Creio que a geração a que pertenço se
revê se não na totalidade, em parte
significativa, nesta afirmação em que ouso incluir também o poeta Arménio
Vieira.
E porque também a linguagem poética de
Arménio Vieira é construída substantivamente através deste seu ser cultor da
Língua portuguesa, evoco a propósito, as palavras do conhecido poeta Manuel
Alegre, que chama à Língua portuguesa, «a música secreta»
e a determinada altura escreve: “Há na
minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não
acaba até outros mares e outros poemas. (…) Nas suas harmonias, nas suas
dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes.
Tem a cor do mar e o assobio do vento. Amo essa cor, esse assobio, esse
murmúrio. E o cheiro a alga e sal (…)” (Fim de citação)
Posto isto passo ao tema.
Sobre
Arménio Vieira
Falar sobre Arménio Vieira é sempre um
prazer. Acrescido do facto de ser uma grande honra trazer para aqui tão grande poeta! O nosso
prémio Camões!
Arménio Vieira, Poeta, escritor,
jornalista, professor, crítico de cinema.
Ora bem, a sua poesia e a sua ficção
de há muito que ultrapassaram as nossas fronteiras geográficas e, hoje, são
pertença não só da cultura cabo-verdiana, como da literatura lida, estudada e
analisada em Língua portuguesa, no espaço da lusofonia, como ainda traduzidas
para outras línguas e culturas.
Costumo dizer que o poeta, nasceu na cidade da Praia, cabo-verdiano de
origem e de vivência e, (aqui também caberia um “mas”) de pena universalista.
Sim, os textos de Arménio Vieira, quer
sejam em poemas ou em prosa e esta última é quase sempre poética, fazem jus a
este “universal” que existe e que caracteriza o seu ser poeta.
Com efeito, a sua formação poética, cultural e
histórica – na minha opinião, opinião aliás, de uma leitora aficionada dos
textos – poemas de Arménio Vieira – revela-se quase toda ela “bebida” fundada
na cultura dita europeia ocidental. Ele parte da clássica greco-latina, passa e
passeia-se (o poeta) pela história e pela literatura europeia, a mais erudita,
com ênfase na portuguesa, na francesa russa, inglesa, alemã, entre outras, indo
até à americana e, algumas vezes, num jogo simbólico muito peculiar deste
poeta, consegue prefigurá-las, transferi-las e contextualizá-las para as ilhas
desta “macaronésia” atlântica sempre indecisa e adiada.
Senhor de uma erudição e cultura
portentosas, Arménio Vieira dá-se ao luxo de “jogar” de “brincar” de construir
e de desconstruir também, através de “trocadilhos” poéticos com essa cultura
imensa que possui, e que reelabora numa constância e em profundidade, como
aliás, prova tudo o que vem escrevendo. No fundo, e à boa maneira dos eleitos,
aos quais ele pertence, intelectualmente falando. Os seus textos como que
extraem a essência filosófica, desse lastro cultural que o sustenta, como
também reflectem a mundividência experimentada e teorizada por um observador de
todo especial. Para além de aliar a isso tudo, a poesia que parece que lhe é
inata.
Ora é o próprio poeta que dita o «Ser
Poeta» (pág. 91 de «O Brumário», edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e
Publicom, 2013)."Sem cuidar do tempo
/ que os ponteiros gastam / Entre a débil consoante / (Pela qual o navio Se faz
ao mar) E a exausta vogal / Com que termina / A viagem / Me dou ao ofício / De
escrever poesia.”
Pois é, entre o “tempo” ou a ausência dele, no início e no final da “viagem”; com a habilidade tecedeira de
uma “aranha”; a beleza da “rosa;” e a (im) precisão de um “número”, simbólicos e alegóricos, assim
o poeta cria e escreve o seu poema.
Mas igualmente num poema inserto num dos seus
últimos livros da trilogia do Brumário, e em jeito de situar o leitor, o autor prevê
e justifica o destino dos seus versos. A
poesia é o “baralho do poeta” com que “…os
loucos tentam o póquer que os salve”. ( pág. 18 de «O Brumário») “ Estes versos acerca dos livros / e da
gente terão o destino / com que os deuses selaram as criaturas, / incluindo
quem, pelo melhor / de todos os poemas, / previu o fim da tabacaria em frente /
mais a tabuleta e o dono dos cigarros, / e de quantos loucos, dos quais, / pelo
mágico baralho do poeta, / tentam o póquer que os salve.”
O
poeta munido com estas preciosas “ferramentas” chamemo-las assim, mais a
estilística que ele auto-recria em estética própria e original; com isto tudo
interligado e interdependente, o poeta configura os seus poemas – textos
prodigiosamente melódicos e poéticos, que nos deliciam.Na escrita de A. Vieira há também questões de sempre, inquietantes e existenciais com que o poeta nos interpela. A morte, por exemplo.
