Breve Nota de Apresentação
«A
doutrina segundo a qual o contacto das culturas negras com as europeias provoca
o aparecimento de uma civilização nova baseia-se na ideia de que toda a
civilização vive de empréstimos. E, daí, infere-se que a colonização, pondo em
contacto duas civilizações diferentes, levará a civilização indígena a tomar
elementos culturais à civilização do colonizador e que resultará desse
casamento uma civilização nova, uma civilização mestiça. O erro de tal doutrina
está em que ela repousa sobre a ilusão de que a colonização é um contacto de
culturas como qualquer outro contacto e que nela todos os empréstimos se
equivalem. A verdade é outra: o empréstimo só é válido quando ele é
reequilibrado por um estado interior que o solicite e que em definitivo o
integre no sujeito, o qual sujeito, assimilando esse elemento emprestado, o
torna seu»
Aimé
Césaire – Citado por
Gabriel Mariano in “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou”
O artigo/ensaio que a seguir se “divulga”,
retirado de “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” de autoria do
insigne investigador Francisco Tenreiro é uma excelente introdução para
o leitor interessado no conhecimento da génese, evolução e consolidação das
sociedades cabo-verdiana e são-tomense desde os seus achamentos e povoamentos.
O autor começa por situar
geograficamente Cabo Verde no seu espaço – oceânico – a que designa por, (transcrevemos)
“grupo das Ilhas Atlântidas, [também conhecidas por Macaronésia] uma vez que
com os arquipélagos dos Açores, Madeira, Selvagens e Canárias apresenta
afinidades biogeográficas estreitas para logo a seguir afirmar: “Cabo Verde,
limite meridional das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais
traços de semelhança com a Europa e os restantes arquipélagos do que
propriamente com aquele continente [África]. (O negrito é nosso)
Francisco Tenreiro não fica por aqui na caracterização do
arquipélago. Vai mais longe ao afirmar: “No arranjo dos campos, nas culturas
minuciosas susceptíveis de serem cultivadas sempre que chova, no tipo de
habitação e na pulverização da propriedade, vinca-se bem a expansão de um
«estilo mediterrânico» que ali, no decorrer dos séculos, acabou por enraizar.
(O negrito é nosso). Contudo, deixa bem claro que este estilo é um
denominador comum do plano da ocupação das Ilhas Atlântidas dos inícios da
expansão portuguesa e que se estendeu ao Brasil, Goa e, obviamente, a S. Tomé e
Príncipe, mas com muito pouco sucesso.
Sobre S. Tomé e Príncipe diz que dado o tipo climático de carácter
equatorial – vegetação densa e cursos de água permanentes – só “através de
traços culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas”.
Com este pressuposto da ocupação dos
dois arquipélagos em estudo que, mau grado essas ocupações terem sido feitas
com uma diferença de mais de 20 anos, respeitaram a um mesmo plano de
povoamento e fixação e tiveram efeitos muito semelhantes durante alguns anos. Este
paralelismo da evolução das sociedades dos dois arquipélagos que se manteve até
o primeiro quartel do século XIX sofre uma descontinuidade em que S. Tomé muda
de paradigma de desenvolvimento dando lugar a um outro tipo de sociedade,
enquanto Cabo Verde continua o seu caminho. O ponto de “divergência” ou de
afastamento, é explicado com muita clareza, com uma argumentação simples, mas
rigorosa e bem fundamentada. O momento histórico que separa a evolução paralela
e idêntica das duas sociedades situa-o, o autor do ensaio – Dr. Francisco
Tenreiro – em 1820, aparecimento em S. Tomé da cultura do café e
1822 da do cacau, sem contudo deixar de explicitar que “desde a segunda
metade do século XVII que S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio” isto
é, quando o nordeste brasileiro se lançou na plantação da cana do açúcar
e o algodão da ilha do Fogo, se mostrou, por si só, insuficiente para sustar a
queda da economia do Arquipélago.
Para superar a longa crise que desde
século XVII assolava os dois arquipélagos, S. Tomé que tinha condições climáticas
excelentes para o cultivo do café e do cacau introduz a cultura destes dois
produtos altamente rendosos, mas exigentes de uma mão de obra intensiva mudando
deste modo a sua estrutura agrária para grandes plantações – exploração do tipo
capitalista – e a sua estrutura social com “novos colonos” com outra
mentalidade e outra postura e a vinda de um novo surto de escravos, mais tarde,
“serviçais”. É o ponto de viragem – estagnação do processo da miscigenação,
isto é, cessação da interpenetração social, de quando “as relações entre a
sanzala e o sobrado dos brancos eram então mais aconchegadas” – em S. Tomé
dando lugar, de acordo com o autor, a “uma sociedade «plural» – vários
grupos com vida cultural própria, cujos padrões dificilmente transbordam de um
grupo para outro; para um lado os nativos ou crioulos (também chamados «filhos
da terra»), descendentes das velhas famílias anteriores ao advento do surto
capitalista; para outro, serviçais, população flutuante que de Angola,
Moçambique e até de Cabo Verde ali vão trabalhar por período limitado de anos;
e ainda o grupo europeu, pouco numeroso, constituído por indivíduos que ou
ocupam os altos postos da burocracia ou dirigem ou possuem grandes propriedades.”
E mais adiante, perante esta estrutura social, o autor diz-nos, de forma
peremptória: “Estamos sim, em face de uma estrutura social complexa, de
classes raciais,…”
A mestiçagem considerada por
Francisco Tenreiro como resultante de um dos pontos do “Plano da ocupação e
fixação das Ilhas” cedo teve início por aquilo que ele designou de “tolerância
rácica” e que, ainda segundo ele, “se traduziu num processo acelerado de
mestiçagem;”. Na verdade, não só se verificou a tolerância rácica como
houve, no caso de Cabo Verde, orientações precisas da sua incentivação quando “são
os próprios Reis que recomendam, a fim de as ilhas se povoarem, que os homens
brancos e sem família «tomem de suas escravas uma»".
A abordagem do processo de desenvolvimento
e mestiçagem das ilhas do Oceano Atlântico é retomada, ainda nesta brochura,
como um certo complemento do ensaio que vimos apresentando com um texto do
mesmo autor intitulado “Acerca dos Arquipélagos Crioulos”, com
uma abrangência que pretende cobrir as principais ilhas do Atlântico. Compara
a população de cada uma das ilhas, a geografia e o tipo de ocupação e
desenvolvimento de uma forma mais física do que cultural sem, de todo, abdicar
desta particularidade. E é o próprio autor que nos alerta para a natureza da
abordagem quando diz: “Repare-se, porém, que se está
em presença da generalização «fisionómica» que despreza os processos
aculturativos a que as populações arribaram nas diferentes ilhas.”
