Por este tempo de Maio, o da frutificação
das framboesas, é quando mais me apercebo da existência de um pequeno “nicho
ecológico” nas traseiras do meu prédio. É um vasto quintal anexado a uma antiga
casa térrea, complexo que foi posto à venda mas ainda resistindo heroicamente à
padronização do betão.
Esse quintal é um recanto onde os melros
predominam entre outros seres alados que ali habitam. Da sua baixa vedação
pendem ramificações de framboesas
silvestres, que se carregam de frutos maduros por alturas de Maio e Junho.
Coisa rara nestes tempos, um repouso restaurador dos olhos e da mente ao fim de
um dia de canseira ou de ócio inexplicavelmente desgastante.
O dono era um velhote de cabelo branco como
a neve, que tinha nesse espaço um universo concentracionário, onde fazia a
contabilidade diária das suas predilecções, dos seus devaneios e dos seus
sonhos antigos. Chamava-se Pina, mas pouco ou nada eu conhecia da sua vida
pessoal, senão o reflexo nos seus olhos das cores alegres da primavera. A idade
já avançada não o tolhia de modo algum, cavava, semeava, regava, podava, quando
não ficava horas seguidas a olhar, embevecido, para os pássaros, os seus e
outros que ali pousam e trazem alvíssaras de outras terras. Apercebi-me de que
esses animais não se intimidavam com aquela presença humana, antes pelo contrário
pareciam cada vez mais atraídos para o lugar, certamente descobrindo
encantamentos que escapam aos nossos sentidos. Os melros passaram a ser tantos
que uma verdadeira orquestra ali se instalou com todos os aparatos, dando um
espectáculo de sonho todas as primaveras.
Estacionava o meu carro ali perto, e sempre
que calhava trocava com o senhor Pina
dois dedos de conversa de circunstância. Ninguém lhe dava a idade que
tinha, tal a agilidade com que subia às árvores ou manejava a ferramenta
agrícola. Mas ele tanto se punha em trajos de circunstância para aquele lugar
de reencontro consigo próprio como se aperaltava com requintes mais burgueses
para os seus momentos de vida social. Mas um dia verifiquei que o senhor Pina
pareceu não me reconhecer quando lhe falei. Porém, os dias continuaram a fluir
naquela rotina do homem feliz no seu recolhimento ecológico. Noutra ocasião,
voltou a ter para comigo mais um procedimento incoerente, mostrando-se alheio
ao fiozinho pessoal que eu também queria tecer naquele lugar com o meu espanto
de citadino e o meu preito ao homem e à natureza. Depois desapareceu e não mais
o voltei a ver.
Viria então a saber que lhe fora
diagnosticada doença de Alzheimer e por isso internado num lar. Compreendi a
razão por que me parecera que um qualquer invisível interruptor cortara a luz
humana que iluminava aquele lugar. Não durou muito o seu internamento, pois a
morte abreviou a injusta escuridão sentenciada a quem tanto amara a luz, a
terra e os pássaros. Depois li num dos jornais da cidade, não me lembro já
qual, um poema em que uma neta recordava e homenageava a natureza solar do avô,
a sua simplicidade, a sua bondade e a sua ternura para com todos os seres do
planeta. Nessa altura, conhecendo eu a razão e o sentido dos versos, perguntei-me
se uma das nossas grandes angústias não é uma fugaz ilusão da intemporalidade
em que a ambivalência das nossas sensações nos faz cair.
Para os melros não deve existir o princípio
e o fim das coisas, assistem impávidos à contagem das nascentes e poentes que
se sucedem. Continuam a embevecer-nos todos os anos com o seu canto pletórico,
num palco já não enfeitado à maneira do senhor Pina, mas entregue à entropia a
que pertencem os bichos e as plantas. Não posso dizer ao certo, mas é possível
que eles sintam a falta do olhar manso e apaziguador daquele ser que se
comportava com a mesma solícita naturalidade das oliveiras em que pousavam o
seu cansaço. E vem a propósito recordar as seguintes palavras de Proust:
“Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas
e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais
imateriais, mais persistentes, mais fiéis, – o odor e o sabor permanecem ainda
por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas
de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício
da recordação”.
Quanto às framboesas, todos os anos, na
época própria, elas pendem, sobranceiras e carregadas de viço, sobre a vedação
que envolve o nicho. Antigamente, a minha mulher colhia uma mancheia delas
quando ali passava entre o estacionamento do carro e a casa. Apenas para
sentir o afago da sua macieza e o
deslumbre do seu vermelho cativante. Mas isso tinha mais gosto quando o senhor
Pina reinava no lugar.
Ele hoje já não faz parte do nicho, mas é
possível que lá esteja, pois a sua presença ou ausência na memória do lugar
escapam à cartografia do simples olhar humano. Pertencem à dimensão
incapturável do inconsciente, ali onde tudo é transferível para a poesia.
Tomar, Maio de 2015
Adriano Miranda
Lima
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