Leiam o Artigo que se segue e que nos interpela, da
autoria de Adriano Miranda Lima. Publicado
no «Arrozcatum» blogue de Zito Azevedo.
Relativamente
a paz social, definamo-la, de um ponto de vista sociológico, como convivência
harmoniosa entre os vários estratos sociais ou ausência de conflitos
determinados por conturbação política ou sindical. Contudo, uma outra face da
problemática social, acaso recôndita, pode revestir similitudes com uma
verdadeira conflitualidade. É quando um governo naufraga na resolução dos
problemas sociais, não impedindo que o desemprego, a marginalidade, a exclusão
e a desesperança invadam o quotidiano das pessoas mais desprotegidas. Com
efeito, ao olharmos para a forma galopante como vêm crescendo a delinquência e
a criminalidade em Cabo Verde, com níveis preocupantes a assolar a capital do
país, não podemos deixar de relacionar o fenómeno com a inépcia do sistema
político. Vistas assim as coisas, não sejamos ingénuos para nos vangloriarmos
de paz social quando fenómenos mais restritos mas não menos agudos nas suas
incidências são capazes de perturbar o nosso viver, com consequências nefastas
na tranquilidade dos cidadãos e até no funcionamento de alguns sectores da
economia, como é o caso especial do turismo.
Quanto à
democracia instituída no país, tem de se perguntar em que extensão a nossa
práxis política reflecte as potencialidades virtuosas deste sistema de
governação que Churchill considerou ser o pior de todos com excepção de todos
os outros. Mas a pergunta não é inocente e implicará ir à génese da actual
democracia cabo-verdiana, para procurarmos conhecer um pouco da sua natureza
intrínseca.
Ora, a
democracia é como um jardim que se semeia, rega, aduba e poda, e se trata em
permanência, sob pena de murchar e tornar-se algo ressequido e inerte,
frustrando as expectativas. A nossa democracia não teve a fase inicial do seu
cultivo, não se preparou o terreno, não se lançaram sementes, não se regou. A
liberdade política foi devolvida ao povo em 1974, mas depressa ela foi sonegada
por intromissão de um regime de partido único que afastou da concorrência
outras forças que então se organizaram acreditando que a palavra seria dada
inteiramente ao povo soberano para decidir em livre escrutínio sobre o seu
destino. De facto, o sonho de uma sociedade plural não viria a realizar-se e,
com a ascensão do PAIGC ao poder, foi suprimido o exercício da cidadania,
morreu qualquer aspiração de associativismo cívico, instalou-se o medo na
sociedade e a repressão política regressou em moldes idênticos aos dos tempos
coloniais. Desta maneira, no período que decorre de finais de 1974 a 1990, a
sociedade cabo-verdiana viu-se privada dos direitos e liberdades fundamentais,
e, consequentemente, alienada da aprendizagem cívica e da pedagogia educativa
essenciais à afirmação da democracia, com todo o seu escol de virtudes, em que
os direitos se acotovelam com exigências e deveres.
Em 1990, por
alteração da conjuntura mundial, o partido único viu-se coagido a aceitar a
abertura política e iniciou-se o processo de transição democrática. Mas,
inevitavelmente, esta acontece de roldão, sem ser o corolário de um processo
natural e evolutivo sustentado num quotidiano de vivências sociais e de
práticas alicerçadas num sentimento partilhado de responsabilização colectiva.
Do mesmo modo que um jardim sem húmus adequado e sem rega não produz flores, a
nossa democracia era, no seu arranque, semelhante a um terreno árido, ainda por
lavrar. A resposta dada então pelo eleitorado nas urnas, em Janeiro de 1991,
terá consistido mais na rejeição do passado recente do que numa escolha clara e
inequívoca. Desta maneira, não surpreendeu a queda do PAICV e a vitória do MpD,
um partido neófito e criado por dissidentes do outro, que inaugura o primeiro
governo eleito por sufrágio universal e viria a ganhar mais um mandato nas
legislativas seguintes. Outras formações partidárias concorreram, nomeadamente
a UCID, criada em 1977 por cabo-verdianos da diáspora, como movimento de
oposição ao PAIGC/PAICV. No entanto, apesar da especial legitimidade política
que poderia invocar, não teve um score eleitoral que impedisse o MpD e o PAICV
de se perfilarem como os dois partidos mais destacados do arco do poder. E
assim vem acontecendo, sem que se vislumbrem grandes alterações no espectro
político-partidário.
