*
Lembrar que estas crónicas pretendem dar resposta ao artigo do jornal português
Público
(https://www.publico.pt/mundo/noticia/ser-africano-em-cabo-verde-e-um-tabu-1718673).
(Para esta, não precisa dum grande sentido de humor)
ALIENAÇÃO
-- M. Odette Pinheiro
Se na década de 50 ou 60 do século passado se perguntasse aos
caboverdianos o que eram, responderiam que eram caboverdianos ou,
alternativamente, que eram portugueses. E oficialmente eram, pois tinham aquele
rectângulo de papel com o nome e a carinha estampada e impresso: Bilhete de
Identidade, República Portuguesa. A primeira resposta era a identificação
telúrica, o que nos definia como pessoas. A outra, a identificação oficial, que
definia a nossa cidadania no país e no mundo, significando “cidadãos de
Portugal”.
Claro que ninguém pensava que étnica ou culturalmente fosse
como o português da Europa. Só os que não tivessem espelho. Mas, embora os
chineses ainda não tivessem chegado com as suas lojas que liberalizaram as
bugigangas, a maior parte tinha um espelho em casa, mesmo que fosse pequenino.
E até havia algumas montras em que as pessoas podiam fingir olhar para as
coisas expostas, enquanto contemplavam a cara e o penteado. Principalmente
nessa altura em que os rapazes usavam muita brilhantina e tinham “muito luxo”
com o cabelo! Tinham de ter espelho. Então as meninas!
Portanto, todos sabiam que havia diferenças (não só
fenotípicas mas também culturais) entre os nacionais, nós os “autóctones”, e os
que vinham da Metrópole, a quem até se chamava algo que ao tempo eu não sabia
ser pejorativo e que usávamos com toda a naturalidade quando nos referíamos aos
portugueses de Portugal (mandrongos, em crioulo). É que o caboverdiano é
mesmo assim, especialmente o de S. Vicente: o seu hobby preferido é
alcunhar os outros e brincar com tudo, embora geralmente sem maldade.
A consciência das diferenças por vezes era bastante
sofisticada, atingindo até aspectos não muito evidentes, pois as mulheres
caboverdianas vangloriavam-se de não terem “toco de mandronga”, uma
diferença subtil (às vezes não tanto!) entre os seus tornozelos bem torneados e
os das outras…
Agora, é verdade que o Senhor Reis, nosso professor de canto
coral, nos ensinava a cantar: “Portugueses, celebremos o dia da Restauração, em
que valentes guerreiros nos deram livre a Nação!” E sentíamos cá um orgulho por
Portugal ter conseguido correr com os Filipes usurpadores! E vibrávamos com
Aljubarrota e com Brites de Almeida que, com a pá do seu forno, havia apressado
a ida de sete invasores castelhanos para o outro mundo! Até com D. Afonso
Henriques, que havia roubado (Deus lhe perdoe!) um pedaço do Reino à mãe, para
o declarar independente! E com o
soldado que no terremoto de 1775 não abandonou o seu posto à porta da Casa da
Moeda, mas ficou firme enquanto tudo ruía à sua volta!
Pena é que não nos ensinaram a história dos nossos ancestrais
do outro lado. Teria sido bom ouvir das glórias do lado africano, se esses
relatos já estivessem disponíveis e tivesse havido vontade de os dar a
conhecer. Isto poderia ter contribuído para uma ideia equilibrada e
conhecimento do outro lado das nossas raízes. Não aconteceu e não somos os
responsáveis.
Mas será que isso nos alienou, como pretendem alguns? Não,
pois não é verdade que o povo caboverdiano tenha crescido a pensar que era
branco como os europeus. Crescemos, sim, conscientes de que éramos tão capazes
como eles e que com a mesma instrução e o mesmo treinamento e oportunidades
poderíamos fazer tudo o que eles faziam e não lhes ficar atrás. Essa foi a
nossa força, a certeza de que não havia em nós qualquer inferioridade, e que
ser descendentes de preto e branco, qualquer que fosse a proporção, não nos
desqualificava como seres humanos. Alguns de nós até achávamos (e ainda
achamos) que ser moreno, até muito moreno, era muito mais bonito que ser branco
deslavado.
Além disso, branco e preto adquiriram entre nós conotações
económicas e sociais, independentemente da cor da pele. Um caboverdiano de pele
muito escura, mas com um estatuto social elevado, era considerado como
pertencendo à “classe dos brancos”, e o contrário também era verdadeiro: a cor
clara não era necessariamente passaporte para a elevação social; a não ser o
branco que viesse de fora, que era quase sempre aceite na sociedade sem
questionamentos. Conscientes das deficiências na educação e instrução de alguns
e algumas, costumávamos dizer que peixeiras analfabetas embarcavam em Lisboa e
desembarcavam em Cabo Verde já promovidas a senhoras da sociedade. Mas se, por
ignorância, ousassem ter atitudes de superioridade (o que acontecia, embora
raramente), eram logo atalhadas, pois o caboverdiano sabia que não lhes era
inferior. Foi o que aconteceu um dia na Loja da Lalocha (Casa Serradas). Umas
“senhoras” da Metrópole entraram e a Lalocha continuou a atender as
caboverdianas que já lá estavam. Ao que uma dessas perguntou: “Lalocha, por que
atende as pretas primeiro do que a nós?” Com toda a serenidade, a Lalocha
respondeu: “Porque as pretas chegaram primeiro!” Sem stress!
