Também eu, Miguel

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Por  Adriano Miranda Lima

No seu artigo publicado no jornal Expresso de 1 de Dezembro passado, intitulado “Desculpem insistir”, Miguel Sousa Tavares continua a abordar a temática da Justiça e a dado passo escreve:

À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém − no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo −, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP)”.

No exercício da minha cidadania, replico que também não me coíbo de insistir no tratamento do tema porque a Justiça é um pilar fundamental do Estado de direito, justificando-se, por isso, que ocupe o centro do debate nacional até que deixe de ser o abcesso institucional em que parece ter-se convertido, conforme a classificou Vital Moreira. Com efeito, justifica-se uma urgente reflexão nacional, empenhando os políticos, a cidadania e a comunicação social, quando parecem claros os indícios de que no Ministério Público podem existir procuradores imbuídos de ideias contrárias à transparência, isenção e linearidade que a sua conduta funcional exige, em alguns casos procedendo como se tivessem uma agenda política, de tal modo que já se fala de um “legal wafare contra os políticos”. Excederia o espaço de um mero artigo de opinião a menção dos casos mais sonantes que se constituíram em verdadeiro paradigma daquilo que a Nação não pretende da sua Justiça. Não é este o meu propósito, tanto mais que o citado colunista do Expresso, nas suas palavras transcritas, sintetiza a opacidade em que se movimenta o Ministério Público e que carece de ser trespassada com a luz clara da verdade.

Conforme vem acontecendo, não é aceitável que baste uma simples denúncia anónima, por mais infundada ou nebulosa que seja, para investigar o exercício de funções políticas e condutas privadas a elas associadas. Funcionando como uma espécie de pesca de arrasto, as escutas telefónicas tornaram-se o método habitual e por excelência, excedendo consideravelmente o que é prática normal em todo o lado onde o direito funda e estrutura o Estado. Para cúmulo, parece existir uma ligação promíscua e sigilosa entre sectores do Ministério Público e certo jornalismo que se intitula de investigação, para onde são canalizadas informações seleccionadas e segmentadas sobre supostas ou alegadas ilicitudes criminais. Fica assim urdido um estratagema cujo intuito parece ser o julgamento na praça pública das pessoas visadas, ante a constatação da fragilidade dos indícios e provas para levar ao seu julgamento e condenação em tribunal. São várias as figuras públicas que foram vítimas deste tratamento iníquo e acabaram absolvidas em tribunal, mas que ficaram com a sua reputação enlameada e as suas carreiras políticas irremediavelmente arruinadas.

A Procuradora-Geral da República parece incapaz de pôr termo à sistemática violação do segredo de justiça que compromete gravemente a imagem do Ministério Público, como que encerrada numa torre, na expressão de alguns colunistas, de onde não tem o hábito de sair, por decisão própria, para prestar esclarecimentos públicos, nem quando são notórias as disfuncionalidades e os erros do organismo que tutela, como sucedeu com o processo “Influencer”, com as consequências políticas que se conhecem e cujas proporções ainda é cedo para calcular.

Enquanto os políticos são escrutinados pelo voto popular e prestam contas à Nação, possibilitando a alternância do poder e a perpetuação saudável do regime democrático, os servidores da Justiça parecem gozar de um estatuto de absoluta e inaceitável inimputabilidade, o que constitui uma ameaça sistémica ao Estado de direito e a democracia, na opinião de vários reputados juristas e constitucionalistas.

As sociedades contemporâneas tendem a viver ao ritmo e sob a influência dos media, mas infelizmente não se pode dizer que a agenda destes coincide sempre com o interesse nacional. Contudo, uma vez que a liberdade de imprensa é o mais cintilante sinal de vitalidade da democracia, é de esperar que a problemática da Justiça se mantenha no cerne das preocupações da comunicação social.

O que é surpreendente, para não dizer estranho, é o tema da reforma da Justiça andar arredado das campanhas eleitorais dos actuais “candidatos a primeiro-ministro” para a próxima legislatura, como se ela fosse um tabu ou algo com que não se deve mexer para evitar o risco de ser apanhado em qualquer futura pesca de arrasto. Isto devia preocupar seriamente os eleitores, porque na verdade demonstra que falta coragem política para extirpar do organismo do Estado de direito o cancro em que a Justiça se tornou.

P. S. Bem-haja José Pacheco Pereira por não desistir de abordar o tema da Justiça, como o fez com o seu artigo “A ideologia antidemocrática do justicialismo”, publicado no jornal Público de 2 de Dezembro.


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