Será, pois,
pertinente perguntar se com a abertura política a partir de 1990 a nossa
democracia passou a dispor de todas as condições básicas para se enraizar na
sociedade, estimulando a participação cívica dos cabo-verdianos e envolvendo-os
de forma dinâmica e interessada no processo de decisão política. Naturalmente
que todas as condições formais foram asseguradas. No essencial, as liberdades
cívicas passaram a ser respeitadas e desde então têm-no sido no plano
jurídico-institucional, embora não venham faltando acusações mútuas entre o MpD
e o PAICV de procedimentos tidos como fraude eleitoral em alguns escrutínios.
No entanto,
contrariamente ao que era suposto, é um facto que as liberdades não despertaram
desde logo as populações para a militância cívica que seria natural após tanto
tempo de mordaça: o tempo da ditadura salazarista/caetanista acrescido do tempo
do governo de partido único. É um fenómeno curioso que merecia ser objecto de
estudo: procurar apurar as razões por que a cidadania cabo-verdiana parece ter
ficado congelada em si mesma, inerte e descrente das suas virtualidades. Não
escapa a esta crítica nem o cidadão comum menos informado ou escolarizado, nem
a elite mais intelectualizada e socialmente responsável. Foram muito poucos os
que puseram o dedo nesta ferida, a denunciar a apatia cívica e o conformismo da
sociedade cabo-verdiana, e as vozes mais contundentes surgiram da diáspora,
mormente quando um grupo de cidadãos (Grupo de Reflexão para a regionalização de
Cabo Verde), a que pertenço, entendeu denunciar a excessiva centralização
política do Estado, com a agravante de uma concentração dos órgãos de soberania
num único lugar de um território de 9 parcelas descontínuas (habitadas). E
quando o poder beneficia de maioria parlamentar reiterada em eleições
consecutivas, mais abreviado fica o caminho para possíveis distorções na
linearidade da conduta do Estado, e nesse sentido o Dr. Arsénio de Pina julgou
bem quando, num dos seus artigos sobre a situação política e social do nosso
país, afirmou: “centralismo democrático e maioria absoluta não se conformam”.
Tudo isto ganha mais saliência se, efectivamente, uma mesma força política (o
PAICV) obtém 3 vitórias eleitorais consecutivas, consolidando a política
centralista e não dando o mínimo indício de reconsiderar a sua obstinada
postura face a sinais claros oriundos de alguns sectores da sociedade,
designadamente do Grupo atrás referido. Os efeitos têm sido perniciosos e são
reflexivos, antes de mais, sobre os cidadãos, que vêem a inoperância da Justiça
e a burocracia do Estado atrasarem ou obstaculizarem a fruição dos seus
direitos ou a resolução dos seus problemas, e, numa escala mais vasta, são
manifestamente letais sobre as legítimas aspirações de parcelas do território
que se vêem prejudicadas pela assimetria criada pela política centralizadora.
Uma pergunta
se oferece com a pertinência que cada um lhe quiser dar, naturalmente conforme
a filiação partidária; a saber. Em que medida a consecução de três vitórias
eleitorais seguidas, com a última em tempo de crise generalizada, sublinhe-se,
é mérito incontestável de quem a obteve ou é demérito declarado da oposição?
Ou, num sentido mais lato, até que ponto é isso também consequência de uma
cidadania demissionária ou acrítica, incapaz de um julgamento consciencioso da
acção governativa?
