Por Adriano Miranda Lima[i]
As
crises políticas nas democracias resultam normalmente de um problema de
governabilidade, que é o que acontece quando um executivo não consegue
assegurar apoio parlamentar ou deixou de o ter. Mas a crise em que
inesperadamente Portugal mergulhou é bem diferente, com tudo para se constituir
em caso de estudo, ou não tivesse o país uma solução governativa potencialmente
estável que se viu extinta, a meio da legislatura, sem uma causa política. E é
particularmente custosa porque o voto popular tinha sinalizado o desejo de uma
estabilidade política. No entanto, uma coisa é a vontade popular, genuína e
pura, que se exprime em pleito eleitoral e chancela uma legitimidade política,
outra é tudo o que pertence à ordem de motivações, ambições e interesses
ocultos que determinam comportamentos individualizados e de grupo. Enquanto o
povo anónimo cumpre o dever cívico e vai a seguir à sua vida, as elites têm a
prerrogativa de exercer um continuum de acção influenciadora da vida social, em
estruturas privadas e corporativas ou por influência directa ou induzida na
esfera institucional do Estado. E é deste modo que a vontade da maioria pode
ver-se condicionada ou mesmo bloqueada por razões que escapam à lógica normal
do jogo democrático.
Dito
isto, analisando a presente crise, é de presumir que ela começou a ser
congeminada e montada peça a peça a partir do momento em que o povo fez a sua
escolha eleitoral elegendo um governo de maioria absoluta. Esta teve o efeito
de um murro no estômago da oposição e, tudo o indica, foi uma surpresa para o
Presidente da República (PR), classifique-a o leitor como entender. De facto,
não é possível descartar o PR da responsabilidade primária que o prende
inapelavelmente a todo o processo que de forma larvar se foi delineando e que
haveria de conduzir à dissolução do Parlamento. Desde logo, no discurso da
posse do governo, percebeu-se algo de inusitado nas palavras presidenciais,
havendo razões para especular sobre o que lhes estaria subjacente. Terá sido o
desconforto de pressentir que um governo de maioria absoluta ensombraria o
protagonismo presidencial? Porque quando o PR frisa a António Costa que a
maioria era dele pessoalmente, mas que não significava poder absoluto, é como
se dissesse que ela não era a legitimação natural de uma escolha política, mas
o plebiscito a um putativo primeiro-ministro. Teve necessidade de o afirmar ao
empossado e de o sublinhar perante a puridade. E, cereja em cima do bolo azedo,
fez questão de aludir à natureza do exercício do poder – “poder absoluto” −,
como se algum precedente lhe permitisse dúvidas sobre o estilo de liderança
política de António Costa.
Na
verdade, em matéria de pedagogia cívica, o PR não esteve bem ao contribuir para
que no espírito do cidadão se instalasse uma dúvida sobre o significado
constitucional das eleições legislativas – em que o povo elege deputados
optando por um programa político e não propriamente o chefe do executivo,
embora na prática o desiderato seja este, dado que o líder do partido mais
votado é geralmente quem chefia o governo. Por outro lado, com a conduta que
lhe é peculiar, o PR iria dar azo, ao longo do tempo em que durou a
legislatura, a uma subversão constante do princípio da separação e
interdependência dos poderes soberanos, ao comentar a par e passo os actos da
governação perante as câmaras de televisão, endereçando recados subliminares ou
tecendo apreciações críticas mais ou menos discretas. Só que o governo responde
é perante o Parlamento, não perante o PR, dispondo este das reuniões privadas
com o chefe do executivo para se poder pronunciar sobre os problemas da
governação. Mas o corolário da impertinência do PR foi o modo insidioso como
amiúde comentou publicamente o significado da maioria absoluta, trazendo à
baila, com raro propósito, o recurso à “bomba atómica”, como se a escolha
eleitoral do povo lhe causasse uma azia política insuperável. Além disso, os
inúmeros vetos presidenciais ocorridos neste ano, sem paralelo com os
anteriores, é mais uma demonstração de que algo mudou na relação do PR com o
governo.