Acerca de S. Tomé e Cabo Verde volta a
concluir: “Seja como for, o arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé
e Príncipe são «familiares» graças a um passado de colonização que, por comum,
levou à constituição de uma sociedade crioula peculiar.”
Essa “sociedade crioula” – mestiçagem – merece-nos uma referência, se
não mais profunda, pelo menos um pouco mais clara – génese e desenvolvimento – uma vez que se trata
de um tema que vem sendo objecto de alguma atenção alargada, e que, de certa
forma, bole com a nossa identidade, a nossa cabo-verdianidade, merecendo, deste
modo, particular cuidado a sua evolução e estabilização.
Encimamos esta nossa apresentação
com uma “tese” de Aimé Césaire sobre o tema, apresentado no ensaio «Culture et
Colonisation» no “Primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas
Negros” em Paris (Sorbonne) em 1956. Trata-se de uma formulação generalista que
não teve em consideração as particularidades de cada território e que, sendo
tomada à letra significa, do ponto de vista de Gabriel Mariano que, “a
colonização falhou como possível instrumento de criação em África de uma
cultura mestiça” uma vez que é o próprio A. Césaire a concluir que “a
colonização tem provocado não uma harmonização, mas antes uma justaposição de
culturas”.
Segundo Nietzsche, «cultura é,
antes de mais nada, a unidade do estilo artístico em todas as manifestações
vitais de um povo». E de acordo com G. Mariano, ela é sempre uma
expressão unitária e homogénea de elementos [heterogéneos] que se harmonizam e
se revelam depois sem conflitos e sem desajustamentos na sua dinâmica mais
íntima. Mas o fundamental, ainda segundo G. Mariano, é que esses
elementos heterogéneos sejam «sentidos interiormente como uma unidade».
Debruçando com alguma atenção sobre
a tese de A. Césaire verificamos que ela tem subjacente uma cultura nativa ou
indígena preexistente que resistirá à do colono criando mecanismos de rejeição.
É uma tese que de certa forma está impregnada de uma certa ideologia.
Não é, nos seus fundamentos,
seguramente, o caso de Cabo Verde em que o colono e o colonizado se encontram,
culturalmente, numa
posição equivalente. Tanto mais, tendo em conta que os negros – felupes, jalofos, balantas,
papeis e bijagós entre outros – não
constituem, à partida, uma ‘comunidade cultural’, mas sim, apenas, rácica. E é isto que leva G.
Mariano a afirmar que “em Cabo Verde “o processo aculturativo desabrochou no
florescimento de expressões novas de cultura, mestiças «desde as suas origens
mais remota»; que no arquipélago puderam o negro e o mulato apropriar-se de elementos
de civilização europeia e senti-los como seus próprios, interiorizando-os e
despojando-os das suas particularidades contingentes ou meramente específicas
do europeu.” (o negrito é nosso)
A este respeito, Alberto Carvalho no seu prefácio à obra “Cultura Caboverdeana – ensaios” de
Gabriel Mariano, corroborando F. Tenreiro quando este afirma que “a forma ampla como se planeia o
povoamento, cedo se desencadeia a mestiçagem, e com a troca de sangues a troca
também de padrões culturais”, acrescenta: “Enquanto prosseguia a miscigenação sanguínea
que gerava o crioulo biológico, em crescimento progressivo e em continuado
acesso à posse de bens materiais, negros e brancos todos se iam transformando
em crioulos culturais. (O negrito é nosso) Por isso, G. Mariano – ainda de acordo com A. Carvalho – pôde
afirmar que “o mestiço protagonizou em Cabo Verde o papel dinamizador que,
nas Áfricas, pertenceu ao português e, no Brasil, ao reinol. Isto, na
esteira do que F. Tenreiro já havia concluído neste seu ensaio: “Porém,
em nenhuma outra parcela do território português ultramarino, o homem, fruto de
um caldeamento de raças e instituições, soube encontrar o «seu caminho» como em
Cabo Verde.”
Parece-nos pertinente, registar que este “caminho” não
foi resultado de uma planificação, ou de actos de governação, mas de condicionalismos
e circunstâncias várias, de onde se destacam, a escassez de condições agrícolas
– terra e regime de chuvas – que terá desencorajado a emigração intensiva de colonos
europeus bem como a instalação do sistema de monocultura com a introdução de
grandes plantações exigindo mão de obra intensiva; forte mestiçagem devida à
falta de mulheres brancas, a que se junta a moral sexual do português; o
isolamento e a reduzida dimensão “quase familiar” das ilhas; e, para culminar,
“um certo abandono administrativo a que as ilhas foram votadas durante algum
tempo”. A tudo isto se deve juntar de acordo com o investigador/sociólogo
João Lopes, “as secas e os ataques dos piratas, levando brancos, negros e
mulatos, a embalar fraternalmente a trouxa e a procurar refúgio no interior
das ilhas.” facilitando deste modo o desenvolvimento da chamada “democracia étnica e social”. (O
negrito é nosso)
Mas
a miscigenação e a ascensão social do negro e do mulato não foram feitas em
todas as ilhas com a mesma velocidade. Em S. Tiago onde prevalecia o
“latifúndio” e consequentemente o morgadio e o engenho, a mestiçagem era a mais
reduzida do Arquipélago, mais precisamente, chegou a ser a única ilha onde a
percentagem de mestiços não era maioritária. Em todas as outras ilhas,
designadamente as de Barlavento, o mestiço era maioritário e praticava-se o
minifúndio – pequenas propriedades, do tipo hortas e jardins – e o mestiço já era
maioritário e as relações entre o dono da propriedade e os serviçais eram muito
estreitas assumindo, por vezes, configuração “familiar”. As propriedades eram tão pequenas que se
dizia – Investigador João Lopes numa feliz imagem – que mal se podia. “abrir
os braços para não atingir o vizinho.” Deve-se aqui ter em conta a
“mobilidade vertical” fruto da democracia social e étnica que permite ou
faculta um certo trânsito de indivíduos ou famílias na escala hierárquica
social, o que faz com que qualquer indivíduo durante a sua vida possa pertencer
a diversas classes (escalões) sociais independentemente da cor da sua pele ou
das circunstâncias do seu nascimento.
