado a trabalhar no sentido de arranjar bolsas para os que têm boas notas”) talvez consigam. Mas geralmente têm de trabalhar. Muitos acabam por desistir.” Fim da transcrição.

 

 
Nota Final:

Repare bem, caro leitor, o que dizem as estatísticas (dados do Censo de 2010) sobre a composição da famiília cabo-verdiana. Mais de 53% (parece-me que a percentagem, infelizmente, é bem mais alta) das crianças, vivem sem a presença do pai em casa. Não conhecem, ou desconhecem por completo, esta figura tutelar tão importante e estruturadora em todos os níveis da socialização afectiva, educativa e organizadora da vida dela! No fundo, são etapas de vida completas e irreversivelmente queimadas! O pai “passa-lhe ao lado,” literalmente falando. Sem dela querer saber.

A mãe só, e portadora de muitos filhos, quase sempre de vários  progenitores. Outro drama que deve ser acautelado, prevenido e despistado na educação dos adolescentes e  dos jovens.

Resultado: crianças quase entregues a si próprias, ao “Deus dará” e que facilmente resvalam para a marginalidade, para a delinquência e para a criminalidade.

Torna-se premente encarar com muita seriedade o planeamento familiar e não permitir que seja “letra morta” entre nós.

Enfim, com tudo isto em presença, questiona-se: Que esperar do futuro de um país que apresenta esta (des)configuração familiar? Disfuncional, monoparental e desprovida de educação!... Que cidadania, quando numa parte significativa da população, a noção e a vivência de família nuclear se eclipsa, se apaga, não existe? Quando não se cuida da infância totalmente desvalida?

Enquanto esta vergonha social continuar a ensombrar a organização familiar e social destas ilhas, escusemo-nos de vãs glórias, de proclamar aos quatro ventos que estamos desenvolvidos, civilizados e quejandos... Não, assim não os seremos jamais! E não os seremos enquanto não se pegar na problemática da família e levá-la a sério. Colham-se, estudem-se e adaptem-se os bons exemplos de países que debelaram esta tragédia!

Desde há muito que se vem pedindo isso!

As ilhas Maurícias, para exemplo, e se não estou em erro, tratou este problema com alguma eficácia notável.

Já houve muitas oportunidades perdidas para nós. O que é lamentável. Mas nunca será demasiado tarde, para se procurarem e se tratarem as causas que neste particular, tão  gravemente afectam e interpelam a sociedade cabo-verdiana.

A UNICEF bem que podia assentar “arraiais” aqui. Eu sei e comprendo que considere o país  pequeno demais para nele criar um observatório, ou algo similar, e monotorizar expressamente este enorme drama, por que passa Cabo Verde. Mas o facto é que Cabo Verde precisa, necessita com muita urgência, de uma atenção muito grande, mas mesmo muito grande, por parte de organismos que cuidam da causa da Criança e da Família.

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