Compreendo que alguns dos caboverdianos que foram entrevistados
para o jornal Público, e que confessadamente não sabiam do problema da
discriminação racial por este mundo fora, tivessem sofrido um choque ao se
sentirem discriminados em Portugal ou noutro país qualquer. Ao entrarem num
mundo apostado em os inferiorizar, a realidade da discriminação rebentou na
cara de muitos, roubando-lhes a inocência racial com que viviam em Cabo Verde.
Mas também é verdade que nunca devemos deixar que sejam
outros a definir a nossa identidade, a mudar o conceito que temos de nós mesmos,
a dizer quem somos. A discriminação vence-se com nobreza, impondo-nos pela
postura e comportamento, pela força da inteligência e pela superioridade moral
que advêm de sabermos quem somos e que temos a razão do nosso lado.
Infelizmente, parece que alguns ao serem discriminados
passaram a pensar-se diferentes do que sempre haviam pensado; outros mudaram a
sua postura e decidiram chocar completamente os que os discriminavam, adoptando
os comportamentos inferiores que por ignorância lhes eram atribuídos. E parece
que muitos passaram a projectar nos outros o seu próprio desconforto,
achando que nós que nos sentimos seguros na nossa caboverdianidade e não temos
ressentimentos, que não nos sentimos nem inferiores nem superiores (atitude I
am OK, you are OK), é que somos complexados e alienados, porque devíamos,
todos, passar a dizer-nos negros, anti brancos e revoltados com tudo que cheire
ao antigo colonialismo (até a língua!).
A força de Martin Luther King é que nunca deixou que fossem
outros a defini-lo; ao contrário de Malcolm X, e muito provavelmente devido à
sua forte matriz cristã, não deixou que o ódio dos adversários lhe impregnasse
a alma, que a discriminação o minimizasse, mantendo-se sempre superior a eles
pela força da razão, do direito e do respeito pelo outro – a única que deve
impulsionar o ser humano.
Foi o mesmo com Gandhi. Quando odiado, recusou odiar; quando
batido, recusou bater – porque não há nada mais aviltante para o ser humano do
que bater repetidamente num homem que nos olha com olhos de amor e não retribui
na mesma moeda: produz uma vergonha tão profunda que leva o agressor a odiar a
si mesmo e a retirar-se (isto era verdade pelo menos antes dos fundamentalismos
actuais). E, assim, a Índia ganhou a sua independência dos ingleses, quase sem
derramamento de sangue.
A força da nação caboverdiana é que já éramos uma nação muito
antes da independência, mesmo que ainda inseridos num Estado muito mais vasto,
Portugal, de que nos sabíamos diferentes.
Nação é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo
étnico, que falam o mesmo idioma e têm os mesmos costumes, formando, assim, um
povo. Uma nação se mantém unida pelos hábitos, tradições, religião, língua e
consciência nacional. Os elementos território, língua, religião, costumes e
tradição, por si sós, não constituem o caráter de uma nação. A característica
dominante deve ser a convicção de um viver coletivo, ou seja, quando a
população se sente constituindo um organismo ou um agrupamento, distinto de
qualquer outro, com vida própria, interesses especiais e necessidades [realce
acrescentado]. http://www.significados.com.br/nacao/
Quando nestas ilhas se desenvolveu uma comunidade distinta de
qualquer outra, sem que nos pudéssemos identificar étnica ou culturalmente com
Portugal ou com qualquer outro povo em África, adquirimos a nossa própria
consciência identitária e nacional. Isto não é alienação, é viver uma
verdade objectiva. Alienação é tentar ignorar qualquer um dos lados da nossa
origem, jogar um contra o outro ou procurar voltar para trás, para tentar
readquirir hábitos e características que ficaram lá muito para trás, como se
ainda lá estivéssemos (o que não é possível). Como costumo dizer, a minha
cultura é a que recebi no leite da minha mãe!
E crescemos como cidadãos ajustados, sem nos sentirmos
afectados pela cor da nossa pele ou pela nossa pronúncia diferente e, muito
menos, por haver uma possibilidade remota de que uma tetra, penta, ou hexavó
negra pudesse ter sido violada por um branco, começando assim a nossa
mestiçagem. Infelizes aqueles que não conseguem ultrapassar os seus traumas de
infância, quanto mais os que ficam agarrados aos traumas de gerações muito
anteriores, mormente quando esses traumas se esfumaram na bruma do tempo e na
memória perdida de alguns séculos e até dos próprios antepassados — pois não
houve entre nós histórias de violações contadas e repisadas de geração para
geração, para ainda nos afectarem.
