Crónica de uma crise política anunciada

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

As crises políticas nas democracias resultam normalmente de um problema de governabilidade, que é o que acontece quando um executivo não consegue assegurar apoio parlamentar ou deixou de o ter. Mas a crise em que inesperadamente Portugal mergulhou é bem diferente, com tudo para se constituir em caso de estudo, ou não tivesse o país uma solução governativa potencialmente estável que se viu extinta, a meio da legislatura, sem uma causa política. E é particularmente custosa porque o voto popular tinha sinalizado o desejo de uma estabilidade política. No entanto, uma coisa é a vontade popular, genuína e pura, que se exprime em pleito eleitoral e chancela uma legitimidade política, outra é tudo o que pertence à ordem de motivações, ambições e interesses ocultos que determinam comportamentos individualizados e de grupo. Enquanto o povo anónimo cumpre o dever cívico e vai a seguir à sua vida, as elites têm a prerrogativa de exercer um continuum de acção influenciadora da vida social, em estruturas privadas e corporativas ou por influência directa ou induzida na esfera institucional do Estado. E é deste modo que a vontade da maioria pode ver-se condicionada ou mesmo bloqueada por razões que escapam à lógica normal do jogo democrático.

Dito isto, analisando a presente crise, é de presumir que ela começou a ser congeminada e montada peça a peça a partir do momento em que o povo fez a sua escolha eleitoral elegendo um governo de maioria absoluta. Esta teve o efeito de um murro no estômago da oposição e, tudo o indica, foi uma surpresa para o Presidente da República (PR), classifique-a o leitor como entender. De facto, não é possível descartar o PR da responsabilidade primária que o prende inapelavelmente a todo o processo que de forma larvar se foi delineando e que haveria de conduzir à dissolução do Parlamento. Desde logo, no discurso da posse do governo, percebeu-se algo de inusitado nas palavras presidenciais, havendo razões para especular sobre o que lhes estaria subjacente. Terá sido o desconforto de pressentir que um governo de maioria absoluta ensombraria o protagonismo presidencial? Porque quando o PR frisa a António Costa que a maioria era dele pessoalmente, mas que não significava poder absoluto, é como se dissesse que ela não era a legitimação natural de uma escolha política, mas o plebiscito a um putativo primeiro-ministro. Teve necessidade de o afirmar ao empossado e de o sublinhar perante a puridade. E, cereja em cima do bolo azedo, fez questão de aludir à natureza do exercício do poder – “poder absoluto” −, como se algum precedente lhe permitisse dúvidas sobre o estilo de liderança política de António Costa.

Na verdade, em matéria de pedagogia cívica, o PR não esteve bem ao contribuir para que no espírito do cidadão se instalasse uma dúvida sobre o significado constitucional das eleições legislativas – em que o povo elege deputados optando por um programa político e não propriamente o chefe do executivo, embora na prática o desiderato seja este, dado que o líder do partido mais votado é geralmente quem chefia o governo. Por outro lado, com a conduta que lhe é peculiar, o PR iria dar azo, ao longo do tempo em que durou a legislatura, a uma subversão constante do princípio da separação e interdependência dos poderes soberanos, ao comentar a par e passo os actos da governação perante as câmaras de televisão, endereçando recados subliminares ou tecendo apreciações críticas mais ou menos discretas. Só que o governo responde é perante o Parlamento, não perante o PR, dispondo este das reuniões privadas com o chefe do executivo para se poder pronunciar sobre os problemas da governação. Mas o corolário da impertinência do PR foi o modo insidioso como amiúde comentou publicamente o significado da maioria absoluta, trazendo à baila, com raro propósito, o recurso à “bomba atómica”, como se a escolha eleitoral do povo lhe causasse uma azia política insuperável. Além disso, os inúmeros vetos presidenciais ocorridos neste ano, sem paralelo com os anteriores, é mais uma demonstração de que algo mudou na relação do PR com o governo.

Assim, sobram razões para o cidadão comum construir cenários, podendo especular-se com o que a realidade oferece.

Cabe então perguntar se o chamado “caso Galamba” não foi o gatilho que se armou a aguardar a oportunidade do tiro. Se não foi, parece. O Ministério Público há muito que lavrava em silêncio o terreno da sua autonomia, onde António Costa recusou sempre interferir, sequer comentar, quanto mais propor qualquer medida reformadora, mesmo que as evidências sugerissem a sua necessidade. E assim se tornam públicos, em conluio com uma comunicação social sedenta de sensacionalismo e aberta a promíscuas relações, casos judiciais de oportunidade questionável e que se foram sucedendo destacando-se pela sua frequência inusitada ou pelo excesso de medidas restritivas de direitos individuais – em que, por exemplo, ultrapassa todos os limites a auscultação sistemática de um ministro 82.000 vezes durante 4 anos, e outras situações indiciadoras de perseguição justicialista visando, estranhamente, quase sempre o mesmo partido.

Imaginando um cenário arrepiante, o processo “Influencer” é como se o Ministério Público tenha escolhido a pólvora para o tiro decisivo e ajustado o respectivo rastilho. O processo já fez correr muita tinta, e credite-se-lhe ao menos o mérito de fazer despertar a atenção para o que no sistema judiciário pode estar a fugir ao peso e à medida adequados para funcionamento equilibrado do Estado de direito e o respeito pelos direitos fundamentais. A ética e a integridade cívica são requisitos imprescindíveis para se poder confiar a um servidor do Estado um estatuto de autonomia intocável como a dos procuradores do Ministério Público. São os únicos não escrutinados e isentos de responsabilização funcional. Mas por quantos deles poríamos a mão no fogo em matéria de isenção político-partidária, para além de outras virtudes? A pergunta faz sentido quando se sabe que um dos intervenientes no processo “Influencer” foi assessor em ministérios do governo de Passos Coelho. De resto, não terá sido por acaso que o juiz de instrução deixou cair os crimes de corrupção e mandou em liberdade os indiciados.

Se tudo o que sobreveio com o tal “parágrafo assassino” foi inesperado ou previamente calculado, só o futuro o dirá. Saltou estrepitosamente à vista a inadvertência da Procuradora-Geral da República (PGR), ao aparentar não fazer a mínima noção do que poderia resultar do “seu parágrafo”, não percebendo a gravidade que é publicitar que um primeiro-ministro é alvo de investigação criminal, com buscas intrusivas na sua residência oficial, sem haver uma suspeita fundada da prática de qualquer crime. Uma PGR não pode limitar-se a uma interpretação legalista e mecanicista das suas funções, à margem da ponderação racional e da visão abrangente que o seu poder exige, sob pena de comprometer o normal funcionamento dos órgãos de soberania e das instituições democráticas. Dizer-se surpreendida com o pedido de demissão de António Costa só reforça a presunção de que não estará à altura da responsabilidade do cargo. E, sobretudo, que carece de uma integridade ética que a habilite a perceber a ética de António Costa.

Ao PR terá sido proporcionado, resta saber se de bandeja ou por encomenda, o manípulo para o accionamento da explosão com que antes ameaçara. Sim, porque o Conselho de Estado não lhe sugeriu a dissolução da Assembleia Legislativa e havia soluções que teriam evitado paralisar o país e insuflar o ânimo dos inimigos confessos da democracia. Mas Marcelo Rebelo de Sousa deve ter realizado um desígnio pessoal, acertando contas que não são seguramente as do país.

P.S: E que o Ministério Público se credibilize para o combate aos verdadeiros crimes públicos.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90.

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