Segundo
Baltazar Lopes da Silva “esta mobilidade vertical tirou em Cabo Verde
qualquer sentido ou conceito de raça. Assim a “gente branca” tão corriqueira no
arquipélago, não significa gente etnicamente branca, mas sim gente que ocupa
bons lugares na escala social.”
É
oportuno aqui salientar que a verdadeira ascensão do negro e do mestiço fez-se
pela via da actividade mercantil, económica, que se acentuava à medida que se
tornava cada vez mais difícil a sustentação do regime de “escravaria”. E, com a ascensão económica
adveio a aristocratização intelectual, que se tornou num elemento muito
importante da sociedade que se consolidava e se estabilizava no Arquipélago.
Sobre
a aristocratização intelectual, seria bom aqui fazer referência ao papel da
igreja no ensino e na educação das crianças antes do aparecimento da Escola
pública e do Seminário-Liceu em 1866. A este propósito – aristocratização
intelectual – temos as célebres observações já conhecidas do padre António
Vieira numa carta dirigida ao padre António Fernandes, confessor do Príncipe D.
Teodósio, em 1652, aquando da sua estadia em Cabo Verde – 20 a 26 de Dezembro
de 1652 – mais precisamente, na então Vila da Ribeira Grande que dizia:
“Há aqui clérigos
e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão
doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem
fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais.” (o negrito é
nosso)
Esta observação é
deveras importante porque já no séc. XVII – muito antes da abolição da escravatura
– a aristocratização intelectual já se afirmava não só no conhecimento como
também na música, como bem se referiu o padre António Vieira que também se aludiu
ao Arquipélago como terreno propício à aceitação e interiorização do
cristianismo através das palavras nessa já citada carta que a seguir
transcrevemos:
“e todas elas [Ilhas] estão em extrema necessidade espiritual;
porque não há religiosos de nenhuma religião que as cultivem, e os párocos são
mui poucos e mui pouco zelosos, sendo o natural da gente o mais disposto que
há, entre todas as nações das novas conquistas (*), para se imprimir neles tudo
o que lhes ensinarem. São todos pretos, mas somente neste acidente se
distinguem dos Europeus. Têm grande juízo e habilidade, e toda a
política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que
ensina a natureza. (O negrito é nosso). Assim crescia a nação cabo-verdiana
mestiça de matriz cultural preponderantemente europeu, rumo a consolidação e
estabilização.
Desta forma, quando, nos anos 50 do século passado a elite africana das
colónias portuguesas vivendo em Portugal toma a consciência que desconhece a
sua terra de origem, a língua dos seus ascendentes, a história e a cultura dos
mesmos, lança-se à procura das suas fontes, das suas raízes, da sua identidade
perdida algures no cruzamento da história que os liga aos colonizadores fazendo apelo ao que chamam reafricanização
dos espíritos. A reafricanização dos espíritos outra coisa não era do que
quebrar a “máscara branca”, expressão utilizada por F. Fannon para simbolizar a
“alienação” provocada pelo colonialismo.
Não obstante algumas dúvidas levantadas quanto à posição de Cabo Verde
sobre o assunto, parece-nos que só por solidariedade ou por calculismos
ideológicos poderá constituir-se num dilema para os cabo-verdianos.
E este dilema, a nosso ver, foi resolvido com simplicidade e pragmatismo por
Baltazar Lopes da Silva (Prefácio para “A Aventura Crioula” de Manuel Ferreira
– Lisboa – Plátano,1985) da maneira que assim transcrevemos:
“Tenho por mim que, de forma expressa ou de maneira latente, se tem
geralmente posto o “problema” de Cabo Verde (quando nele se pensa) em termos
erradamente dilemáticos: há que optar, para a “definição” do “problema” por um
de dois termos irredutíveis: Europa ou África.
Sim, porque nos dizem, a nós das ilhas:
– Se vocês “não são de
África”, o que é que são? Europa?
Ou, inversamente, mas creio que muito mais raramente:
– Se “não são Europa”,
o que são? África?
Claro que a mesa assim posta não deixa liberdade nenhuma ao conviva, que
possivelmente se retrairá de anunciar a única verdade etnológica:
– Nem uma coisa, nem
outra, somos cabo-verdianos.
Na verdade, o cabo-verdiano nunca andou à procura das suas raízes. Elas
eram evidentes: Fruto da aculturação e do renascimento de novas expressões de
cultura, mestiça “desde a sua origem mais remota”, que o negro e o mulato se
apropriaram da civilização europeia adaptando-as ao despojá-las das suas especificidades
e particularidades europeias, interiorizando-as, passando deste modo a senti-las
como suas pertenças. Não tinha saudades nem das grandes florestas africanas que
nunca conheceu nem dos grandes monumentos e centros urbanos que também
ignorava. Parafraseando G. Mariano, tinha a sua língua falada por todos; o seu
folclore poético, musical e novelístico; a sua culinária; os seus motivos de
recreio; o seu folclore das advinhas, dos provérbios; os seus festejos
populares; as suas superstições, hábitos, esquemas de comportamento.
E quando as elites africanas das colónias portuguesas lançaram mão, na
esteira de Aimé Césaire, Leopold Senghor e Cheik Anta Diop de afirmação de uma
literatura própria através do movimento literário “Negritude”, em 1952, com o lançamento
de «Os Cadernos da Poesia Negra
de Expressão Portuguesa»” por Francisco
Tenreiro e Mário de Andrade, já Cabo Verde «tinha fincado os pés na terra»
com o lançamento –
1936 – do “Movimento
Claridade” autonomizando, “nacionalizando”, a sua literatura – romance, poesia,
contos, ensaio – tratando os problemas específicos de Cabo Verde não à procura
das suas raízes mas, sincronizando e sintonizando com esses problemas.
Não temos, pois, de procurar as nossas raízes nem em África nem na Europa
porque “Nós Somos as Nossas Raízes”.
A leitura dos Ensaios de Francisco Tenreiro é bastante elucidativa a este
propósito e, por isso, parece-nos oportuna a sua divulgação.
