Made in Cabo Verde

quinta-feira, 7 de março de 2024

 Por José Pedro de Barros Duarte Fonseca*

Muito se tem falado de propriedade intelectual nos últimos tempos, para variar um pouco do futebol. Temos desenvolvido muito a proteção dos direitos de autor nas áreas musical, da literatura e do artesanato, mas muita coisa está por fazer na área das patentes e marcas.

As razões do falatório não são as mais felizes, pois trata-se da suspeita de plágio de um logotipo estrangeiro e possível apropriação inadequada do mesmo. Custa-me muito a crer que um assunto desta importância não tenha passado pelo crivo do Instituto da Qualidade, pelouro da área da propriedade intelectual em Cabo Verde. Este órgão do Ministério da Indústria e Energia tem de fazer uma busca internacional a esta marca nova antes de a aprovar.

Eles são, no fundo, os verdadeiros responsáveis se deixaram passar tal falha e por deixarem que se lance o logo sem que se tenha feito um pré-registo da marca. Portanto não nos podemos antecipar a qualquer pronunciamento deles e, acima de tudo, não nos podemos substituir aos tribunais especializados em litígios sobre marcas, patentes e modelos de utilidade e sair na praça pública a ditar sentenças sobre tão delicada matéria. Temos de ter todas as variáveis em jogo na mão antes de culpar seja quem for, nomeadamente se a outra marca ainda está protegida, se o dono a terá licenciado ou se se encontra no domínio público.

Haja mais tranquilidade e seriedade no culpabilizar seja quem for. Uma coisa é levantar a suspeita outra é substituirmo-nos aos tribunais. Quero defender o rigor e a isenção intelectual que vem faltando em algumas das publicações nas redes sociais.

Há duas grandes diferenças em termos de litígios de propriedade intelectual em patentes ou marcas. Nas patentes copia-se uma tecnologia ou processo, fabrica-se e tira-se vantagem económica dessa ação. Os tribunais estão cheios de processos litigiosos de propriedade intelectual, o mais icónico e estudado é o caso da Pepsi vs. Coca Cola, que acabam em chorudas indeminizações.

Eu próprio (e Cabo Verde) já fui vítima de roubo de uma patente de captação de energias das ondas do mar exposta na EXPO 98 em Lisboa. Este projeto foi desenvolvido no INIT na Praia nos anos 80 e 90, teve prémios internacionais em exposições de tecnologia na Suíça e Bélgica. Mais tarde foi roubado e desenvolvido pelos ingleses, belgas e brasileiros. E não há coincidências pois a empresa que aparece no Brasil a dizer-se promotora foi a Tractebel que tinha um representante no INIT, onde desenvolvemos a patente. Ninguém veio dizer nada em defesa dos interesses de Cabo Verde.

Isto é que acontece com as patentes em que os países desenvolvidos se apropriam dos frutos da inovação de países mais fracos e tiram proveito da sua propriedade intelectual. Esses países menos desenvolvidos também têm culpas pois não valorizam os esforços dos cientistas e intelectuais e eles acabam a sua vida na pobreza e com pensões de miséria. Mas sempre foi assim na história e aconteceu com grandes cientistas como Tesla ou Roberto Duarte Silva, entre muitos.

Hoje a Universidade Técnica do Atlântico está a criar condições para a implementação de uma cátedra dedicada ao vasto trabalho científico de Humberto Duarte Fonseca. Estas ações levam à atração dos jovens para a ciência e novas tecnologias e estimulam a inovação e criatividade.

Vejam o caso das energias renováveis onde os cientistas que registaram patentes e tiveram prémios e distinções internacionais logo a seguir á independência, como Humberto Duarte Fonseca, Ruy Spencer dos Santos ou eu próprio, não ocuparam lugares de dirigentes na Electra ou Cermi, nem no Instituto de Qualidade. Outros se vão aproveitar do trabalho pioneiro e de desbravamento de terrenos virgens.

