Teorema da boa governação

quinta-feira, 28 de março de 2024

 


Por Adriano Miranda Lima[i]

Entrevistado no programa “Tudo é Economia” da RTP3, no passado dia 20 de Março, o Professor Jorge Braga de Macedo afirmou que Portugal só consegue crescer e progredir com “boa governação”. O senhor de La Palice não diria de modo diferente. Como se trata de um ilustre académico e antigo ministro das Finanças, a minha expectativa foi ouvir-lhe explicar e demonstrar com que linhas seguras se rege uma “boa governação”. Não aconteceu nada disso. A expectativa era legítima porque os anos passam e não descobrimos a bala de prata para a “boa governação”. Mas logo depreendi que o Professor Braga de Macedo, estaria, subliminarmente, e tão-somente, a apontar os governos de Cavaco Silva, de que ele fez parte, como o paradigma da boa governação.

Ora, o Professor Braga de Macedo foi, efectivamente, ministro das Finanças no XII Governo Constitucional, de Cavaco Silva, no período de 1991 a 1993, tendo deixado o cargo ainda antes do meio da legislatura depois de uma inspecção do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFADAP) detectar infracções na obtenção de subsídios da União Europeia a favor de familiares seus. Não por acaso, por alturas do ano de 1995, tive conhecimento, através do director do Centro de Emprego e Formação Profissional de Tomar, de que uma das medidas imediatas do XIII Governo Constitucional, de António Guterres, que tinha acabado de suceder a Cavaco Silva, foi ordenar um rigoroso escrutínio à atribuição dos Fundos Estruturais, dado o autêntico regabofe que rodeou o respectivo processo nos governos precedentes.

Juntando as pontas para a extrapolação que vai seguir-se, revisitei um youtube de 2009 em que a procuradora Maria José Morgado, num programa televisivo, dava conta de um número considerável de processos-crime sobre fraudes na atribuição dos Fundos Estruturais ocorridas no passado e que, incompreensivelmente, acabaram arquivados por prescrição em mais de 90% dos casos. Porém, já não escapou ao crivo da justiça o caso do Banco Português de Negócios, instituição bancária que nasceu graças às facilidades e vantagens permitidas a amigos e discípulos de Cavaco Silva e que perpetrou a maior das fraudes do século XXI. Não é crível que estes casos possam ser desvalorizados na avaliação objectiva de uma governação.

Mas o conceito de boa governação dificilmente reunirá consenso em contextos plurais. Diverge de Braga Macedo o economista João Rodrigues, que, no seu livro “O neoliberalismo não é um slogan”, desmonta o mito do bom governante reformista e explica que o projeto político de Cavaco Silva, por aquilo que estruturalmente o definiu, marcaria o início do ciclo de fraco crescimento da nossa economia e a sua divergência futura com as do centro da Europa. Entre outras opções estratégicas criticáveis, releva-se o exagerado investimento público em auto-estradas, em detrimento das ferrovias, o que só por si abriria a porta ao agravamento dos nossos desequilíbrios externos. De resto, basta comparar Portugal com a Irlanda e a Finlândia, países que tinham condições semelhantes quando aderiram à União Europeia. Enquanto Portugal investiu maciçamente no betão, os seus parceiros apostaram na formação qualitativa da força de trabalho, na investigação científica, nas mais modernas tecnologias e no incentivo ao investimento estrangeiro. Podem ter hoje uma rede viária bem inferior à nossa, mas estão entre os 10 países mais competitivos do mundo. Alguém afirmou que, na melhor das hipóteses, Cavaco Silva foi um keynesiano de conveniência, um título que pode ser atribuído a Viktor Orbán, a Donald Tusk e a dezenas de outros líderes que governaram em períodos de forte absorção de fundos comunitários.

Voltando à intervenção do Professor Braga de Macedo no citado programa, surpreendeu-me que ele ao menos não tivesse reconhecido os bons resultados macro-económicos da última governação. Além de considerar mau o governo cessante, fez questão de observar que contas certas nada significam porque “todas as contas têm de bater certas”. Tomei este reparo como um subterfúgio retórico para evitar comungar com os analistas nacionais e estrangeiros que são unânimes em atestar que o governo de António Costa deixou o seguinte legado: condições económicas e financeiras favoráveis, com a economia a crescer, o emprego e salários a subir, uma folga orçamental substancial, receitas públicas a aumentar, peso da dívida pública a baixar, inflação controlada. Mas nem todos pensam assim, sobretudo jornalistas e políticos ideologicamente adversos. Mesmo os que sabem que o próximo executivo vai herdar condições sem precedentes neste século para cumprir o seu mandato, não hesitam em avaliar negativamente a governação que as propiciou. Só um confronto dialéctico poderia ajudar a desmontar esta flagrante contradição, embora se aceite que o governo em causa não tenha sido lesto no capítulo das reformas públicas, mesmo que nem sequer tenha chegado ao meio do ciclo legislativo. No fundo, é mais uma evidência de que o conceito de governação é, pela sua natureza, eivado de um subjectivismo renitente. Um subjectivismo que decorre essencialmente do enquadramento político-ideológico, pouco atreito a dirimir antagonismos, mas que tem também a ver com o relativismo de valores como ética, rigor, verdade, responsabilidade, coerência e compromisso, que estão nos antípodas da demagogia, da manipulação, da mentira e da corrupção.

Assim se vê que não é fácil eleger uma definição de boa governação que agrade a todos os sectores de opinião, uma vez que lhe está subjacente uma opção claramente política e depende de realidades endógenas como a cultura, a idiossincrasia e a história dos povos. Contudo, é indiscutível que um bom governo muito beneficia com a capacidade de liderança dos seus membros, com a sua experiência política e profissional e os seus atributos técnicos. Não deixa de pesar igualmente o grau de consciência cívica e de coesão social das populações, além de uma correcta articulação institucional entre os órgãos de soberania. De não menor importância será uma comunicação social que saiba interpretar convenientemente o seu papel no Estado de direito democrático.

Em suma, a eficácia da acção governativa dificilmente poderá consagrar-se como um fenómeno distinto das diversas pulsões do colectivo nacional. A não ser nos estados autocráticos.

Nota:



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 90.

 

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