A. Ferreira
*** *** *** *** *** ***
Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe:
esquema de uma evolução
conjunta
Pelo
Dr. Francisco Tenreiro
É costume ao estudar-se o
arquipélago considerá-lo dentro do grupo das Ilhas Atlântidas, uma vez
que que com os arquipélagos dos Açores, Madeira, Selvagens e Canárias apresenta
afinidades biogeográficas estreitas1. De facto, apesar das
diferenças climáticas que distinguem e dão feição particular a cada
arquipélago, por todos eles é possível encontrar plantas comuns ao Mediterrâneo
ou à Europa oceânica que lhes imprimem tonalidade semelhante. Cabo Verde limite
meridional das Atlântidas, fronteiro a África, apresenta assim mais traços de
semelhança com a Europa e os restantes arquipélagos do que propriamente com
aquele continente [África]. De África recebeu Cabo Verde algumas plantas do Sul
do Saará e da floresta tropical; e, em certo período do ano, também de lá vem o
bafo do harmatan, que instala a aridez pelas vertentes das Ilhas já de
si escalvadas. É isso, talvez, que leva o turista a julgar-se em terra
tipicamente africana; isso e o tom geral, negro das suas populações. Será
preciso descer ao fundo dos vales que as ilhas escondem, para que ressalte a
pátina euro-atlântica que os olhos se acostumaram a notar nos arquipélagos
situados mais a norte. Até mesmo as populações podem surpreender o observador
desprevenido. Se a tonalidade de pele é escura, as relações que os homens
mantêm com a terra fazem lembrar aquelas outras que os camponeses de
Mediterrâneo estabeleceram com o solo que cultivam.
No arranjo dos campos, nas culturas
minuciosas susceptíveis de serem cultivadas sempre que chova, no tipo de
habitação e na pulverização da propriedade, vinca-se bem a expansão de um
«estilo mediterrânico» que ali, no decorrer dos séculos, acabou por enraizar. É
claro que este estilo à escala mediterrânica tem alicerces no início da
expansão portuguesa. É um denominador comum de todas as ilhas Atlântidas, donde
como que transbordou para algumas regiões do Brasil e para Goa,
fundamentalmente.
Nas ilhas de S. Tomé e Príncipe a
ocupação seguiu ritmo idêntico que só em época recente seria substituído por
outro, que hoje confere a estas ilhas características originais que as
individualizam. Com tipo climático e regime de chuvas quase equatorial, estas
ilhas de vegetação densa e de cursos de água que nunca secam, só através dos
traços culturais poderão ser aparentados às ilhas Atlântidas. Só no ritmo
cultural inicial, ligado à expressão portuguesa, se podem encontrar os
elementos de semelhança que importa considerar.
*
* *
A ocupação destes dois territórios
faz-se com a diferença de vinte e cinco anos.2 Porém, o plano
que preside ao povoamento apresenta bases comuns e que se podem sintetizar em
alguns pontos: – plano de colonização que visava ao povoamento e fixação, o
mais rápido possível, de moradores nas ilhas a que logo se seguiu a introdução
de escravos negros; tolerância rácica que se traduziu num processo acelerado de
mestiçagem; oscilação económica entre a tendência para um mercantilismo baseado
em culturas rendosas e a do desenvolvimento de uma agricultura minuciosa e de
subsistência à escala portuguesa; transplantação para os trópicos de sistema de
trabalhar a terra e de arranjar os campos segundo os padrões portugueses;
tentativa subsequente de introdução de plantas alimentares do Mediterrâneo;
introdução de plantas alimentares oriundas de outras regiões do globo que
permitiram o desenvolvimento de populações numerosas3;
adaptação às condições do ambiente de um tipo de habitação extra-tropical (casa
quadrangular); cultivo de plantas comerciais que desenvolveram ciclos
económicos que se resolveram em soluções sociológicas idênticas por toda a
parte – na Madeira e nos Açores, em Cabo Verde e em S. Tomé, como também no
nordeste do Brasil.
Em algumas das recomendações
entregues aos primeiros donatários e nas muitas mercês que os primeiros
moradores recebem dos Reis de Portugal, estamos em presença de uma vontade
esclarecida, norteada pela ideia de colonizar dentro das normas culturais tradicionais
metropolitanas. O surto inicial do processo da colonização é do tipo
«dirigido», se bem que acientífico por desconhecimento das realidades da
natureza daquelas paragens. É assim que se tenta na Ilha de S. Tomé a
aclimatação do trigo e da vinha, de árvores como a oliveira, o pessegueiro, e a
amendoeira que embora crescendo nunca chegavam a dar fruto; também para
Santiago se leva a maioria das plantas do Mediterrâneo, que dadas as condições
de clima, mais favorável, chegam a frutificar. Na Ilha do Fogo, por exemplo, é
possível encontrar hoje várias árvores de fruto, como a figueira, a
alfarrobeira, a macieira, o marmeleiro e a romanzeira; e ainda várias
hortaliças e plantas aromáticas de Portugal.4
Facto de maior transcendência social
foi a introdução das culturas da cana-de-açúcar e do algodão. Aquela, traço
comum a S. Tomé e a Cabo Verde, de origem exótica e que os árabes teriam
possivelmente cultivado já no sul de Espanha, e que daqui ou da Sicília foi
trazida para Portugal, chegou a cultivar-se no século XIV no Algarve e nos
campos do Mondego. Por vontade do Infante Dom Henrique foi levada para a
Madeira e daí terá irradiado para os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. «Mestres» de
açúcar madeirenses vêm estabelecer-se em Cabo Verde, onde a cana foi levada
para S. Tiago, e em S. Tomé. Das margens dos ribeiros de maior caudal, não
longe dos trapiches e dos alambiques, se evolaria o cheiro pesado do melaço.
Tanto a cana do açúcar como o algodão, plantado especialmente na Ilha do Fogo5, exigiam uma mão de obra
numerosa; por causa delas tomaria incremento a fixação de escravos.
Levados para todos os arquipélagos,
deles não há hoje mais do que ténues vestígios nas ilhas da Madeira e nos
Açores, ao contrário do que acontece em Cabo Verde e em S. Tomé. É esta forte
cor africana, que se liga a um processo económico e sociológico, um dos elos
que mais estreita estes dois arquipélagos.