Por outro lado, e do que mais gosto e aprecio
na poesia de Arménio Vieira é a sua
assombrosa capacidade de, através da comicidade da linguagem, parodiar, em tom
jocoso, irónico, por vezes mordaz, temas vários, personagens e personalidades
reconhecidas no mundo das artes, do cinema e da Literatura e utilizar amiúde a
chamada linguagem de carnaval, da paródia ou a menipeia que ele tão bem
desenvolve e aplica na sua linguagem criativa literária. Esta linguagem sobre a
qual teorizou e bem Júlia Kristeva, aliás autora curiosamente conclamada pelo poeta e trazida à cena poética
num dos textos incluídos no Brumário.
De facto e retomando, há um riso paródico e uma finíssima ironia em
muitos textos de Arménio Vieira cujos sentidos porque plurissignificativos
residem no tornar comum ou no chamado “destronamento”
de quase tudo que é tido por elevado, dogmático ou sério. Repito que fortes
influências desta discursividade carnavalesca são visíveis, em muitos dos
textos de A. Vieira.
O poeta por vezes, brinca e/ou ironiza
com a chamada poesia épica, laudatória que narra em versos, heróis, os seus
feitos ou cometimentos bélicos.
Em sentido oposto, aquilo que há de elevado e
humanamente comovedor nas pessoas, nas criaturas, temo-lo bem descrito e
sentido, pelo poeta em muitos dos seus poemas narrativos e/ou, dialogados.
Apenas uma ilustração disso. O exemplo que achei muito terno, muito afectivo e
solidário foi aquele com que Arménio Vieira brindou os mais velhos da
literatura e da cultura cabo-verdiana, se quisermos, e generalizada numa frase:
os Homens da Claridade. Vamos encontrá-lo exactamente no texto “Bisca Tropical” (página 31 das «Derivações do Brumário» .
Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013)
“Imaginem este quadro, surreal e jocoso:
Praça Nova (1936). Jaim Figueiredo jogando a bisca versus Rendall Leite, o
douto germanista.
Subitamente,
Figueiredo joga o ás sobre um duque. Nhô Djunga Fotógrafo, fingindo-se
irritado, exclama: Homessa! Será que o Pavão de Lata foi quem o mandou jogar o
ás?
Manuel
Lopes diz: Não respondo à pergunta, que eu não vi nada.
Baltasar
Lopes solta uma estrondosa gargalhada. “Vá lá que o Jaime nunca soube o que é
um jogo a doer”, pensou mas não disse.
Jorge
Barbosa diz: Figueiredo precisa de óculos, é só ir ao João Lopes.
Aurélio
Gonçalves conclui indulgente e filosoficamente: Figueiredo distraiu-se,
acontece aos melhores.
Para
terminar, falou Jaime Figueiredo: Alucinação alcoólic, sou um barco ébrio.
Rendall
Leite de pé: - game is over, adieu sweet Prince.
Manuel
Ferreira, o cronista, chegaria ao Jardim de Epicuro, ou seja, à referida praça
quando rebentou a guerra de todas as guerras, razão por que de tal bisca a céu
aberto não fez menção nem registo. Em tempo: faço-o eu, nascido Cinco Anos
Depois, por coincidência a única fita que Marlon Brando assinou.
P.S.
– O Pavão de Lata, um hipotético romance de J. Figueiredo, continua a ser um
mistério. João Cleofas Martins (Nhô Djunga), à semelhança de Juan Rulfo, era
prosador e fotógrafo. O restante, excepto as pessoas nomeadas, é pura ficção.
Nota
final à guisa de epitáfio: à data eram personagens em busca de um palco. Quem
nos dera tê-los de novo, ainda que seja para a bisca do adeus.”
“
Imaginemos a seguinte bizarrice: Quelha de Londres, cerca de 1918. Em vez de
Jack o Estripador matando senhoras, vêem-se três terríveis tigres – Adolf
Hitler, Benito Mussolini e Vladimir Lenine, de cassetete e apitos à Gestapo,
correndo atrás de Charlot, o Judeu vagabundo, o qual, tremendo, tal um coelho
entre a parede e o pau, é salvo por Fernando Pessoa, da guarda-chuva em riste e
de cigarro na boca.
Coincidências:
os cinco, sem exclusão usam brilhantina e cuecas de nylon made in England.
Pessoa, porém, é o único que perfuma as cartas de amor e fuma tabaco.
Filme
de quinze minutos, mudo é claro, dirigido por Charles Spencer Chaplin, segundo
uma ideia do Conde Silvenius.”
Do mesmo modo, o tal jogador exímio de
xadrez, que é A. Vieira quando simbolicamente transplantado para a escrita
poética, e poeta, ele faz-nos perceber, de forma subtil, através de peças
colocadas num tabuleiro quase cósmico, que nos está a transportar para um
xadrez mais complicado, que é afinal, a própria vida.
