TEMPO DAS FRAMBOESAS

terça-feira, 19 de maio de 2015

 

 

 

Por este tempo de Maio, o da frutificação das framboesas, é quando mais me apercebo da existência de um pequeno “nicho ecológico” nas traseiras do meu prédio. É um vasto quintal anexado a uma antiga casa térrea, complexo que foi posto à venda mas ainda resistindo heroicamente à padronização do betão.

Esse quintal é um recanto onde os melros predominam entre outros seres alados que ali habitam. Da sua baixa vedação pendem  ramificações de framboesas silvestres, que se carregam de frutos maduros por alturas de Maio e Junho. Coisa rara nestes tempos, um repouso restaurador dos olhos e da mente ao fim de um dia de canseira ou de ócio inexplicavelmente desgastante.

 

O dono era um velhote de cabelo branco como a neve, que tinha nesse espaço um universo concentracionário, onde fazia a contabilidade diária das suas predilecções, dos seus devaneios e dos seus sonhos antigos. Chamava-se Pina, mas pouco ou nada eu conhecia da sua vida pessoal, senão o reflexo nos seus olhos das cores alegres da primavera. A idade já avançada não o tolhia de modo algum, cavava, semeava, regava, podava, quando não ficava horas seguidas a olhar, embevecido, para os pássaros, os seus e outros que ali pousam e trazem alvíssaras de outras terras. Apercebi-me de que esses animais não se intimidavam com aquela presença humana, antes pelo contrário pareciam cada vez mais atraídos para o lugar, certamente descobrindo encantamentos que escapam aos nossos sentidos. Os melros passaram a ser tantos que uma verdadeira orquestra ali se instalou com todos os aparatos, dando um espectáculo de sonho todas as primaveras.

 

Estacionava o meu carro ali perto, e sempre que calhava trocava com o senhor Pina  dois dedos de conversa de circunstância. Ninguém lhe dava a idade que tinha, tal a agilidade com que subia às árvores ou manejava a ferramenta agrícola. Mas ele tanto se punha em trajos de circunstância para aquele lugar de reencontro consigo próprio como se aperaltava com requintes mais burgueses para os seus momentos de vida social. Mas um dia verifiquei que o senhor Pina pareceu não me reconhecer quando lhe falei. Porém, os dias continuaram a fluir naquela rotina do homem feliz no seu recolhimento ecológico. Noutra ocasião, voltou a ter para comigo mais um procedimento incoerente, mostrando-se alheio ao fiozinho pessoal que eu também queria tecer naquele lugar com o meu espanto de citadino e o meu preito ao homem e à natureza. Depois desapareceu e não mais o voltei a ver.

 

Viria então a saber que lhe fora diagnosticada doença de Alzheimer e por isso internado num lar. Compreendi a razão por que me parecera que um qualquer invisível interruptor cortara a luz humana que iluminava aquele lugar. Não durou muito o seu internamento, pois a morte abreviou a injusta escuridão sentenciada a quem tanto amara a luz, a terra e os pássaros. Depois li num dos jornais da cidade, não me lembro já qual, um poema em que uma neta recordava e homenageava a natureza solar do avô, a sua simplicidade, a sua bondade e a sua ternura para com todos os seres do planeta. Nessa altura, conhecendo eu a razão e o sentido dos versos, perguntei-me se uma das nossas grandes angústias não é uma fugaz ilusão da intemporalidade em que a ambivalência das nossas sensações nos faz cair.

 

Para os melros não deve existir o princípio e o fim das coisas, assistem impávidos à contagem das nascentes e poentes que se sucedem. Continuam a embevecer-nos todos os anos com o seu canto pletórico, num palco já não enfeitado à maneira do senhor Pina, mas entregue à entropia a que pertencem os bichos e as plantas. Não posso dizer ao certo, mas é possível que eles sintam a falta do olhar manso e apaziguador daquele ser que se comportava com a mesma solícita naturalidade das oliveiras em que pousavam o seu cansaço. E vem a propósito recordar as seguintes palavras de Proust: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício da recordação”.

 

Quanto às framboesas, todos os anos, na época própria, elas pendem, sobranceiras e carregadas de viço, sobre a vedação que envolve o nicho. Antigamente, a minha mulher colhia uma mancheia delas quando ali passava entre o estacionamento do carro e a casa. Apenas para sentir  o afago da sua macieza e o deslumbre do seu vermelho cativante. Mas isso tinha mais gosto quando o senhor Pina reinava no lugar.

 

Ele hoje já não faz parte do nicho, mas é possível que lá esteja, pois a sua presença ou ausência na memória do lugar escapam à cartografia do simples olhar humano. Pertencem à dimensão incapturável do inconsciente, ali onde tudo é transferível  para a poesia.

 

 

Tomar,  Maio de 2015

 

Adriano Miranda Lima

 

 

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