Para Cabo Verde vão os negros das
regiões da Guiné, felupes, jalofos, balantas, papeis, e bijagós e para S. Tomé
gente do Benin, do Congo, Gabão e Angola, pontos costeiros que lhes ficavam
mais próximo. Dada a escassez de moradores e a forma ampla como se planeia o
povoamento, cedo se desencadeia a mestiçagem, e com a troca de sangues a troca
também de padrões culturais. Por vezes até são os próprios Reis que recomendam,
a fim de as ilhas se povoarem, que os homens brancos e sem família «tomem de
suas escravas uma»6 A população crioula desenvolve-se assim;
as mulheres negras adoçam as arestas de uma desigualdade de condições sociais,
entre brancos e negros, e de um regime retintamente de escravidão se passa a um
regime de servidão.7 O servo se bem que limitado, pode
já participar como parte consciente, isto é, como colono, da evolução
económica das ilhas. Em Cabo Verde e em S. Tomé os grupos desgarrados de
africanos aceitam o catolicismo e criarão um linguajar, fluente e rico, que
perdurará até os nossos dias – fenómenos complexos de «aculturação» que, no
primeiro caso traduzem uma «aceitação» e no segundo como que um tipo especial
de «sincretismo»8.
Nesta nova situação irá o africano
estimular, ou mesmo fomentar a policultura, por oposição à tendência
monocultural do açúcar e do algodão; serão eles os iniciadores nas ilhas
daquelas poucas culturas de plantas africanas que hoje por lá se encontram: o
milho zaburro, o fundo, o inhame e possivelmente o feijão congo e a mancarra9
As relações entre a sanzala e o
sobrado dos brancos era então mais aconchegada do que é hoje a estabelecida
entre a sanzala dos serviçais e a casa da administração das roças de S. Tomé.
*
* *
A história sociológica dos dois
arquipélagos, embora levemente desfasada, apresenta aspectos e vicissitudes
idênticas até meados do século XIX. Desde a segunda metade do século XVII que
S. Tomé e Cabo Verde entrariam em declínio. A prosperidade do açúcar que ajudou
a criação da sociedade crioula entrou no seu ocaso logo que o nordeste
brasileiro se lançou à plantação da cana. Só por si o algodão, que da Ilha do
Fogo se chegou a exportar para as Canárias, e os rudimentos episódicos da
urzela10 e do sal, não
foram suficientes para obstar a decadência. O mesmo não se poderá dizer do
tráfico da escravatura que se continuou até meados do século XIX.
As questões de ordem particular a
cada arquipélago são elementos, que embora de considerar, não são relevantes
perante dois factos fundamentais: a dominação dos Felipes e o desvio dos
interesses portugueses para o Brasil, com o sacrifício de todas as possessões
portuguesas em África. Em contrapartida, estabelecer-se-iam relações entre os
arquipélagos e aquela outra Ilha Grande, na expressão curiosa, diria
mesmo sociológica, de Ribeiro Couto. De S. Tomé emigram os primeiros
proprietários de canaviais, que levam consigo os alambiques e até as telhas dos
engenhos. Mais tarde, as relações estreitar-se-iam e todas as famílias ilustres
de S. Tomé se orgulhariam de ter filho preto ou mulato ordenado padre na Baía.
Em Cabo Verde, território que já devia ao Brasil a planta base da alimentação
das suas populações – o milho maiz –, fenómenos
semelhantes se passariam.
Entretanto, abandonadas sobre si
próprias, as populações vivem quer assediadas pela pirataria desenfreada do
século XVII, quer enrodilhadas em lutas internas de mando, numa anarquia de que
se têm relatos muito circunstanciados se bem que enfadonhos.
Seja como for, é dessa sociedade
anárquica de há pouco mais de cem anos que a pouco e pouco emerge a estrutura
social de Cabo Verde de nossos dias. Sociedade que na maioria dos seus traços
evidencia ainda o surto colonizador português dos séculos XV e XVI. Pela
leitura de três belas páginas de H. Teixeira de Sousa publicadas na Revista Claridade,
poderá verificar-se que o processo de estabilização ainda não terminou11.
Porém, em nenhuma outra parcela do território português ultramarino, o homem,
fruto de um caldeamento de raças e instituições, soube encontrar o «seu
caminho» como em Cabo Verde. Basta para tanto só pensar no movimento literário
da Claridade, nos poetas, contistas e romancistas de mérito que nos deu
já… Nem mesmo as fomes grandes, que desde o século XVIII e por todo o século
XIX assolaram as ilhas, conseguiram quebrantar o homem crioulo, roubando-lhe as
energias para adaptação ao meio áspero das suas ilhas.
*
* *
Em S. Tomé, a resolução deste longo
período de crise tomaria outro rumo, dependente da introdução das culturas do
café (1820) e do cacau (1822).
Descobertas as condições climáticas
excelentes para aquelas culturas, novo surto de colonos portugueses chega às
ilhas do Golfo da Guiné: a mentalidade destes homens é agora outra e opõe-se à
dos homens de quinhentos e seiscentos. Lançam-se as bases das grandes
explorações agrícolas do tipo capitalista, retalha-se na terra o mosaico das
grandes propriedades, quantas vezes usurpadas de forma menos digna aos seus
legítimos proprietários: aquelas muitas famílias, mais ou menos mestiçadas,
oriundas dos primeiros colonizadores brancos e negros. Novos trabalhadores são
recrutados em África; entram ainda como escravos e mais tarde na condição de
contratados (serviçais); e, a par de todas as perturbações e dificuldades
criadas com a abolição da escravatura, as roças de S. Tomé progridem em
detrimento de uma sociedade crioula e numerosa, tornada desinteressada por um
trabalho que, para a sua maneira de ver, cheirava ainda ao suor dos negros do
tempo da escravaria. O ritmo evolutivo, já de si periclitante, da sociedade
crioula de S. Tomé como que para.
Hoje, a estrutura social da ilha é o
de uma sociedade «plural» – vários grupos com vida cultural própria, cujos
padrões dificilmente transbordam de um grupo para outro; para um lado os
nativos ou crioulos (também chamados «filhos da terra»), descendentes das
velhas famílias anteriores ao advento do surto capitalista; para outro,
serviçais, população flutuante que de Angola, Moçambique e até de Cabo Verde
ali vão trabalhar por período limitado de anos; e ainda o grupo europeu, pouco
numeroso, constituído por indivíduos que ou ocupam os altos postos da
burocracia ou dirigem ou possuem grandes propriedades12. Numericamente superiores, os filhos da terra têm uma
vida marginal; só uma pequena percentagem está ainda de posse de minúsculas
propriedades ou ocupa lugares de relativo relevo na burocracia local.