O que nos vale é que a história se encarrega de repor a verdade e mais tarde ou mais cedo, anos depois da morte desses cientistas, aparecem praças, ruas e escolas com os seus nomes, enquanto que dos “diretores” ninguém se lembrará. No entanto esses lugares continuam a ser para os “boys” ou como se dizia no tempo do partido único, para os melhores filhos da terra, seja lá isso o que for.

Voltando ao tema de início desta comunicação, nas marcas basta que se use a forma de um logo, uma imagem ou uma palavra parecida existente numa marca e chama-se a isso prática decetiva ou concorrência desleal, com intuito de retirar vantagem económica dessa ação.

Quando o tribunal exige reparações elas são, em geral, financeiras. Por exemplo se eu criar uma marca toblertwo estou a fazer concorrência desleal ao toblerone e cabe a ele reclamar em tribunal. Casos interessantes de uso indevido de marcas, já que estamos a falar do chocolate toblerone é o uso de uma imagem das montanhas Matterhorn, que foi substituída pela linha de uma montanha mais comum, para não violar as regras estabelecidas pela Suíça sobre o uso de iconografia, depois de o proprietário da marca decidir transferir parte da produção do chocolate para fora do país.

De acordo com uma lei de 2017, o “Swissness Act”, só é permitido usar símbolos nacionais — como por exemplo a cruz branca sobre fundo vermelho — ou a designação made in Switzerland em produtos alimentares quando os ingredientes são exclusivamente, ou na sua maior parte, suíços (com algumas exceções quando não existem no país, caso do cacau, por exemplo). Ora, metade da produção da Toblerone vai passar para a Eslováquia — onde é feito outro chocolate, o Milka — como anunciou a empresa em junho do ano passado, e a “roupagem” do chocolate vai mesmo ter de mudar.

Em Cabo Verde temos o Monte Cara como símbolo nacional.

Sejamos francos e vamos ver que não é o mesmo com uma marca de turismo que copia o logo de uma lavandaria. Nem sequer são ramos concorrenciais. Talvez a lavandaria até se torne mais conhecida por isso. 

É indiscutível uma semelhança gritante entre os dois logos e tem de ser investigado em nome da honestidade intelectual, mas convenhamos que nas redes sociais o que se tem visto são conclusões precipitadas e um julgamento em praça pública com base em suposições quando o assunto é muito mais sério e complexo.

Para fechar gostaria de dizer que temos de falar bem dos nossos e valorizar estes novos tempos em que grandes médicos caboverdeanos brilham nos EUA, jovens investigadores descendentes de caboverdeanos criam empresas em start-ups que são vendidas à Google e cientistas e investigadores descendentes brilham na Europa e África. É aí que nos temos de focar e o governo tem a sua responsabilidade em acarinhar esses cientistas, atribuir nacionalidade e reconhecimento, para estimular outros jovens, senão vamos sair sempre a perder pois seremos roubados e os nossos projetos desenvolvidos em laboratórios e empresas estrangeiros. Ficamos só com a fama e nas medalhas e aclamações de futebolistas.

Para ilustrar este fenómeno queria aqui referir um grande projeto de Humberto Fonseca, o balizador tangencial Dina-Kate, abreviatura dos nomes dos seus pais, Leopoldina e Torquato. Esta tecnologia teve muitos e distintos prémios e menções honrosas internacionais. Trata-se de um sistema automático de navegação espacial, aérea, marítima ou terrestre que se baseia na traçagem de linhas virtuais no espaço que são descodificadas por um leitor, com base no efeito de Doppler. Assim um avião aterra em pleno nevoeiro ou bruma seca, um submarino se desvia de minas ou duas naves acoplam no espaço ou aterra na Lua.

Logo a seguir à apresentação do projeto os ingleses andaram atrás de Humberto Fonseca, foram insistentemente a Angola solicitar que ele cedesse a patente pois os aeroportos de Londres têm um problema frequente de nevoeiro. Humberto Fonseca não vendeu e argumentava que o seu invento era para Cabo Verde pois aqui também temos problemas de bruma seca. 

