Não
respondeu à minha questão e com um olhar de clara surpresa estampada na cara –
que me deixou em expectativa – os seus olhos claros muito mais abertos do que
habitualmente reflectindo estupefacção, avançou-me, como se eu já estivesse
contextualizado e sintonizado com ela: Chegaste a ler
esta entrevista?
–
Entrevista? Perguntei eu. Qual entrevista? Normalmente leio o jornal todo…
acrescentei.
–
Esta! A do ex-presidente da república! replicou.
–
Devo ter lido, respondi de forma displicente, acrescentando: Qual é a data do
jornal?
–
Julho de 2013.
–
Julho de 2013? Querias tu que eu me lembrasse de uma entrevista feita há dois
anos e meio? Não te esqueças que já celebrei muitos aniversários. E a minha
memória também. Não fez caso dos meus comentários e retrucou:
–
Disto tinhas que te lembrar… São assuntos que normalmente não te escapam e
ainda por cima é apresentado em grandes parangonas, disse-me enquanto apontava
com o dedo a frase exibida na primeira página do jornal: ”HÁ UM PRECONCEITO*
GRANDE EM RELAÇÃO AOS PARTIDOS ÚNICOS” afirmando: Isto é uma vergonha. Tira
qualquer um do sério! Estou escandalizada!
Franzi
a testa, levantei o sobrolho e disse-lhe:
–
Tens razão, se calhar não a li… Essas nossas frequentes andanças para Lisboa,
Praia, Lisboa fazem-me perder uma boa parte das informações... Outrossim,
(observei a fotografia) … Ele tem um discurso passadista e uma exacerbada sede
de protagonismo… Deixa-me ver o jornal! …
Sentei-me
e pus-me a ler a entrevista. Procurava o enquadramento da tal frase que
aparentava a lavagem da memória do passado e uma negligente justificação dos
seus anos de governação, sem oposição, isto é, sem qualquer abertura para o
contraditório. Na verdade não a tinha lido, a entrevista. Não era possível
tê-la lido e ficado indiferente! A generosidade da jornalista em aceitar
determinadas respostas sem contrapor era bem patente. Via-se ao longo da
entrevista que, mau grado a organização das perguntas, se não era, parecia ser
uma debutante em assuntos políticos. Parecia mais uma entrevista escrita onde
não tinha havido complementação das respostas do que ao vivo como ilustram as
imagens que a acompanhavam. Como aceitar a justificação das fraudes de
Baluarte, Mãe Joana e Covoada comprovadas em tribunais, decisivas para a sua
eleição com um simples: ”Tem de ver o meu
comportamento. Eu não dei importância a isso porque não havia de estar a
responder a todas as provocações. Tem de verificar o meu comportamento.”
(Fim de citação e da resposta)
Era
isto mesmo que a jornalista devia interpor. Sim, precisamente o seu
comportamento, senhor comandante, que foi de silêncio absoluto, de acomodação
às fraudes e do seu aproveitamento cúmplice. Responder a provocações? Que
provocações? O que se esperava era que o senhor fizesse uma condenação pública
das fraudes eleitorais e se demarcasse daqueles que as cometeram em seu nome.
Toda a gente esperava que procedesse em conformidade com o que disse atrás,
referindo-se ao assassínio de Amílcar Cabral, que as “assumisse” tendo em conta
a quem o crime beneficiou ou interessou…
A
entrevista está prenhe de fait divers
e de subtil arrivismo. E também da glorificação de um passado, em muitos
aspectos, de triste memória onde sobressaem a exclusão e a repressão. Com quem
então preconceitos em relação aos partidos únicos?! Dizer-se isto em 2013 não é
só preciso ser-se apenas um antidemocrata, é também declarar-se um convicto inimigo
da democracia. Compreendo a exclamação de “escândalo!” que me
alertou para a entrevista. Partido único não combina com democracia e fazer a
sua apologia, quais forem as circunstâncias é colocar-se contra a democracia o
que, aliás, o entrevistado declara frontalmente na entrevista ao assumir que a prioridade
não era a democracia, mas sim “pôr de pé o estado soberano e suas instituições”
como se isto não fosse possível, e até desejável, em democracia. Este
raciocínio de secundarização da democracia em proveito próprio e do clã define,
por si só, a natureza do regime.
E na
mesma linha, chega a ser confrangedora e caricata a resposta à pergunta: “Considera que houve ditadura em Cabo Verde?”
Vale bem a pena reproduzi-la:
“Eu acho que não. Ditadura como? Ditadura com
a responsabilização das pessoas? As pessoas é que fizeram aquilo. Era Pedro
Pires o grande ditador? Tem de pensar nisso. Porque a pessoa que está consigo
aqui é a mesma que começou como Primeiro Ministro de Cabo Verde. Se for ver as
minhas declarações, há-de chegar à conclusão de que se optou pela solução que
eu acho mais eficaz, a que estava ao alcance. Mais. Há que ter em conta que
fora o PAIGC, quem é que lutou mais para a independência de Cabo Verde? Eu acho
que pouca gente ou ninguém. E apareceu gente? Sim. Depois de já termos a
independência ou depois do processo encaminhado para a independência. Antes não
passávamos de meros terroristas.” (Fim de citação, o itálico é meu)
Descodificando,
era como se dissesse: “Este velhinho simpático, afável, com inquestionável
bonomia que está à sua frente, poderia alguma vez ter sido um ditador? Ele é o
mesmo de há 40 anos. Aliás, mesmo que tivesse havido ditadura, ela estava
justificada primeiro porque eu [que sei tudo] achei que era a “solução mais
eficaz” depois, porque só o PAIGC lutou para a independência, para a posse da
terra e da gente, e os que vieram depois não passam de oportunistas e, por
isto, sem direito a nada.”