Eis o que a este respeito nos diz um
observador meticuloso como Orlando Ribeiro: «Em Dezembro de 1951, na cidade de
S. Tomé, assistimos a um desafio de foot-ball entre… brancos e pretos: estes
jogavam melhor mas com timidez; numa procissão na festa do padroeiro da cidade,
incorporaram-se apenas pretos e mulatos; uma senhora branca acreditava que os
seus criados negros sujavam as coisas em que tocavam com uma espécie de suor
que tinham nas mãos!; e lamentava que, nas numerosas festas da cidade,
aparecessem, misturadas com a gente branca, senhoras de cor, naturais da ilha e
casadas com europeus»:
A excepção do depoimento da senhora
branca («branco fino» como dirão os naturais de S. Tomé com ironia) cujas
afirmações escapam a qualquer tipo de classificação, os dois primeiros exemplos
são na realidade relevantes, e ilustram bem quanto os diferentes grupos sociais
se individualizam sob o ponto de vista da cultura. Não estamos aqui, porém,
perante um mero e simples caso de racismo.
Estamos sim, em face de uma
estrutura social complexa, de classes raciais, algo de comparável com o que se
passa em certos meios rurais do Brasil13
Como é diferente esta estrutura da
de Cabo Verde, mesmo quando se possam apontar casos como aquela cena de
pancadaria, entre «mulatos» e «mestiços» em dia de procissão, na ilha do Fogo,
vai para mais de vinte anos!14
Estas estruturas tão diferenciadas
são reflexos de organizações diversas: em Cabo Verde, predomínio da policultura
de subsistência sobre as culturas altamente rendosas; predomínio da pequena
propriedade em oposição à propriedade gigante (a Roça) das ilhas de S. Tomé e
Príncipe15. Em Cabo
Verde, a estrutura contemporânea assenta em bases que evoluíram do seculo XVI
até a actualidade – o campo das ilhas é uma réplica do campo português; em S.
Tomé, criou-se a plantação, algo de original e artificial – nem português
nem africano.
Cabo Verde é, sem dúvida, o limite
sul da transplantação da cultura portuguesa nos arquipélagos. Estamos em
presença de uma «adjacência» que resultou muito mais da irradiação da cultura
portuguesa, em bloco, para o arquipélago, do que propriamente de um processo
lento de assimilação.
Em S. Tomé, pelo contrário,
vicissitudes históricas e económicas imprimiram na segunda metade do século XIX
um rumo diferente ao das outras ilhas portuguesas no Atlântico. Mais do que
diferenças climáticas ou de ambiente, foi a vontade dos homens que talhou o seu
destino e fizeram destas ilhas um caso à parte, original, entre todas as
províncias ultramarinas portuguesas.
*
* *
Ao tentar esboçar a evolução
conjunta dos arquipélagos de Cabo Verde e de S. Tomé e Príncipe tive por bem
sacrificar pormenores referentes a cada ilha de per si. O desenvolvimento da
ocupação portuguesa nas ilhas de Cabo Verde fez-se por surtos, que aliados às
condições fisiográficas e climáticas próprias a cada uma delas, lhes confere
especializações e paisagens culturais diferentes. A ilha de santiago, a
primeira a ser ocupada, e de certa maneira a ilha do Fogo, foram as que nos
serviram de base a estas reflexões. S. Tomé e Príncipe, salvo vicissitudes
históricas de pouca curiosidade para o caso, tiveram evolução conjunta. Só
assim era possível, sem o perigo de desvios de mera erudição, esquematizar as
vigas mestras das estruturas dos dois arquipélagos. Em trabalho futuro, de
maior fôlego, deverá, no entanto, ser considerada a diversidade «fisionómica»
de todas as ilhas. Para tanto, será necessário que à semelhança do que o Prof.
Orlando Ribeiro acaba de fazer para a ilha do Fogo, se elaborem as monografias
das restantes ilhas crioulas.
Dezembro de 1955
In “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação” Nº 76 de 1 de
Janeiro de 1956
A N O T A Ç Õ E S
1
Ilhas Atlântidas - arquipélagos que
no Atlântico, e em frente ao «Velho Mundo» se estendem entre 15⁰ e 40⁰,
de latitude norte.
2 As ilhas de Cabo Verde foram descobertas desde 1460 a
1462. Possivelmente por duas vezes. O primeiro núcleo de povoadores chegou à
ilha de Santiago em 1461. A ilha de S. Tomé descoberta em 1471, recebeu os
primeiros colonos depois de 1485.
3 Algumas plantas que teriam papel predominante no
desenvolvimento das populações: o milho maiz e a mandioca, introduzidos do
Brasil; a batata-doce e algumas espécies de feijão e favas, do Oriente.
4 Orlando Ribeiro – A Ilha do Fogo e as suas erupções.
(trabalho no prelo)
5 Dada a topografia da Ilha do Fogo, os ribeiros, sem
fundos largos, não se prestavam à cultura da cana sacarina. O Fogo
especializa-se assim, ao contrário de Santiago, na cultura do algodão.
6 Em contrapartida, no século XVII, pretende-se
extinguir a «raça dos mulatos», degredando-se para Cabo Verde, as mulheres de
Portugal que se costumavam mandar para o Brasil. Em 1620 o número crescente de
mestiços supunha-se ser a causa do declínio das ilhas…
7 Isto nada tem que ver com a continuação do tráfico da
escravatura; é precisamente o tráfico uma das poucas fontes de receita quando a
prosperidade dos arquipélagos entra em crise. Há pois, que imaginar uma
sociedade complexa, onde brancos e mulatos se dedicavam ao tráfico, onde alguns
dos negros excravos se transformariam em servos enquanto outros «armazenados»
aguardariam o embarque para outros pontos do mundo necessitados dos seus
braços.
8 Ver acerca de dialectos crioulos os excelentes
artigos de Baltazar Lopes publicados na revista Claridade (Uma experiência
românica nos trópicos)
9 Francisco Tenreiro: Descrição da ilha de S. Tomé no
século XVI in Garcia de Horta, 1.53
10 Em 1469 inicia-se o comércio da urzela, descoberta em
Santiago por dois negociantes de Sevilha.