E não, não é verdade que tais factos sejam transmitidos
inconscientemente de geração para geração, de modo a poderem influenciar-nos
séculos depois. A capacidade do ser humano para a saúde e para a
recuperação é muito maior do que isso! Se não, acabada estava a vida das
mulheres que nesta geração estão sendo açoitadas pela violência doméstica, pela
violação, pelo rebaixamento de qualquer espécie. Pois garanto-vos, minhas irmãs,
que a recuperação é possível, e que há possibilidade de saúde mental e
espiritual depois disso, mesmo possibilidade de vida abundante, apesar de
qualquer tragédia ter querido roubar-vos a dignidade. E o mesmo para qualquer
outro ser humano.
A prova de que o caboverdiano cresceu geralmente ajustado e
com um bom grau de autoestima (ninguém a tem perfeita, mesmo em países
desenvolvidos), é que nos demos bem onde quer que fomos no passado: nos países
nórdicos, nos árabes, em toda a Europa, na América Latina, nos Estados Unidos,
em África. Para onde escolhemos ir, fomos cidadãos adaptados, trabalhadores,
cumpridores, que honrámos a nossa terra e não a envergonhámos nem nos
envergonhámos dela. E a cor da nossa pele ia do branco ao negro!
Nas universidades e nas escolas médias, em Portugal e noutros
países, marcámos pelo afinco ao estudo, pelo saber-estar, mesmo os que eram
muito pobres, indivíduos feitos a pulso por não terem nascido em famílias
abastadas (pouquíssimas em Cabo Verde): muitos que de meninos de recados ou de
pequenos caixeiros de lojas insignificantes, conseguiram estudar à luz do
candeeiro, fazer o liceu em três anos, singrar e alcançar um lugar ao sol, não
só cá dentro como também noutros lugares do mundo! Sem grandes crises
existenciais, sem problemas de identidade! Caboverdianos genuínos, qualquer que
seja o sentido que quisermos dar à frase! Se há um problema de identidade,
apareceu mais tarde, quando se tentou voltar a roda da vida para trás!
Como escrevi algures, é bom
que esta nossa nação agora corresponda a um Estado independente, e que possamos
andar pelos nossos próprios pés, embora ainda com a ajuda de algumas muletas.
Mas precisamos recobrar ou não deixar que ninguém nos roube a consciência da
nossa caboverdianidade, para avançarmos sem complexos de branco ou de negro no
sentido da concórdia, com uma juventude ajustada, para que todo o seu potencial
seja canalizado construtivamente para o bem e não para a revolta e para a
instabilidade social, juntando todas as suas valências para fazer progredir
estes dez grãozinhos de terra, cujo povo é uma comunidade distinta de qualquer
outra no mundo. Nem superior, nem inferior a nenhuma outra! Simplesmente
diferente, com as nossas especificidades!
3 comentários:
"A força da nação caboverdiana é que já éramos uma nação muito antes da independência, mesmo que ainda inseridos num Estado muito mais vasto, Portugal, de que nos sabíamos diferentes."
Sempre assim pensei, Dra. Odette, e nunca tive nenhum complexo quando alguns letrados, mas parvos, se mostravam admirados que...
Durante 4 décadas, nas funções que foram as minhas, encontrei gente que merecia ler as suas crônicas. Eram estrangeiras mas também nacionais mais violentos.
Infelizmente continuam "autrement" e temos de continuar a ser o que sempre fomos porque à força não conseguem mudar-nos
Não encontro palavras para classificar este texto da Odette Pinheiro. Simplesmente, EXCELENTE.
Vai ao fundo problema, onde jaz a água cristalina que nos devolve o reflexo do que verdadeiramente somos, depois sobe e acompanha os afloramentos posteriores do trânsito da formação e afirmação da nossa consciência identitária. E esta, é, pois, exactamente o que é, nem mais nem menos, irreversível e imune às lucubrações dos que repentinamente se julgam possuidores de uma clarividência sem precedentes. Esses têm é de regressar à escola porque ainda têm algo a aprender, sem se dispensarem da importante escola da vida, que não é substituível por compêndios e sebentas académicas.
No mais, este texto é recheado de interessantes ilustrações sobre o percurso do homem em defesa da sua dignidade e integridade humana, sendo muito pertinentes as referências a Luther King e Gandhi, como poderia ter sido também ao Nelson Mandela. Igualmente muito propositada a alusão à condição feminina, que é um lado do nosso problema identitário que não tem merecido a devida atenção. Talvez pelo espírito machista da nossa sociedade.
Enfim, a Odette Pinheiro tem aqui, neste artigo e nos precedentes, uma bela lição que devia ser objecto de ponderada reflexão por toda a gente.
Tiro-te o chapéu, cara colega e amiga. Venho batendo nos mesmos assuntos desmistificando "verdades irrefutáveis" de alguns fundamentalistas, mas este artigo, aliás, esta série de artigos, intercala o risível com o sério, de forma dialéctica, de modo a ser entendido por todos, letrados e analfabetos, com umas boas tchuçadas aos fundamentalistas de cepa exclusivamente africanófila. Uma outra virtude da série é provir de uma mulher, o que é raro entre nós, exceptuando as pauladas da Rosário da LUz, a quem, segundo consta, retiraram o pio por falar muito claro e não utilizar eufemismos.
Enviar um comentário