(Para ler esta não precisa de muito humor)
MUDANÇA
DE GUARDA
Por ser racional, o ser humano tem o
dever de contextualizar tudo. Apresentar argumentos deslocados do seu contexto
histórico e social é simplesmente um pretexto para desvirtuar a verdade e
manipular a história a favor de interesses inconfessados.
- M. Odette Pinheiro
Não
me lembro quando obtive o meu primeiro Bilhete de Identidade. Talvez tivesse
sido quando ia entrar para o Liceu. Mas lembro-me que era um Bilhete de
Identidade da “República Portuguesa”. Como o de todos os caboverdianos, na
época. Aqui não havia essa discriminação oficial existente nas outras colónias,
em que uns eram considerados cidadãos e outros não.
Dizem
que Portugal nos considerava cidadãos para nos poder usar como capatazes para
dominar o resto da malta (leia-se, povo das outras colónias). Não sei, pois não
alinho nesta nossa mania crioula de atribuir motivações aos outros (a qual até
está bem patente nos comentários aos meus artigos), como se alguém pudesse ler
o pensamento alheio: tal e qual se ouve frequentemente no Parlamento (“vocês
fizeram isto porque…” e apontam as motivações mais variadas, que podem estar
bem longe da realidade). Eu… prefiro dar o benefício da dúvida, pois não sou
Deus para saber o que vai no pensamento ou na alma de outra pessoa.
Como
estas ilhas eram desertas quando os portugueses as descobriram ou acharam
(conforme preferirem, embora alguns escolham acreditar em habitantes
inexistentes, justificando, assim, uma certa linha de pensamento), começando só
então a nossa história como comunidade (a outra começou, realmente, com Adão e
Eva; e alguns podem querer ir até ao homo sapiens sapiens, ou mesmo
antes), e tendo eles contribuído para a nossa matriz como povo, talvez tivessem
por nós um certo… “carinho” – eles que são uns sentimentalões, caso contrário
nunca cantariam o fado, que, se não estivermos de sobreaviso, nos põe todos a
chorar e nos pode deprimir a pensar que todo o amor é infeliz, que só há
traição e o mundo é tão triste…! Além disso, vejam a massa que têm mandado para
cá, embora, como dizia o nhô Djunga, mandem também uns tubarões (não os Azuis)
para levar parte dela de volta.
Mas
a verdade é que Cabo Verde teve oportunidades que as outras colónias não
tiveram, o que muito nos veio a beneficiar depois da independência,
ajudando-nos a alcançar o patamar que já alcançámos, pois tivemos pontos de
partida sociais e educacionais muito diferentes, e mesmo de desenvolvimento,
apesar de toda a nossa pobreza. Hoje falamos como se o que conseguimos foi só
mérito nosso, como se tivéssemos partido da estaca zero, o que não é verdade!
Tivemos
oportunidades especialmente em matéria de instrução. Não foram tantas como
gostaríamos, pois não havia escolas suficientes para todos, e não criaram cá
nenhuma universidade, nós que já temos 10 (uma para cada 50 mil habitantes!),
enquanto eles se contentaram por vários séculos em ter só uma. E já com 10
milhões de habitantes tinham umas escassas três, e por muito tempo.
Mas
a verdade é que facultaram aos caboverdianos estudar nessas três, à nossa
escolha (nem sequer havia numerus clausus, para se ter de entrar à
dentada), ou nas suas muitas escolas médias, como as de Magistério Primário, Enfermagem, Regentes
Agrícolas, etc. Para isso era preciso ter o “cacau” necessário ou conseguir uma
das bolsas que davam aos alunos com melhores notas e que não tivessem condições
financeiras (tal e qual hoje, mas em muito menor escala), à custa das quais
muitos ganharam formação e a exposição às ideias do mundo lá fora – que lhes
permitiu seguir os caminhos que levaram à luta pela independência. De Portugal,
ou de posições no “mundo então português”, saíram para se dedicarem à luta.
Nessa altura, os poucos que tivessem a sorte e a oportunidade
de fazer o liceu e terminar o antigo 5º ano (melhor ainda se fosse o 7º), e não
podiam ir estudar fora, concorriam ao Banco, à Alfândega ou à Administração
Pública, pois o comércio local só podia abranger poucas pessoas e eram mal
pagas. E preenchiam cá os quadros, ou iam para o sul servir nas outras
colónias, ganhando a vida dessa maneira, já que as oportunidades de instrução
para os habitantes dessas colónias eram ainda menores. Aquando da
independência, a maior parte dos cargos públicos em Cabo Verde, mesmo os de
chefia, eram preenchidos por caboverdianos.