11 Henrique Teixeira de Sousa: Estrutura social da Ilha
do Fogo em 1940 in Revista Claridade
12
Francisco Tenreiro: A agricultura na
Ilha de S. Tomé, etc. 1952
13 Ver Ch. Wagley
e outros: Race et Classes dans le Brésil rural. Unesco s/d
14 H. Teixeira de Sousa, ob. Cit.
15 É certo que na ilha do Fogo a cultura rica do café
foi também introduzida nos primeiros anos do século XIX (parece que teria sido
cultivado, pela primeira vez, na ilha de S. Nicolau nos últimos anos do século
XVIII). Esta cultura vem adaptar-se a estrutura rural, já tradicional, da ilha.
É ao contrário do que se passa em S. tomé, uma cultura de pequenos
proprietários. Além do mais, é cultura que está hoje em franco declínio.
RESUMO
BIOGRÁFICO
Francisco José de Vasques Tenreiro é, sem favor, um dos reais valores da
moderna geração de estudiosos e intelectuais portugueses.
Nascido na ilha de S. Tomé em 20 de Janeiro de 1921, muito novo foi
para a Metrópole, onde cursou os Liceus, frequentou a Politécnica e a Faculdade
de Letras e se diplomou pela antiga Escola Superior Colonial.
Apesar de ter vivido quase sempre na Metrópole onde se fixou e
constituiu família, ficou eternamente preso à sua querida África.
Com efeito, apaixonado pelos problemas do continente africano e do
homem negro, tem-lhes consagrado o melhor da sua vida.
Poeta de sincera inspiração, o autor da «Ilha do Nome Santo» pode
justamente considerar-se um dos que, entre nós, mais expressivamente
representou a «negritude» na Literatura Portuguesa dos nossos tempos.
Foi funcionário do Quadro Administrativo do Ministério do Ultramar
e presentemente é professor assistente da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, onde, em substituição do grande Professor Doutor Orlando Ribeiro,
está incumbido da regência de várias cadeiras, entre os quais as de Geografia
Colonial e Geografia Humana (Parte prática).
Em 1950, como delegado do Ministério do Ultramar, assistiu a um
curso de férias, sobre assuntos coloniais, realizado na Universidade de
Cambridge e no qual tomaram parte activa o Professor V. T. Harlow, J. M.
Martin, Sir Hilton Poyton, Mr. A. Gaitskell, Mr. Bouteille (Director de L’École
de la France e d’Outre-Mer), Sir Ralph Forse e Mr. A. Campbell.
Em 1954 e 1955, como bolseiro do British Council e do
Ministério do Ultramar, estagiou na London School of Economics and Political
Science – University of London, onde, sob a direcção do distinto Professor
Dr. Harrison Church, estudou Geografia Colonial, tendo também frequentado
cursos de Administração Colonial Comparada. Fez, então, um curso
brilhantíssimo, tendo sido muito apreciados os seus trabalhos sobre o cacau na
África Ocidental, especialmente na Nigéria e na Costa do Ouro.
Muito nos honramos com a presença nas nossas páginas de Francisco
Tenreiro e… esperamos que cumpra a sua promessa de não nos faltar com a sua
colaboração tão desejada e tão valiosa…
In “Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação Ano VII – Nº 76
de Jan. 1956
*** *** *** *** *** ***
Acerca dos arquipélagos crioulos
Por Francisco Tenreiro
De comum o tom moreno, mestiçado, das gentes.
Mas, mais que a tonalidade é um passado cultural que os assemelha sendo
abundantes os traços que, num e outro arquipélago, se repetem não obstante
natureza diversa; o fundo do quadro é em Cabo Verde o ar escalvado das linhas
gerais do relevo que escondem dos olhos a verdura de algum vale por onde corre
água; é, nas ilhas do Golfo da Guiné, com a insignificante excepção de Ano Bom,
a loucura do verde que esmaga e ilude as obras dos homens. Factos que advêm da
posição dos arquipélagos: um, limite meridional das Atlântidas, quase tão
europeu como africano, e outro, enganchado no amplexo do Golfo da Guiné,
nitidamente africano.
No conjunto, as ilhas foram descobertas na
segunda metade do século XV embora as mais meridionais cerca de dez anos mais
tarde. Achadas e povoadas pelo mesmo povo, para lá se transplantaram também
negros da África Ocidental aqueles que em terra firme estavam mais próximos:
guinéus num caso, gente da margem do golfo no outro, como por exemplo gabões.
Só uma ilha, certamente por mais próxima do
continente, seria já povoada – a Formosa que mais tarde se chamaria de Fernando
Pó. Por isso, ou por encontrar-se profundamente engolfada, Fernando Pó
tardiamente mereceu a atenção dos portugueses que, aliás, logo a cederam a
Espanha em troca de facilidades territoriais na América do Sul. Não obstante,
muitos dos traços da estrutura social «fernandina» serem hoje semelhantes à de
São Tomé, na minúcia dos padrões de cultura mostram-se muito diferentes.
O bubi
como o fernandino de Santa Isabel
pouco têm de comum com os «filhos da terra» de São Tomé, na sua generalidade
descendentes dos povoadores brancos e pretos dos séculos XV e XVI. Sem dúvida
que se regista em alguns arquipélagos atlânticos sucessão de elementos sociais
que os aproxima, seja em Cabo Verde ou nas Antilhas ou ainda nas ilhas do Golfo
da Guiné, que reduzem-se a dois: existência de populações crioulas nem sempre
estabilizadas e uma organização de espaço em torno de culturas lucrativas de maior
sucesso num ou noutro lugar conforme as vicissitudes da história e até os
retoques que uma ambiência diferente pode produzir. Por todas as ilhas a cana
do açúcar, o algodão, o café ou cacau, foram as alavancas propulsoras da
fixação dos homens à terra e que atraindo africanos deram origem a populações
mestiças. Sendo assim compreende-se que se possa falar em arquipélagos crioulos
e se compare, como fez Lyall, as ilhas de Cabo Verde com as Antilhas. Por outro
lado, se encontram, apesar da não existência de populações crioulas, ecos de um
mesmo sistema de organização de espaço em arquipélagos extra-tropicais como os
da Madeira e dos Açores.
Repare-se, porém, que se está em presença da
generalização «fisionómica» que despreza os processos aculturativos a que as
populações arribaram nas diferentes ilhas. Enquanto que em Cuba, como o
demonstrou Fernando Ortiz, se chegou a um «mosaico cultural» e a algumas formas
de «compromisso» (sincretismo religiosos, por exemplo) em Cabo Verde e em São
Tomé as populações tenderam para a estabilização resultante de assimilação dos
diferentes elementos culturais em jogo.
