Quando a democracia acolhe cavalos de Tróia no seu seio

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

Calha estar a escrever numa altura em que se assinala o 99º aniversário de Mário Soares, o homem político a quem muito devemos o privilégio de viver numa democracia prestes a comemorar o cinquentenário. Ele que, se fosse vivo, não deixaria, mesmo em idade mais avançada, de fazer ouvir a veemência da sua voz para condenar sem apelo nem agravo aqueles que aproveitam a liberdade para atentar contra o regime democrático e agredir os que o servem. Ultrapassa os limites do desrespeito o teor de certas afirmações e atitudes, como a que se ouviu recentemente a André Ventura quando proferiu que “é preciso dar um pontapé no traseiro ao Augusto Santos Silva”. Este cidadão não é um parceiro de café ou tasca, é simplesmente a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, eleito pelo povo.

Ignoro que reacções suscitaram na sociedade política tão deploráveis palavras. Mas se com o silêncio e a passividade dos democratas a intenção é a pedagogia da tolerância e da moderação, esquecem que isso pode ser interpretado como fraqueza ou cobardia por aqueles que ignoram a ética e os princípios e não hesitam em recorrer a processos iníquos para descredibilizar a vivência democrática. São os que apostam na degradação do debate político e na tentativa de desqualificação, deslegitimação e enfraquecimento do adversário. À argumentação racional e fundamentada, preferem a provocação, a insinuação, a vacuidade e o espalhafato verbal e gestual. De facto, a direita radical e populista é incapaz de discussão em moldes democráticos, pelo que o discurso se centra e se consagra na proclamação de inimigos políticos e no negativismo, não em propostas sérias e responsáveis.

Porém, ao falar em ameaças à estabilidade democrática, talvez seja curial valorizar também o efeito deletério que indirectamente resulta da atitude política dos partidos mais à esquerda. Partidos que se distinguem sobremaneira por uma sistemática e cerrada oposição, mesmo contra políticas de governos do centro-esquerda, há que reconhecer a quota parte das suas responsabilidades no bloqueamento da vida nacional que volta e meia ocorre e leva a eleições fora do ciclo legislativo normal. A história política desta II República fala por si. Basta revisitar os vários incidentes de percurso que impediram o consenso nacional em sede parlamentar e provocaram situações de ruptura orçamental, obrigando a três intervenções do FMI, desde 1977, com inevitáveis reflexos na progressividade do crescimento do país. Como geralmente se constata, o que esses partidos exigem é a aprovação pura e simples das suas políticas programáticas, sob pena de oposição obstrutiva, o que, se acontecesse a seu bel-prazer, convenhamos que desvirtuaria a lógica e a coerência do programa de quem foi eleito para governar. O recurso constante e exaustivo a reivindicações, greves e manifestações dos sectores do Estado demonstra que tais prerrogativas são, por enquanto, praticamente exclusivas de quem tem trabalho assegurado para toda a vida. Os sectores privados não dispõem de instrumento de luta equiparável porque dependem de um vencimento cuja garantia não tem a sustentação do poço sem fundo (no imaginário de alguns) que é o Estado.

Assim, cada um que ponha as mãos na consciência e avalie honestamente o peso inflexivo dos actos que pratica quando a tendência é julgar a saúde do regime elegendo como os únicos culpados os dois partidos que até agora assumiram a governação do Estado. É muito cómodo colocar-se à margem e contribuir para engrossar o sentimento anti-sistema, mediante proclamações e teatralizações demagógicas, servindo-se preferencialmente das redes sociais, o meio por excelência onde a extrema-direita se tem expandido aqui e em outros países.

O que se passa em Portugal naturalmente que é influenciado pelo que vai acontecendo pelo mundo fora, com as democracias a ressentirem-se do surgimento de forças políticas da direita que radicalizam o discurso e inflamam o propósito de alterar os fundamentos do Estado democrático. Mas nada acontece sem uma causa. Em quase todo o lado, os países sofreram um abanão provocado pelas forças do mercado e pela inversão ou desordenamento da hierarquia entre o interesse público e o interesse privado. Hoje, ninguém já duvida de que a globalização, que se propunha como a via para a resolução pacífica dos conflitos políticos, como imaginou Fukuyama, de repente parece postergada, dando lugar à guerra, como estamos a ver. Apreensivamente, aguarda-se o que sairá das próximas eleições presidenciais americanas, porque o regresso de Trump representa uma potencial ameaça à saúde das democracias mundiais, pela maléfica influência que à distância não deixará de exercer no espaço planetário.

Aqui chegados, cabe perguntar se a insuficiência ou a menor qualidade da nossa democracia justificam a emergência de movimentos ou forças que lhe são adversas. A resposta é dada pela história e dispensa considerações, tão clara é a diferença entre a vida dos povos governados em democracia e a dos submetidos a ditaduras. Mais, pergunta-se se o problema está na qualidade dos políticos ou no seu insuficiente comprometimento com a causa pública. Com razão acrescida, a resposta é redondamente negativa. O sistema político em apreço não é estável ou definitivamente ultimado como ideia e conceito, e quem o interpreta e aplica está tão sujeito às engrenagens da complexidade da própria natureza humana como à instabilidade e mutabilidade dos fenómenos sociais. Porque ambas estão irremediavelmente interligadas. Eu que não sou político e não tenho familiares na política, considero absolutamente inaceitável alimentar o preconceito de que os políticos são “eles” e nós somos “nós”, apontando-os como os únicos responsáveis pelos insucessos do país. Ora, os políticos emanam da nação, e, embora se devam distinguir por atributos e qualidades específicos, é surreal supor que a sua idiossincrasia os diferencia necessariamente da massa genética de onde provêm e onde a natureza forjou a matriz identitária comum. A democracia não pode deixar de reflectir as virtudes e bem assim os defeitos do todo colectivo, não exclusivamente ou segmentariamente os de quem é eleito para liderar. Não é preciso muito esforço para se confrontar com o paradoxo que é elaborar certos juízos denegridores da classe política por aqueles que a escolhem. É disso que se alimentam os populistas e radicais, gente que tenta enganar os ingénuos e os desatentos com artes de esquizofrenia política.

Estou convencido de que o povo não deixará de fazer valer a sua sabedoria e o seu instinto quando proximamente for às urnas, enquanto já se vai preparando para as festas natalícias.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Reafirmo os meus agradecimentos pela publicação neste espaço dos meus artigos de opinião. E aproveito para deixar aqui os meus votos de Boas Festas aos amigos Ondina Ferreira e Armindo Ferreira.

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