Um breve e
despretensioso balanço do governo ao longo destes últimos quinze anos,
dir-nos-á que houve uma aposta clara e assumida na infra-estruturação do país,
o que ninguém pode de boa mente negar. Mas, em contrapartida, o crescimento
económico abrandou consideravelmente, hoje bastante anémico, em parte devido à
crise mundial, mas também por insistência num modelo económico esgotado, que
pouco ou nada saiu ainda da reciclagem da ajuda externa. Por conseguinte, há
uma reforma profunda do Estado e da administração pública que está por fazer e
que os governos do PAICV não ousaram e da qual até fazem ouvidos moucos, mesmo
quando se torna cada vez mais gritante que o peso excessivo do aparelho estatal
e a burocracia emperrante são inimigos de um modelo económico que atraia o
investimento externo e estimule o interno. Economistas de vários quadrantes de
pensamento entendem que é imperioso melhorar significativamente o ambiente de
negócios para que a economia cresça, o que exige inapelavelmente bom
funcionamento da Justiça, um código do trabalho acessível e um melhor acesso ao
crédito, sob pena de se tornar insustentável a nossa dívida pública, que,
segundo o Banco de Cabo Verde, atingia em 2014 a cifra de 114% do PIB. Valor
que é preocupante para um país pobre que não pode abdicar do financiamento
externo da sua economia.
Neste
momento, existe um ruído de fundo na sociedade cabo-verdiana a indiciar que as
próximas eleições legislativas vão proporcionar alternância democrática, com a
provável vitória do MpD. Note-se que este é um assunto em que procuro manter-me
equidistante das formações partidárias, inibindo-me de outro juízo que não seja
meramente analítico. Sabe-se que o MpD decidiu inscrever na sua agenda política
a regionalização do país, questão que é muito cara ao aludido Grupo de Reflexão
para a Regionalização de Cabo Verde. Tratando-se de uma matéria em que o PAICV
agiu sempre com uma atitude de rejeição ou procrastinação, eis que o MpD parece
sintonizado com o que não deixará de ser uma reforma orgânica de assinalável
importância para Cabo Verde, tenha ela o alcance e a extensão que preconizamos
nas nossas reflexões. Seja como for, será salutar para a democracia a
alternância no poder nesta altura em que o próprio presidente da república
afirmou que estamos numa encruzilhada e sugerindo que há medidas reformistas
que não podem mais ser postergadas ou iludidas (entrevista dada à Lusa em
01/07/2015). A não alterar-se o cenário político, será a perpetuação do mesmo
partido no poder, o que o colunista José Lopes receia ao afirmar, no seu último
artigo, publicado no Cabo Verde Directo, que a “consagração por via eleitoral
de um regime de partido único não será por certo a melhor solução para o país”
(1).
O que não
será certamente do interesse nacional é que uma nova vitória absoluta do PAICV
consagre e legalize um pseudo regime de partido único, por fazer lembrar estas
palavras de Lord Acton: “todo o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Mas também não queremos vir a reconhecer que Giuseppe Tomasi di Lampedusa tinha
razão quando disse que "é preciso mudar para que tudo continue na
mesma". Ambos os desenlaces, a consumarem-se, seriam equivalentes a um
enorme e fatídico tropeção nesta “encruzilhada” em que nos encontramos. Para
evitar tanto uma como outra daquelas probabilidades indesejáveis, é importante
que comecemos a dedicar mais cuidados a este jardim que é a nossa democracia.
Tanto mais que a alternância no poder não é um princípio democrático, é a
expressão da vontade popular, mas esta só é fonte genuína do poder se
esclarecida e continuamente frequentada por activa e criativa cidadania.
(O autor
escreve de acordo com a antiga ortografia)
Tomar, 19 de
Fevereiro de 2016
Adriano
Miranda Lima
(1) LOPES, José, “2016, o ano de
mais uma encruzilhada para Cabo Verde”, jornal on-line Cabo Verde Directo.
1 comentários:
Excelente artigo. Aliás, na esteira das intervenções que A. Miranda Lima já nos habituou. Análise detalhada e esclarecedora de quem continuadamente vem pensando o País e, obviamente, se preocupa criteriosamente com a “coisa política” do país. Uma autêntica TAC do processo da jovem democracia cabo-verdiana ressaltando o perigo eminente da “mexicanização” da nossa democracia e da gravidade de uma possível alternância sem garantia de alternativa. Embora concorde com a existência de excessiva “concentração e centralização” não me parece que a solução passe pela regionalização (terei lido bem?) da qual não possuo suficientes dados para uma posição definida e, muito menos, definitiva. Pela minha experiência e conhecimento destas Ilhas, a regionalização que se promete – sem definição do modelo e do formato – à primeira vista, beneficiará sobretudo Santiago… Este não será, seguramente, o objectivo.
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