Arménio Vieira ao longo dos seus
poemas, como que desafia o leitor para uma revisitação, de que ele dá o
exemplo; ou mesmo para uma leitura inaugural das obras dos grandes nomes da
literatura e de vultos da História universal e neste ponto, sou tentada a
dizer, que o poeta emerge aqui neste particular, com uma dimensão pedagógica. Ele
faz isso, não só citando-os mas também fazendo-os interagir em imaginados
diálogos, entre personagens
e, entre os entes históricos (escritores) que as criaram e que o poeta
constantemente convoca nos seus textos-poemas.
Não obstante toda essa abrangência e esse todo
panorâmico no modo de ver, no olhar, e no fazer poético que Arménio Vieira
possui, mesmo assim, e de forma
diferenciada, Arménio Vieira faz-se acompanhar no seu caminhar poético, de
alguns distintos companheiros que ouso
dizer, mais presentes, mais constantes, mais próximos da sua senda poética, os
quais, ele ora cita, alegoriza, os metaforiza, ora os recorda num real quase
vivenciado. E isto, em vários textos. Apenas para exemplificar, mencionarei,
distinguindo, Camões, Borges e Fernando Pessoa, e a propósito deste último, no
dizer de Luís Carlos Patraquim (Mitografias, Poemas na Vertical) e cito: “ Percebemos que o homem e a obra, mais o
formidável desdobramento heteronímico...é uma presença na poesia de Arménio
Vieira. Não uma influência angustiante... com ele A. Vieira, dialoga, glosa,
recombina, sacoleja em mordaz ou empático novo lançamento de dados” (Fim
da citação).
De facto, encontramos em muitos textos
de A. Vieira, esta intertextualidade pessoana transfigurada.
Outros poetas há também, que foram seus “compagnons
de route”) os quais, de forma real e vivida são recordados, em alguns poemas. Um deles é sem dúvida, Mário Fonseca.
Com este último, vale também dizer que
são ou foram – uma vez que M. Fonseca nos deixou – poetas de uma mesma geração
e que de certa forma, juntos iniciaram a que depois seria uma longa e profícua caminhada poética, que teve
os seus inícios no antigo «Boletim Cabo
Verde», no «Seló». Juntos
participaram em colaborações dispersas em várias revistas literárias, apenas
para citar «Imbondeiro» «Vértice» entre
outros periódicos.
“O Mar e
as Rosas” é o poema dedicado
exactamente à memória do saudoso poeta Mário Fonseca. Tratou-se de um facto. Passou-se
na vida real. M. Fonseca perdera os manuscritos do livro e andou um ror de anos
em busca deles. Creio que assim Arménio Vieira o celebriza e o imortaliza neste
quase soneto e através do título homónimo da obra perdida. Outro poema em que
Mário Fonseca é evocado ao lado de um grande nome da poesia portuguesa,
Fernando Assis Pacheco também já desaparecido do mundo dos vivos; é o poema “Epitáfio,” na página 30 das «Derivações
do Brumário».
Pois bem, a poesia de A. Vieira corporiza-se numa tal
subtileza imagística, que a plurissignificação das palavras escolhidas, a linguagem metafórica, culta,
multifacetada, a beleza rítmica, a musicalidade versatória, entre outros
atributos, que distinguem os bons textos poéticos, são tidos em plena
valorização, nos poemas de Arménio Vieira.
Mesmo para terminar e perceber o “estar”
e o “sentir do poeta, temos o poema “o
estar só entre muita gente.” (pág.
14 «O Brumário»):
“Estar
só entre as gentes / magnífica antítese, / nada melhor do que isto. / Quem o
disse e na pedra o gravou/ foi um Camões
errante e amoroso. / Venha agora a nave que me leve / a uma ilha (...) ...Alternância e não antítese / é quanto pude
achar, / já que, das muitas rosas / que eu vi em nove ilhas e no resto / nunca
fui a metade.”
Pois bem, usando o mote camoniano, o
poeta expressa as suas emoções, ora
doces, ora amargas, o seu isolamento
interno, o seu sentir-se incompleto.
O poeta afinal, - numa espécie de fio
condutor dos seus poemas - releva com ironia e com alguma complacência, as partidas
pregadas por algo que pode ser nomeado
de Destino. Assim, Arménio Vieira
nos conduz ao seu mundo interior, à
consciência da sua solidão, às suas ilusões e decepções e à maneira como ele
percepciona e vê o mundo.
Praia, 3 de Fevereiro de 2016.
1 comentários:
Na parte que me cabe, agradeço à Ondina Ferreira o ter-nos dado o privilégio de conhecer a sua intervenção no VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. O objecto da sua intervenção é o poeta Arménio Vieira, que para mim é dos mais destacados de entre os nossos poetas de todos os tempos.
Se o poeta nos deslumbra com a riqueza imagística da sua poesia, seduz igualmente a solução encontrada para abordar a figura complexa e original do poeta e a sua obra. É uma síntese perfeita e ao mesmo tempo suculenta e atractiva, porque, digamos assim, vai à essência de tudo e decompõe-na e associa magistralmente o que mais ilustra e desvenda sobre o homem, o poeta e a sua obra.
Parabéns à autora deste blogue.
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