Mas a quem tinha pouca ou nenhuma escolaridade restava a vida
difícil de trabalhar a terra. E quando vinham os anos de seca, viam-se
obrigados a “dar nome” para Angola ou São Tomé, o Caminho Longe, donde muitos
não voltavam, a ponto de se cantar em Santo Antão que “terra longe tem gente
gentio, gente gentio ta comê gente, ta comê gente até os osso”! Reminiscências
de tempos remotos em que ainda havia canibalismo a que, exagerada e até
“deslocadamente”, se associava essa Terra Longe, medonha para tantos! Mas Terra
Longe era a única esperança de sobrevivência. Ficar era morrer. Ir dava uma
possibilidade de escape, embora não garantida. É como quando o cirurgião, confrontado
com a necessidade de uma operação arriscada, está perante o dilema: operando,
pode morrer; não operando é morte certa.
Quanto às condições de vida, pensávamos que em Portugal
viviam à grande e à francesa, enquanto em Cabo Verde se curtia a fome. Pensávamos…
até chegar lá e ver o analfabetismo, a pobreza e o subdesenvolvimento que
grassava. Claro que não havia as secas como cá, e por isso não havia a
quantidade de mortes pela fome. Mas pão com uma sardinha era o almoço de muitos
trabalhadores no Metropolitano de Lisboa. Trabalhando duro e ganhando muito
pouco.
Entretanto, Salazar dizia: “Ao português, basta saber ler,
escrever e contar”, o que era pouquíssimo numa Europa industrializada que
avançava a olhos vistos. E os portugueses emigravam aos montões para a França,
para fazer os trabalhos servis que os franceses já não queriam fazer. E lá
viviam nos bidonvilles, como nas favelas que há nos subúrbios de
Mindelo, Praia, Espargos e Sal Rei. Era um povo também sofrido, embora não
tanto como o nosso! Só que tínhamos a vantagem do clima, ninguém morria de frio
ou calor!
Mas Salazar sofria daquele orgulho incompreensível de se
contentar com estar “orgulhosamente só”. De maneira que, enquanto ligados a
Portugal, quando as secas nos atingiam não havia possibilidade de haver
campanhas de solidariedade a nosso favor, como escreveu Jorge Barbosa. O nosso
destino era morrer sozinhos, a solidariedade internacional não era procurada
nem permitida. O orgulho não deixava estender a mão para pedir socorro, nem para
eles mesmos, quanto mais para uma parcela do “império” donde não lhes vinha
nada (nem petróleo, nem ouro, nem diamantes), este Cabo Verde (que ironia de
nome!) de “rotcha nu, sima menine ta nacê”.
Mas, voltando atrás,
quando estudante em Portugal pude compreender o que uma mentalidade retrógrada
no poder pode fazer a um povo (até a um Império, de norte a sul!). Não era
simples crueldade para connosco, era mais uma certa inépcia misturada com
arrogância, essas coisas que por vezes atacam alguns políticos e não os deixam
ver claramente. Era também descaso e teimosia, tudo institucionalizado, que
impactava negativamente a própria Metrópole. Importava mudar! Precisávamos de
encontrar alternativas! Tanto nós como o povo português, o de ginjeira!
E a mudança chegou. Chegou para o povo português na Revolução
dos Cravos, esse quase milagre que fez com que em poucas horas a ditadura fosse
deitada pela janela fora, sem derramamento de sangue, embora seguido de um
período conturbado, em que de novo o totalitarismo tentou assenhorear-se do
país. E nesse período Portugal tornou-se economicamente ainda mais pobre,
embora tivesse conseguido segurar a liberdade.
