Por se tratar de um texto interessante - eventualmente polémico - numa
perspectiva das vicissitudes por que vai passando a nossa Língua, tomámos a
liberdade, com a devida vénia ao seu autor, de o publicar aqui, recomendando a
sua leitura ao visitante do «Coral Vermelho».
Por: Raúl Proença Mesquita[ii]
Já há tempos tinha pensado em trazer este assunto à baila. É para mim um
assunto da maior importância: a língua. Esta exprime um tipo de pensamento ou
vice-versa, o pensamento exprime-se por uma sintaxe e por uma morfologia
particulares.
Ora vejamos. “I am going to go
home”, à letra, “eu vou indo para ir para casa”, ou seja, “eu vou andando para
casa”. O “eu vou indo para ir para casa”, mentalmente, não é o mesmo do
que eu vou para
casa. Significam o mesmo, mas não são o
mesmo. O que quero dizer com isto? Quero simplesmente dizer que o processo
mental de um falante da língua inglesa é diferente do da língua dos portugueses
e dos PALOP.
No Brasil a coisa é outra. O
português deste país está oficialmente colonizado pelo inglês dos EUA. Mas o
encadeamento não acaba aqui. Com a invasão de telenovelas brasileiras,
mas especialmente com a massa imigratória de brasileiros para o nosso país, sem
fazer qualquer comentário sociopolítico, até porque sou por uma sociedade
cosmopolita, a língua portuguesa degradou-se ao ponto de a mente se deteriorar
no raciocínio, tal como a britânica pela colonização linguística americana, por
exemplo, nas exclamações tais como “cool!”, “awesome!”, etc.
Claro que vou dar mais exemplos
(mas não “darei exemplos”). “Sente aqui, relaxe.” O que é isto? Primeiro: Sente
aqui uma dor? Não sinto. Está bem. Em português diz-se sente-se aqui. Segundo: Relaxe não é
português, é inglês, relax. Em português usa-se o verbo descontrair – descontraia-se. Como veem
em inglês não há praticamente verbos reflexos, excepto quando se usa o yourself mas em português há muitos.
Dir-me-ão que as línguas mudam.
Sim, é verdade. A língua portuguesa, por exemplo, mudou muito no século XVI, a
francesa, no princípio do século XVIII, por exemplo, na pronúncia de Roi (rei)
Rué, para Ruá, mas a estrutura mental, não. Tirar a reflexão a um verbo é como
retirar os espelhos a uma sociedade inteira. Isso não mudará a mentalidade de
um povo?
As mudanças que referimos em
Portugal foram de ordem gráfica e de pronúncia, relativas a um lógico
afastamento da tradição galega. De bēstia para besta, por exemplo. Mas actualmente são muito graves.
Aqueles que advogam acordos
ortográficos que, curiosamente, não o são só, são muito mais, tornam-se em
acordos ideológicos em que se serve de bandeja a língua de vários países
(Portugal e PALOP) a um que se estipulou ser o mais importante, que será, do ponto
de vista económico.
A Europa abdicou de lutar pela sua
cultura, ou seja, pela sua maneira de pensar, pelas suas estruturas mentais,
entregando-se ao facilitismo de um pensamento primário que serve para o
dia-a-dia, mas nunca para um pensamento crítico que, aliás, infelizmente, não
convém ao status quo.
Tudo isto acompanhado pelas aspas
em mímica com os dedos indicador e médio de ambas as mãos em jeito de teatro de
Robertos, onde pode ter graça, mais o constante OK americano que invadiu a
cultura britânica e agora o mundo (em Portugal, o bonito Ókay) e o wau, aqui, uau, completam um cocktail de
asneirada apropriado para os tempos actuais. Mas não ficamos por aqui.
Que tal o “avariou”? Mas avariou o
quê? É um verbo transitivo, pede complemento directo. Desculpem, mas tem de
haver gramática, o tal pensamento de que falei. Exemplo: Ele avariou todas as
trotinetes do Alfeite. Ou então: O meu carro avariou-se. Já sabemos
de onde vem o erro. Mas os portugueses mesmo os dos meios universitários
dão-no. Grave, hein! E não posso deixar de assinalar, antes do fecho, dois
advérbios que andam na boca das gentes: basicamente e obviamente. Bem, existem no léxico português mas são palavras
anglo saxónicas. Por que não, no primeiro caso, no fundo… e no segundo, é claro ou é evidente…?
Falar bem, ou seja, com
simplicidade, sem arrebiques, será actualmente uma utopia tal como Shangri-La?
Depois do exposto fica-se perplexo.
“To be, or not to be”, Hamlet, Shakespeare. A pergunta
metafísica par excellence no contexto da decadência da linguagem leva a quem se preocupa a
perguntar: decadência contínua inevitável ou esperança numa travagem? Acredito
na segunda hipótese. Será difícil. À primeira vista parece impossível,
lembremos a República de Platão, mas então por que escrevo?
In: "Jornal Económico" de 14 de Novembro de 2023.
[ii] Professor reformado, escritor.
1 comentários:
Li com muito interesse este artigo, que devia dar que pensar aos especialistas na matéria. É quase obscena a forma como se tem vindo a poluir o português com vocábulos ou expressões do inglês (americano), prática que é mais comum entre aqueles que deviam ter a responsabilidade de preservar e defender a sua identidade e pureza: pessoas com formação académica superior. É lamentável que o façam convencidos de que estão a dar um toque de classe à expressão do seu pensamento.
E como se não bastasse, o novo acordo ortográfico veio agravar tudo.
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