Simplesmente
patética, a resposta. Mas não ingénua nem despida de arrogância e paternalismo,
pois quando a jornalista o confronta com: “Como
explica, por exemplo, a lei da reforma agrária e a opressão dos opositores ao
regime?” Diz umas generalidades sobre a reforma agrária apoiando-se
(imagine-se!) numas hipotéticas intenções do regime colonial sem falar das
consequências desastrosas e criminosas da que aplicou. E sobre a segunda parte
da pergunta: “a opressão dos opositores
ao regime” nem uma vírgula. Acabei de ler a entrevista, dirigi-me a minha
interlocutora e disse-lhe:
– E
tu, já leste a entrevista?
–
Sim, dei-lhe uma passagem rápida… respondeu-me ela. E repliquei:
–
Porque será que a jornalista não o “obrigou” a responder à questão dos
opositores ao regime? Não compreendo a omissão a uma resposta tão clarificadora
quanto aos eventuais preconceitos sobre os partidos únicos e as ditaduras que
geram. Fiz uma pausa e continuei:
–
Porque não lhe falou a jornalista das arbitrariedades da polícia política (DL
95/76); das perseguições aos opositores; da proibição de partidos políticos; da
lei que criminaliza boatos (Dec. 37/75); da lei de prisão arbitrária apenas por
suspeição; da lei (Decisão com Força de Lei nº 1/77) que estabelece a
impunidade dos membros do Governo perante a lei; dos tribunais militares de
génese totalmente político-partidária – combatentes da Guiné – (conjugação DL
nº 121/77 e nº 8/75) para julgar todos os militares (e militarizados) e alguns
civis; do juramento de fidelidade dos funcionários a um partido (binacional) –
o PAIGC – e não ao Estado de Cabo Verde (Dec.4/76); da autorização de saída; do
delito de opinião; das torturas; das mortes de opositores?
Se
isto não configura um regime ditatorial que só pode ser gerado por um Partido
Único (ou ausência de partidos), então não há ditaduras e não haverá qualquer
razão para se ter preconceitos em relação a Partidos Únicos.
–
Olha, o que me surpreende é como é que um homem que jurou defender uma
Constituição tão democrática como a nossa e, obviamente, pluralista e defensora
dos direitos, garantias e liberdade dos cidadãos, ousa falar tão
apologeticamente de partidos únicos. Está visto que não bate a bota com a perdigota. Só pode ser compreendido, não
justificado, no âmbito de uma estratégia de exaltação e glorificação de um
regime que todo o País condenou de forma inequívoca no dia 13 de Janeiro de
1991. Parece que o regresso ao poder, dez anos depois, travestidos de
democratas, fá-los pensar que o povo já se esqueceu do veridicto de 1991.
É
preciso refrescar a memória!
A.
Ferreira
1 comentários:
Bela e esclarecedora peça. Mais um contributo para refrescar a memória e evitar que ela prescreva em definitivo e o acerto de contas nunca mais se faça em confronto de consciências. É inacreditável essa dificuldade em pedir perdão. E isso é grave porque só as más consciências incorrem em semelhante recusa ou omissão, o que pode ser sintoma de mau carácter ou então de um sentimento de culpas consideradas inconfessáveis ou irremissíveis, tal a sua gravidade.
Bem, eu não iria por aí, recusar-me-ia vestir a pele de juiz ou algoz por entender que a criatura humana é, no fundo, muito frágil. O carrasco de ontem pode ser hoje um pobre coitado que nem sequer tem a noção exacta do que fez ontem. E depois penso que nós, cabo-verdianos, somos todos moldados por uma geografia agreste que nos amolece o coração e trava os ânimos mais exaltados. Enfim, somos pessoas cândidas e cordatas, ou então fingimos que o somos. Mas, caramba, não entenderei nunca como foi possível infligir tortura e sofrimento a criaturas singelas como o Tói de Forro, o Titino Boxeur e outras mais, por alegado delito de opinião. O poder obscureceu o discernimento daquela gente, como certamente nunca se imaginaria. Razão por que segundo o adágio popular não se deve dizer que dessa água não beberei.
Mas, transitando do coração para a razão, é espantoso ouvir da boca de quem foi o mais alto magistrado da nação essa observação de estranheza sobre “preconceito contra o partido único”. Isto é grave e merece ser escalpelizado. Pode representar um bloqueamento mental que lhes dificulta a arrumação da consciência para poderem pedir perdão aos perseguidos e maltratados pelo partido único. Será então caso de necessitarem de uma psicoterapia colectiva? Ou somos nós todos, cabo-verdianos, que precisamos urgentemente de uma autognose para podermos ir ao fundo de nós e ordenarmos os nossos juízos sobre factos, realidades e valores? E resolvermos em definitivo essa polémica questão identitária?
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