Há hoje elementos que demonstram como a
expansão portuguesa consistiu essencialmente na transplantação de um estilo de
vida de cerne mediterrâneo para os trópicos. Padrões que se introduzem
integralmente tais como os instrumentos de farinar cereais que se
especializaram em concorrência com o pilão africano, e outros que sofrem os
retoques que a natureza sugere: um tipo de casa de pedra de loja e andar, com
escada exterior, que na ilha de São Tomé passou a ser de madeira e de cobertura
vegetal, se bem que a traça seja sensivelmente a mesma; ou ainda o catolicismo
que em pouco ou nada se modificou no que se refere a sincretismos enquanto a
língua ou cristaliza em torno de um vocabulário ou de expressões arcaicas de
dizer, como em Cabo Verde, ou ganha certo tipo de plasticidade onde não são
estranhas construções africanas e é o caso de São Tomé. Seja como for o
arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de São Tomé e Príncipe são «familiares»
graças a um passado de colonização que, por comum, levou à constituição de uma
sociedade crioula peculiar. Sem dúvida que na génese da fixação de europeus e
africanos nestas ilhas desertas, teve um esquema de ocupação de campos à base
de culturas lucrativas.
Mas, que representam hoje estas culturas para a
compreensão do mundo sociológico das ilhas? Em cabo Verde a estrutura
latifundiária cedo morreu e foi substituída pelo desenvolvimento de culturas de
subsistência à base do milho e do feijão.
Os próprios morgadios ainda tão vivos no século
passado esmaeceram perante o aparecimento de uma classe nova – a dos mulatos –
que por melhor equilibrada veio a sobrepor-se às classes criadas pela
diferenciação latifundiária. Hoje, a cultura do café na ilha do Fogo na passa
de arremedo da estrutura pioneira que, se no século passado, foi escravocrata,
não se mostrou suficientemente forte de forma a subsistir até hoje. Em S. Tomé,
de início, passa-se o mesmo; depois de os engenhos de açúcar em torno dos quais
se organizaram a economia e os contactos culturais entre negros e brancos o que
se viu proliferar, desde o século XVII até meados do século XIX, foram as
pequenas sociedades nativas de subsistência. Algo veio perturbar este destino
comum e original dos dois arquipélagos. De facto, a partir de 1820
introduzem-se em S. Tomé novas plantas: o cafezeiro e o cacaueiro. As condições
climáticas são propícias e novo surto de colono chega àquela ilha que retalha
na terra úbere o mosaico de grandes explorações agrícolas de tipo capitalista
quantas vezes usurpadas às famílias mais ou menos mestiças descendentes dos
primeiros colonizadores brancos e negros. Daí, hoje a estrutura social ser
francamente «pluralista» isto é, verificar-se a existência de grupos humanos com
vida cultural própria; ao contrário, de uma sociedade integrada como é a de
Cabo Verde, S. Tomé mais se assemelha a um mosaico onde europeus, negros
serviçais das roças e «filhos da terra» vivem em conjunto estilos de vida
diferenciados. São os «filhos da terra», aliás, o grupo quantitativamente
superior, que teimam em demonstrar ter valido a pena o esforço português de
quinhentos e seiscentos.
Black
and white make Brown afirmou-o há muitos anos Lyall querendo
ver em Cabo Verde fisionomia comum à das Antilhas. Tem razão Baltasar Lopes
quanto a Gilberto Freyre, baseado em Lyall, a possibilidade desta comparação;
mas já não teria se, lado a lado, colocasse S. Tomé e aquelas ilhas do Ocidente
Atlântico…
A ilha de Ano Bom povoou-se à sombra de S.
Tomé.
Quem visita o minúsculo e único povoado que
existe verifica que assim é: no seu comportamento; no dialecto que falam, na
actividade a que se dedicam – a pesca – as gentes lembram os pescadores nativos
do Norte da ilha próxima. Pescadores que na aventura do mar ali se
estabeleceram, não obstante a frustre ocupação portuguesa. Por toda a parte, no
nome dos ribeiros e dos picos, a influência é evidente. Mas a ilha, dada a sua
posição no hemisfério sul e as condições de relevo, recebe menos chuva do que
qualquer das outras e mostrou-se sempre menos capaz para ocupação agrícola. Foi
o mar que trouxe os seus povoadores e só o mar os poderá continuar a manter.
* * *
De comum, em todas as ilhas, o tom moreno e
mestiçado das gentes em função de convívio, que em muitas remonta séculos entre
brancos e pretos. De diferente, as estruturas económicas modernas e sociais que
as vicissitudes da história e a saga dos homens desenvolveram; aspectos que se
entrelaçam com a capacidade ou aptidão da natureza de cada ilha. Por vezes
torna-se difícil saber até que ponto a natureza é responsável pela maior ou
menor humanização das paisagens; mas sempre e de qualquer forma, representam estas
ilhas na sua maioria desertas uma vitória dos homens sobre a natureza tropical.
Traços comuns e traços diferentes que vêm da natureza que lhes é própria e das
civilizações que a elas chegaram. Sem dúvida que valeria a pena estudá-los e
agrupá-los segundo o predomínio de uns sobre os outros. Ressaltaria então,
apesar de certas diferenças de pormenor, certa unidade de base entre o
arquipélago de Cabo Verde e as ilhas de S. Tomé e Príncipe, resultante da
fisionomia de um povo que para umas e outras levou igual sistema de
colonização. Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe foram ainda, em pleno oceano, as
poldras da experiência sociológica que levaram à radicação dos portugueses na
outra «Ilha Grande» - Brasil.
In
“Cabo Verde - Boletim de Propaganda e Informação - Ano XII –Nº 137 de Fev.1961”
Nota: Este artigo de Francisco Tenreiro – “Acerca dos
Arquipélagos Crioulos” foi já publicado neste blogue em 16 de Janeiro de 2018
2 comentários:
Foi bom reler estes artigos/ensaios de Francisco Tenreiro. Postados no Coral Vermelho nesta altura, vêm corraborar a tese que o Manuel Brito-Semedo desenvolveu no seu recente livro. Foi pena que o Francisco Tenreiro tenha morrido aos 42 anos, quando muito teria continuado a dar à expansão e explicitação do seu pensamento sobre as matérias aqui tratadas. Honra a dois pensadores, um, santomense, outro, cabo-verdiano, que analisam e tratam a temática da miscigenação cultural dos dois arquipélagos sob um viés científico e não com uma visão retrógrada e preconceituosa.
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