Acontece que o poder de quem tem a rainha de Inglaterra por trás era tal que a empresa inglesa Plessey Automatics, que mudou de nome tempos depois, acabou mesmo por, misteriosamente, conseguir o projeto e desenvolveu aquilo que hoje chamamos ILS. Um dia, ainda Humberto Fonseca era vivo, mas já bastante doente, apareceu na televisão a notícia que o aeroporto de Heathrow em Londres acabara de inaugurar um novo sistema de navegação aérea designado por KATE II, que tornava segura a aterragem com visibilidade deficiente.  Muito desplante.

Ironia do destino que tal tecnologia foi criada por um caboverdiano do Mindelo e que a ilha ande a mendigar pela instalação do sistema. Nos anos a seguir á independência Manuel Duarte ainda tentou levar uma ação ao tribunal de Haia, reivindicando a nossa autoria, mas em vão. Mascarenhas Monteiro atribuí-lhe a medalha de 1ª classe do Vulcão, a título póstumo.

O facto é que só os países em cujos cidadãos registaram, desenvolveram e foram premiados por frutos de propriedade intelectual endógena são admitidos na Organização Mundial do Comércio, como aconteceu com Cabo Verde nos anos 90, por sinal no mesmo dia que a China. Isto só mostra que os países não se medem aos palmos, mas sim pela capacidade intelectual dos seus cidadãos.

Em conclusão temos de admitir que nos temos destacado em inovação e criatividade no futebol, nas artes, na música e literatura, o que é ótimo para o desenvolvimento integral do cabo-verdiano. Também obtivemos, da independência até agora, grandes vitórias na educação, bem como no desenvolvimento de privilegiadas e sólidas relações internacionais que nos permitem ter uma economia avançada e um turismo florescente.

Resta-nos agora trabalhar a área da propriedade industrial. Falo com a autoridade de quem foi pioneiro na construção de modelos reduzidos e de ter feito os primeiros ensaios de laboratório de tecnologias de energia “made in Cabo Verde”. Não passei à fase de construção e teste de protótipos porque o país ainda não estava preparado. O facto dessas patentes já terem caído no domínio público passados 15 anos do seu registo, não quer dizer que não as possamos desenvolver, apesar de perdermos a exclusividade.

Se quisermos associar-nos a uma empresa africana ou chinesa e desenvolver o nosso projeto de energia das ondas do mar, por exemplo, temos todo o direito, sem sermos acusados de plagio. Em alguns casos a evolução dos materiais e tecnologias faz com que o produto seja ainda melhor que o original. O centro de gravidade dos próximos passos até sermos donos das nossas tecnologias serão as indústrias e as universidades.

Na universidade temos de mudar a mentalidade e deixar de as ver como locais onde se ganha bem dando 10 horas de aulas por semana. Há que fazer da universidade verdadeiros centros de inovação e investigação científica. Recentemente foi criada a Fundação para a Ciência e Tecnologia em Cabo Verde, grande iniciativa do governo nesse sentido. Assim chegaremos ao objetivo de pensar as tecnologias, construir modelos, ensaiá-los, construir protótipos, testá-los e introduzi-los no mercado. Essas novas tecnologias feitas em Cabo Verde devem, dentro do possível servir objetivos estratégicos nacionais como a energia, pescas e ambiente.

Se já alcançámos a categoria de país de desenvolvimento médio graças às nossas conquistas na educação, a chave para o desenvolvimento pleno reside na ciência e tecnologia. As ferramentas estão aí.

Mãos á obra

* Professor da UTA,  Ph.D. em Eng. Mecânica IST- Lisboa 2004. Pós-graduação (Patent attorney) em patentes, modelos industriais, marcas, concorrência desleal, contratos de licença de fabricação e transferência de tecnologia.  Uni. de Direito de Concord, EUA 1992.

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Foi-me muito proveitosa a leitura de artigo, pois são aqui denunciados factos que a maior parte dos cabo-verdianos desconhece. Designadamente, o balizador tangencial Dina-kate, invenção do Eng. Duarte Fonseca, que foi descaradamente roubado pelos ingleses. Na verdade, a aposta primacial da universidade cabo-verdiana deve ser na área das cências e tecnologias. Em detrimento dos chamados "cursos de lápis e papel", que pouco contribuem para o desenvolvimento do país.

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