Mas a libertação da ditadura em Portugal, que certamente
teria um reflexo em nós, ainda não nos garantia a resolução de outros
problemas. E eram essencialmente três: o grande problema das secas, fome e
falta de desenvolvimento, que Portugal não havia resolvido; a falta de
autodeterminação para dirigirmos o nosso próprio destino como nação com
características culturais e linguísticas muito próprias que, nunca deixo de
vincar, já éramos havia muito; o racismo existente em Portugal – que alguns,
indevidamente, tentam transpor para cá, quando a maior parte de nós crescemos
sem noção de que havia diferença entre pessoa preta e pessoa branca (a que, por
brincadeira, chamo respectivamente de castanho e beije, variantes da mesma cor,
justamente para desvalorizar a questão racial que se centra na dicotomia
preto/branco). Esse racismo (aspecto cultural enraizado num povo, que não muda
dum dia para o outro) tenderia a fazer com que em Portugal os caboverdianos de
pele mais escura se sentissem ainda discriminados, como que cidadãos de 2ª, o
que seria inaceitável dentro do mesmo Estado.
Mas, para nós, a mudança também chegou com a independência,
aspirada pela maior parte mas temida por todos que eram realistas
(confessadamente até por aqueles que a fizeram), por não se saber das
possibilidades de sobrevivência da nossa nação sem estar ancorada em algo
(leia-se outro Estado ou comunidade internacional). O que teria acontecido se,
no dia da independência, os Estados Unidos da América não tivessem oferecido a
Cabo Verde cinco milhões de dólares em ajuda alimentar, o que era impensável
durante o domínio de Portugal? E, mutatis mutandis, as ajudas
continuaram e ainda continuam a vir de todos os lados: EUA, UE, Luxemburgo,
Portugal, China, etc., etc., único modo de equilibrar as nossas contas e
conseguir alguns extras: palácio do governo, palácio da assembleia nacional,
novos liceus, residências estudantis, hospitais, “casas para muitos”, palácio
presidencial, estádio nacional, campus universitário e muito, muito mais, que
não vale a pena enumerar, pois é conhecido de todos (ou quase!); além de todo o
tipo de programas que vão ajudando socialmente a sociedade caboverdiana.
Temos de reconhecer que
muito ajudou a gestão criteriosa dos recursos das ilhas e das ajudas recebidas
naqueles primeiros anos em que importava estabelecer os alicerces do novo
Estado; e também que até agora todas as etapas da governação contribuíram para
que Cabo Verde se firmasse e ganhasse o prestígio que tem na comunidade
internacional. Avançou-se muito, não há dúvida, e o Cabo Verde de hoje tem
muito pouco a ver com o de há 40 anos. Por isso, bem-haja a independência!
1 comentários:
Com estas suas “crónicas para fazer rir…”, a Drª Odette Pinheiro prossegue no seu estilo peculiar de revisitar a problemática da nossa identidade, fazendo-o com pitadas de bom humor enquanto não se coíbe de chamar os bois pelos nomes. O humor funciona aqui como anestesia para as nossas dores, as nossas angústias e os nossos pesadelos, mas também para não deixar esmorecer os nossos sonhos e ilusões.
Referindo-se ao poder de “mentalidade retrógrada” que a nossa geração conheceu em Portugal, diz que “era mais uma certa inépcia misturada com arrogância…” É pura verdade, assim como alguns laivos de racismo que possamos ter constatado em Portugal tinham qualquer coisa de saloio, mais próximo de “mentalidade retrógrada” do que algo interiorizado e institucionalizado. E digo isto porque, no seu livro biográfico, é o antigo ministro salazarista Adriano Moreira que confessou que o ditador tinha frequentes tiradas racistas, usando o diminutivo. Por exemplo, citando o Adriano Moreira, dizia: “vamos então arranjar uns dinheiritos para os pretitos…”
Concordo quando exclama “Bem-haja independência!”, se isso nos permitiu receber ajudas significativas (sem qualquer comparação com os “dinheiritos” de Salazar) para dotar o país de infra-estruturas e entrar na senda de um progresso antes inimaginável. O problema é o momento actual. É esta encruzilhada em que nos encontramos sem saber por que caminho enveredar. Somos um micro país arquipelágico, isolado no Atlântico, indeciso sobre o alinhamento geopolítico que mais nos convenha, amarrado a um acordo cambial e a uma “parceria” com a União Europeia que não parecem contribuir para a resolução dos nossos mais candentes problemas, como a nossa já pesada dívida e, implicitamente, a sustentabilidade da nossa soberania.
Obrigado, Drª Odette Pinheiro. Apareça sempre!
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