Mas qual socialismo?[ii]

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Por Adriano Miranda Lima[i]

Com frequência, se ouviu nos últimos tempos, entre políticos de partidos da chamada direita, a exclamação tonitruante de que é preciso “acabar com o socialismo”, “mandar o socialismo para casa”, “libertar Portugal do socialismo”. Claro que o alvo dessa disparatada fraseologia é o PS, devido ao nome do partido e, sobretudo, por ser o que tem governado nos últimos anos. Para os seus críticos e detractores, o socialismo congrega todos os malefícios como ideologia política, ao passo que o capitalismo livre de amarras e contingências – ou seja, o neoliberalismo − é o redentor da felicidade humana.

O truque consiste na grosseira mistificação que é associar intencionalmente o socialismo às experiências fracassadas do socialismo/comunismo na União Soviética e outros países onde o marxismo-leninismo foi aplicado sob a égide da marca rubra do estalinismo. Só que o socialismo é uma ideologia que não é susceptível de uma visão redutora, dado que qualquer produto da idealização humana resulta de um diálogo entre a mente e as motivações morais e psicológicas que determinam o comportamento, este sempre complexo e imprevisível. O socialismo nasceu na Europa, nos finais do século XVIII, para tentar corrigir as desigualdades sociais criadas pela industrialização, na sequência da Revolução Industrial. A finalidade era transformar a sociedade capitalista em comunidades mais justas e mais igualitárias, ideal que afinal se compagina com os princípios do humanismo cristão. Não faltam classificativos para o socialismo, desde o “socialismo utópico”, concepção genérica que pressupõe os seus objectivos passíveis de serem atingidos sem a destruição do capitalismo, ao “socialismo científico”, corrente de pensamento protagonizada por Marx e Engels, para quem o socialismo só seria possível com a destruição do capitalismo, a estatização da economia e a ditadura do proletariado. A primeira corrente é reformista e mantém-se incólume na sua índole e na perseguição ao ideal de maior igualdade e justiça social. A segunda corrente é revolucionária e os seus resultados revelaram-se até hoje infrutíferos e desastrosos, podendo dizer-se que tende a pertencer ao domínio da arqueologia.

O socialismo que segue a via reformista identifica-se com o chamado socialismo democrático e a social-democracia, ambos tencionando encontrar respostas políticas e soluções económicas e sociais em oposição ao que foi ensaiado nos regimes totalitários. Preconizam que a sociedade socialista pode ser construída através da democracia pluralista e preservando a economia de mercado, desde que o Estado crie as condições essenciais que reduzam as desigualdades entre os cidadãos, como a saúde, a educação, a habitação e outras formas de apoio social. Há uma proximidade doutrinária entre o socialismo democrático e a social-democracia, mas pode dizer-se que a diferença entre um e outra pode estar mais na expressão terminológica do que no conteúdo ideológico. Dependendo necessariamente de cada realidade nacional – designadamente, ao nível da cultura e das mentalidades – o grau de intervenção do Estado na construção da economia e das estruturas de apoio social é que em concreto exprimirá uma maior ou menor propensão para uma ou outra modalidade. Porém, a dúvida surge quando se verifica que nos países – da Europa do Norte – onde o socialismo de expressão democrática mais vingou, os partidos que o realizaram têm na sua maioria a designação de “social-democrata”. Deste modo, é possível que as duas designações sejam encaradas como sinónimas uma da outra, tornando irrelevante a questão terminológica.

Reportando à integridade do ideário programático inicial dos nossos partidos, o PS se reclamava do “socialismo democrático” e o PPD/PSD da “social-democracia”, bem entendido. E em resposta às verberações dos radicais e populistas da direita contra o socialismo, o mínimo de honestidade intelectual obriga a que se reconheça que até hoje não houve qualquer forma de socialismo em Portugal, ou social-democracia. E eu, que sou adepto desta ideologia, acreditando que é a melhor solução para o nosso país, digo que infelizmente é assim. Com efeito, lembre-se que em 1978, na tomada de posse do segundo Governo Constitucional, numa coligação entre o PS e o CDS, liderado por Mário Soares e Freitas do Amaral, o primeiro o afirmou: “não se trata agora de meter o socialismo na gaveta, mas de salvar a democracia". Aludia às dificuldades da economia portuguesa agravadas com as convulsões sociais então desencadeadas e que tinham obrigado à primeira intervenção do FMI, em 1977, a pedido do mesmo Mário Soares. Desde então, não se pode dizer que o socialismo, na sua pureza programática, tenha alguma vez saído da gaveta, mesmo que ao longo dos governos que se seguiram se tenha criado o Serviço Nacional de Saúde e introduzido medidas de protecção social, como o Rendimento Mínimo Garantido e outras, sempre por iniciativa do PS, porém sem que haja equivalência com o progresso social alcançado com os modelos de social-democracia praticados nos países nórdicos.

Contudo, é lícito afirmar que, dos dois partidos do poder, o PS é o mais vocacionado para a defesa do Estado social que nenhum português de boa mente pode renegar, ao passo que o actual PSD pouco ou nenhum jus faz à sua designação de partido social-democrata. Assim, a realidade objectiva manda reconhecer que o PS é actualmente um partido social-democrata com prática liberal, enquanto o PSD é um partido do centro-direita com prática neoliberal. Se algo fez inflectir os propósitos iniciais dos dois partidos, em parte pode ser atribuído a conjunturas nacionais restritivas e também a condicionalismos externos, além das responsabilidades próprias.

Por isso, os medos e os fantasmas que alguns políticos extremistas tentam impingir ao eleitorado não fazem qualquer sentido e têm de ser vigorosamente denunciados, sob pena de deixar que se passe um atestado de menoridade mental ao nosso povo. Deixo aqui os meus votos de um bom Ano ao Templário e aos seus leitores, desejando que as nossas mentes se iluminem no momento em que avaliamos o que é o mais conveniente para o nosso futuro próximo.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

[ii] Publicado no jornal Templário de Tomar 

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