Portugal é mesmo ingovernável em democracia?

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 (Conclusão)[i]

Por Adriano Miranda Lima[ii]

Prosseguindo e concluindo a reflexão iniciada no artigo anterior, torna-se legítima a dúvida se a recente demissão do governo de maioria absoluta foi algo inesperado ou um desfecho ansiado por quantos, ao longo deste ano e meio de legislatura interrompida, foram afinando a orquestra de uma dura e intransigente oposição e semeando uma inquietação social permanente.

Inquietos com as consequências previsíveis para o futuro próximo, justifica-se um esforço de introspecção para tentar saber o que pode ser um simples acidente de percurso ou um problema sistémico instalado como abscesso no regime político. Aqui é que entronca a interrogação crítica que tem de ser formulada, sob pena de nos iludirmos ou de não conseguirmos detectar os mecanismos correctivos. Será altura para cada um acertar as contas com a consciência cívica e com a realidade. Para isso, a maiêutica, ou a auto-reflexão, podem ajudar, como a seguir se propõe.

Este governo parece ter causado engulho aos que não esperavam a maioria absoluta, e nem o Presidente da República fica imune à suspeição quando se sabe do teor das suas constantes e impertinentes observações: “maioria requentada”; “bomba atómica”, metáfora de uma possível dissolução da assembleia legislativa; intrusão quase diária na acção governativa, etc. Essa postura ajudou a que nenhuma medida do governo fosse credora da mais ténue concordância dos partidos da oposição, nem daquele que mais se lhe aproxima no centro do espectro político. Como se à mesma realidade social e económica pudessem corresponder leituras tão multifacetadas vinculando diferentes perspectivas de solução. Prova-o a ausência de alternativas plausíveis ou realistas.

Mas é claro que todo o confronto político, mesmo o mais aceso e chispante, tem a sua natural legitimidade no debate democrático e em sede parlamentar, onde têm lugar mesmo esses partidos que são anti-regime e que aproveitam a casa da democracia como campo de ressonância da sua animosidade e agressividade e não como espaço de construção e entendimento. Agora que algumas sondagens lhes sugerem possível crescimento eleitoral e uma hipótese de partilha do poder, fazem por simular alguma moderação e contenção, mas só se deixa enganar quem tiver desligado a campainha de alarme e abdicado do exercício responsável da cidadania.

É certo que um pouco por todo o lado se assiste a um decréscimo da qualidade das democracias, pelo que convém sempre auscultar a verdadeira extensão do problema entre nós a fim de saber em que medida isso significa um fenómeno político transitório ou um fenómeno social capaz de deslocar substancialmente do centro do espectro político a opção maioritária do eleitorado, como até hoje aconteceu, desde 1975. A acontecer, a nossa democracia receberia um golpe antes de podermos ajuizar em base segura sobre a nossa capacidade de a consolidar e de garantir a perenidade do regime que é o único que nos serve para a construção de um futuro mais próspero e mais justo. Por enquanto, a expressão do voto popular não dá razão para recear aquele cenário.

Perguntar-se-á se a nossa alegada dificuldade de entendimento e de concertação no plano político é mesmo um sintoma daquela característica psicossomática de que se queixava o romano Sérgio Galba e que iria servir de pretexto a Salazar. A resposta exigirá que se distinga entre povo e elites para aferir se o problema tem, de facto, relação com características identitárias ou se resulta mais do comportamento típico de estratos sociais mais instruídos e evoluídos. Exemplifica-se: é mais provável o povo profundo unir-se à volta do interesse comunitário na aldeia do que os representantes dos vários interesses sociais concordarem sobre a localização do novo aeroporto ou de um novo hospital regional. Compreende-se que aumentando a escala da incidência do problema aumenta necessariamente a sua complexidade. Só que o refinamento intelectual e cultural se compraz com a pulsão filosófica para divergir de forma sistemática, e nisto o melhor exemplo é a chamada “esquerda caviar”. É o paradoxo de a condição social e cultural poder conduzir à denegação da democracia.

Todavia, uma coisa é o circunstancialismo normal que rodeia o funcionamento da democracia e a existência do estado de direito, outra é a ocorrência de situações anómalas que atentam contra a sua integridade, e mais críticas e intrigantes são quando nascem de fenómenos disfuncionais dentro de um organismo do Estado. Foi o que aconteceu com as circunstâncias em que o processo “Influencer” contribuiu para derrubar um governo de maioria absoluta e criar uma crise política. Ultrapassando as normais contingências do activismo parlamentar ou da conflitualidade social, a situação vai por muito tempo ocupar o cerne do debate nacional. Hoje, quase ninguém questiona a necessidade de reorganizar o funcionamento da Justiça, não propriamente pelas incidências deste processo ou pela forma como o juiz de instrução criminal deixou cair os crimes de corrupção e de prevaricação, mas também, e sobretudo, por uma série de antecedentes que não são favoráveis à imagem institucional do Ministério Público.

Seria irónico que fossem distopias na organização e funcionamento do Estado, passíveis de correcção, a contribuir para a descrença do cidadão nas virtudes da democracia. Na verdade, o Ministério Público carece de reorganização funcional para que não perca a probidade e as virtudes cívicas que lhe são imprescindíveis como órgão do Estado de direito democrático.

Para concluir, a minha convicção é que o português é tão capaz como os melhores de viver em regime democrático e sob os seus melhores auspícios. A própria União Europeia o atestou quando se admirou com a nossa maioria absoluta, a única no espaço europeu, e com o sucesso da governação financeira, reduzindo consideravelmente o défice orçamental e baixando a dívida pública para abaixo dos 100%. A Moody’s melhorou a notação da nossa dívida soberana em dois níveis, ficando Portugal acima de Espanha, o que nunca tinha acontecido. E agora veio Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, afirmar que Portugal realizou um milagre económico. Ora, nada disto seria possível com um povo avesso à democracia.

Salazar, em uma entrevista concedida a António Ferro, descreveu os principais defeitos e qualidades do povo português. Segundo ele, os defeitos são: “excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção.” É estranho que ele não tenha mencionado o que justificou a imposição da ditadura do Estado Novo. No mais, penso que a auto-estima nacional impede que tenhamos de dar razão aos descrentes. Até porque os quase cinquenta anos de democracia já lavraram um percurso que só pode ser irreversível.



[i] Artigo publicado - 1ª parte e conclusão - no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação partidária.


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