(Conclusão)[i]
Por Adriano
Miranda Lima[ii]
Prosseguindo
e concluindo a reflexão iniciada no artigo anterior, torna-se legítima a dúvida
se a recente demissão do governo de maioria absoluta foi algo inesperado ou um
desfecho ansiado por quantos, ao longo deste ano e meio de legislatura
interrompida, foram afinando a orquestra de uma dura e intransigente oposição e
semeando uma inquietação social permanente.
Inquietos
com as consequências previsíveis para o futuro próximo, justifica-se um esforço
de introspecção para tentar saber o que pode ser um simples acidente de
percurso ou um problema sistémico instalado como abscesso no regime político.
Aqui é que entronca a interrogação crítica que tem de ser formulada, sob pena
de nos iludirmos ou de não conseguirmos detectar os mecanismos correctivos.
Será altura para cada um acertar as contas com a consciência cívica e com a
realidade. Para isso, a maiêutica, ou a auto-reflexão, podem ajudar, como a
seguir se propõe.
Este
governo parece ter causado engulho aos que não esperavam a maioria absoluta, e
nem o Presidente da República fica imune à suspeição quando se sabe do teor das
suas constantes e impertinentes observações: “maioria requentada”; “bomba
atómica”, metáfora de uma possível dissolução da assembleia legislativa;
intrusão quase diária na acção governativa, etc. Essa postura ajudou a que
nenhuma medida do governo fosse credora da mais ténue concordância dos partidos
da oposição, nem daquele que mais se lhe aproxima no centro do espectro
político. Como se à mesma realidade social e económica pudessem corresponder
leituras tão multifacetadas vinculando diferentes perspectivas de solução.
Prova-o a ausência de alternativas plausíveis ou realistas.
Mas é
claro que todo o confronto político, mesmo o mais aceso e chispante, tem a sua
natural legitimidade no debate democrático e em sede parlamentar, onde têm
lugar mesmo esses partidos que são anti-regime e que aproveitam a casa da
democracia como campo de ressonância da sua animosidade e agressividade e não
como espaço de construção e entendimento. Agora que algumas sondagens lhes
sugerem possível crescimento eleitoral e uma hipótese de partilha do poder,
fazem por simular alguma moderação e contenção, mas só se deixa enganar quem
tiver desligado a campainha de alarme e abdicado do exercício responsável da
cidadania.
É
certo que um pouco por todo o lado se assiste a um decréscimo da qualidade das
democracias, pelo que convém sempre auscultar a verdadeira extensão do problema
entre nós a fim de saber em que medida isso significa um fenómeno político
transitório ou um fenómeno social capaz de deslocar substancialmente do centro
do espectro político a opção maioritária do eleitorado, como até hoje
aconteceu, desde 1975. A acontecer, a nossa democracia receberia um golpe antes
de podermos ajuizar em base segura sobre a nossa capacidade de a consolidar e
de garantir a perenidade do regime que é o único que nos serve para a
construção de um futuro mais próspero e mais justo. Por enquanto, a expressão
do voto popular não dá razão para recear aquele cenário.
Perguntar-se-á
se a nossa alegada dificuldade de entendimento e de concertação no plano
político é mesmo um sintoma daquela característica psicossomática de que se
queixava o romano Sérgio Galba e que iria servir de pretexto a Salazar. A
resposta exigirá que se distinga entre povo e elites para aferir se o problema
tem, de facto, relação com características identitárias ou se resulta mais do
comportamento típico de estratos sociais mais instruídos e evoluídos.
Exemplifica-se: é mais provável o povo profundo unir-se à volta do interesse
comunitário na aldeia do que os representantes dos vários interesses sociais
concordarem sobre a localização do novo aeroporto ou de um novo hospital
regional. Compreende-se que aumentando a escala da incidência do problema aumenta
necessariamente a sua complexidade. Só que o refinamento intelectual e cultural
se compraz com a pulsão filosófica para divergir de forma sistemática, e nisto
o melhor exemplo é a chamada “esquerda caviar”. É o paradoxo de a condição
social e cultural poder conduzir à denegação da democracia.
Todavia,
uma coisa é o circunstancialismo normal que rodeia o funcionamento da
democracia e a existência do estado de direito, outra é a ocorrência de
situações anómalas que atentam contra a sua integridade, e mais críticas e
intrigantes são quando nascem de fenómenos disfuncionais dentro de um organismo
do Estado. Foi o que aconteceu com as circunstâncias em que o processo
“Influencer” contribuiu para derrubar um governo de maioria absoluta e criar
uma crise política. Ultrapassando as normais contingências do activismo
parlamentar ou da conflitualidade social, a situação vai por muito tempo ocupar
o cerne do debate nacional. Hoje, quase ninguém questiona a necessidade de
reorganizar o funcionamento da Justiça, não propriamente pelas incidências
deste processo ou pela forma como o juiz de instrução criminal deixou cair os
crimes de corrupção e de prevaricação, mas também, e sobretudo, por uma série
de antecedentes que não são favoráveis à imagem institucional do Ministério
Público.
Seria
irónico que fossem distopias na organização e funcionamento do Estado,
passíveis de correcção, a contribuir para a descrença do cidadão nas virtudes
da democracia. Na verdade, o Ministério Público carece de reorganização
funcional para que não perca a probidade e as virtudes cívicas que lhe são
imprescindíveis como órgão do Estado de direito democrático.
Para
concluir, a minha convicção é que o português é tão capaz como os melhores de
viver em regime democrático e sob os seus melhores auspícios. A própria União
Europeia o atestou quando se admirou com a nossa maioria absoluta, a única no
espaço europeu, e com o sucesso da governação financeira, reduzindo
consideravelmente o défice orçamental e baixando a dívida pública para abaixo
dos 100%. A Moody’s melhorou a notação da nossa dívida soberana em dois níveis,
ficando Portugal acima de Espanha, o que nunca tinha acontecido. E agora veio
Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, afirmar que Portugal realizou um
milagre económico. Ora, nada disto seria possível com um povo avesso à
democracia.
Salazar,
em uma entrevista concedida a António Ferro, descreveu os principais defeitos e
qualidades do povo português. Segundo ele, os defeitos são: “excessivamente
sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de
espírito de continuidade e de tenacidade na acção.” É estranho que ele não
tenha mencionado o que justificou a imposição da ditadura do Estado Novo. No
mais, penso que a auto-estima nacional impede que tenhamos de dar razão aos
descrentes. Até porque os quase cinquenta anos de democracia já lavraram um
percurso que só pode ser irreversível.
[i] Artigo publicado - 1ª parte e conclusão - no jornal “Templário” de Tomar
[ii]
Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um
militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia,
adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem
vinculação partidária.
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