Assim,
sobram razões para o cidadão comum construir cenários, podendo especular-se com
o que a realidade oferece.
Cabe
então perguntar se o chamado “caso Galamba” não foi o gatilho que se armou a
aguardar a oportunidade do tiro. Se não foi, parece. O Ministério Público há
muito que lavrava em silêncio o terreno da sua autonomia, onde António Costa
recusou sempre interferir, sequer comentar, quanto mais propor qualquer medida
reformadora, mesmo que as evidências sugerissem a sua necessidade. E assim se
tornam públicos, em conluio com uma comunicação social sedenta de
sensacionalismo e aberta a promíscuas relações, casos judiciais de oportunidade
questionável e que se foram sucedendo destacando-se pela sua frequência
inusitada ou pelo excesso de medidas restritivas de direitos individuais – em
que, por exemplo, ultrapassa todos os limites a auscultação sistemática de um
ministro 82.000 vezes durante 4 anos, e outras situações indiciadoras de
perseguição justicialista visando, estranhamente, quase sempre o mesmo partido.
Imaginando
um cenário arrepiante, o processo “Influencer” é como se o Ministério Público
tenha escolhido a pólvora para o tiro decisivo e ajustado o respectivo
rastilho. O processo já fez correr muita tinta, e credite-se-lhe ao menos o
mérito de fazer despertar a atenção para o que no sistema judiciário pode estar
a fugir ao peso e à medida adequados para funcionamento equilibrado do Estado
de direito e o respeito pelos direitos fundamentais. A ética e a integridade
cívica são requisitos imprescindíveis para se poder confiar a um servidor do
Estado um estatuto de autonomia intocável como a dos procuradores do Ministério
Público. São os únicos não escrutinados e isentos de responsabilização
funcional. Mas por quantos deles poríamos a mão no fogo em matéria de isenção
político-partidária, para além de outras virtudes? A pergunta faz sentido
quando se sabe que um dos intervenientes no processo “Influencer” foi assessor
em ministérios do governo de Passos Coelho. De resto, não terá sido por acaso
que o juiz de instrução deixou cair os crimes de corrupção e mandou em
liberdade os indiciados.
Se
tudo o que sobreveio com o tal “parágrafo assassino” foi inesperado ou
previamente calculado, só o futuro o dirá. Saltou estrepitosamente à vista a
inadvertência da Procuradora-Geral da República (PGR), ao aparentar não fazer a
mínima noção do que poderia resultar do “seu parágrafo”, não percebendo a
gravidade que é publicitar que um primeiro-ministro é alvo de investigação
criminal, com buscas intrusivas na sua residência oficial, sem haver uma
suspeita fundada da prática de qualquer crime. Uma PGR não pode limitar-se a
uma interpretação legalista e mecanicista das suas funções, à margem da
ponderação racional e da visão abrangente que o seu poder exige, sob pena de
comprometer o normal funcionamento dos órgãos de soberania e das instituições
democráticas. Dizer-se surpreendida com o pedido de demissão de António Costa
só reforça a presunção de que não estará à altura da responsabilidade do cargo.
E, sobretudo, que carece de uma integridade ética que a habilite a perceber a
ética de António Costa.
Ao
PR terá sido proporcionado, resta saber se de bandeja ou por encomenda, o
manípulo para o accionamento da explosão com que antes ameaçara. Sim, porque o
Conselho de Estado não lhe sugeriu a dissolução da Assembleia Legislativa e
havia soluções que teriam evitado paralisar o país e insuflar o ânimo dos
inimigos confessos da democracia. Mas Marcelo Rebelo de Sousa deve ter
realizado um desígnio pessoal, acertando contas que não são seguramente as do
país.
P.S:
E que o Ministério Público se credibilize para o combate aos verdadeiros crimes
públicos.
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