50 anos depois de Abril, uma inesperada encruzilhada
Seria de estranhar que a democracia não fosse um percurso semeado de encruzilhadas, umas mais problemáticas do que outras, ou não se tratasse de um sistema político concebido pelo homem e que, portanto, exala necessariamente a natureza dos seus ideais e a feição das suas virtudes, tal como as suas dúvidas e ambiguidades existenciais e a sua vocação conflituosa. Shakespeare foi quem melhor exprimiu o drama do homem na encruzilhada da vida, isto é, nas ocasiões em que tem de fazer escolhas decisivas. Uma das suas frases universais foi proferida pelo personagem Hamlet: "To be or not to be, that is the question". Foi quando o Príncipe da Dinamarca enfrentou o dilema de saber se devia ir à luta, como lhe havia ordenado o fantasma do seu pai, ou quedar-se inactivo.
Este intróito é para caracterizar o actual momento da vida política nacional. É certo que tem havido encruzilhadas na caminhada da democracia portuguesa desde o I Governo Constitucional, que tomou posse a 23 de Julho de 1976, com Mário Soares como primeiro-ministro. Houve encruzilhadas jubilosas, como a adesão à CEE, em 1985, assim como outras menos afortunadas, como as intervenções do FMI em 1977, em 1983 e em 2011. Porém, seria absurdo ignorar que a actual conjuntura não resultou das incidências normais da vida política, o que acontece quando a inépcia e a imprevidência sobram onde se esgotam a lucidez e a imaginação criativa. Não, se estamos agora como estamos foi simplesmente pelo arbítrio de dois cidadãos com as mais altas responsabilidades na vida da República: a Procuradora-Geral da República, por inadvertência e irresponsabilidade; o Presidente da República, por uma decisão unipessoal que caberá à História julgar em que doses se operou uma mistura letal de intencionalidade, partidarismo e imprevidência.
Sim, a dissolução da Assembleia da República colocou a democracia portuguesa numa perigosa encruzilhada quando ela está à porta de comemorar o seu cinquentenário. E, ironicamente, quando existiram todas as condições políticas para assinalar a efeméride sob os melhores auspícios. O governo que vai entrar em exercício é de uma maioria relativa tão inexpressiva que dificilmente poderá garantir a estabilidade do seu funcionamento. Mas a consequência mais grave da decisão presidencial é a extrema-direita alçapremada para o terceiro lugar das forças mais votadas, posição que transforma o Parlamento num complicado xadrez político.
E é preciso ter em atenção que o fenómeno da emergência da extrema-direita tem uma localização muito mais endógena do que à primeira vista se pode pensar. Será ilusório querer resolvê-lo com uma simples pateada ao actor principal da comédia burlesca que é o André Ventura, visto que o milhão e 300 mil de cidadãos que nele votaram caracterizam uma faixa difusa da sociedade que importa auscultar e acompanhar atentamente. Sem rebuço, direi que pertencerão à mesma estirpe dos que ovacionaram Marcelo Caetano no estádio do Alvalade em 31 de Março de 1974 e que menos de um mês volvido encheriam as ruas a vitoriar a revolução de Abril. E é uma falsidade grosseira querer identificá-los com aqueles que não “vêem os seus problemas resolvidos”, na expressão pouco fundamentada de alguns jornalistas e comentadores, dado que nenhuma democracia, nem nos países mais ricos do mundo, conseguiu até hoje resolver todos os problemas a todos os cidadãos. Haverá sempre faixas da sociedade estagnadas na sua inexpressividade, e é nesse húmus social que se infiltra e se cultiva a extrema-direita. Foi nesse húmus que o Estado Novo assentou os alicerces da sua longevidade de 40 anos, fertilizando-o e expandindo-o.
Calcula-se a enorme dificuldade que terá tido Luís Montenegro em convencer figuras prestigiadas da sociedade civil a ingressar no governo, muitas das quais lhe devem ter fechado as portas. Se não tem sido fácil em circunstâncias mais pacíficas, o que não será no actual momento político? Consta que houve quem só aceitasse o convite poucas horas antes da apresentação dos indigitados ao Presidente da República. Compreende-se a razão. Bem longe vão os tempos em que o exercício de um cargo na governação exornava honra e prestígio e suscitava o respeito dos cidadãos e a consideração pública. Deixou de ser assim a partir da altura em que a proliferação de canais televisivos e de jornais desprovidos de ética de serviço público, em conluio com
magistrados do Ministério Público inexperientes ou pouco escrupulosos, levaram ao cúmulo do exagero o seu conceito de escrutínio dos titulares dos cargos públicos. Hoje, ser-se ministro equivale a ter a vida pessoal devassada nos media ou em escutas telefónicas reiteradamente prolongadas e despropositadas. Ou ser rotulado de “ladrão” no palavreado indecoroso, indigno e abjecto de políticos populistas e demagogos, cujo crescimento eleitoral muito se deve ao excesso de mediatismo que lhes concede a comunicação social, sabe-se lá com que motivações e com que fins. Perante isto, receia-se que se chegue a uma situação em que as forças políticas apenas poderão formar governo com recurso exclusivo aos seus militantes, cuja disponibilidade e dedicação dificilmente compensarão a sua falta de experiência profissional e o escasso domínio nas diversas áreas do saber.
O país democrático aplaudiu, e muito bem, a decisão de Luís Montenegro de recusar qualquer acordo com o partido da extrema-direita. Foi-o na eleição do Presidente da Assembleia da República. E espera-se que o seja igualmente no decurso de toda a legislatura.
A situação é, portanto, nebulosa e complexa. Montenegro assumiu que não conta com a extrema-direita, o que subentende que lhe restará o apoio ou a concertação possível com as restantes forças da oposição para poder governar. Caso contrário, será curto o tempo de vida do seu governo e iremos entrar em mini-ciclos governativos que alterarão a normalidade que regeu a maior parte do tempo o nosso quadro legislativo. É aqui que o Partido Socialista terá, talvez, de fazer uma leitura atenta e criteriosa dos sinais que se lhe deparam no chão desta encruzilhada. Terá de se socorrer das artes do bom pisteiro, como fazíamos nas operações militares em África.
Com efeito, se o Partido Socialista não engolir escrúpulos partidários ou não congelar temporariamente algumas convicções programáticas a fim de facilitar o cumprimento do ciclo legislativo normal ao governo da AD, a alternativa é a queda do executivo ou o seu recurso, em última instância, ao apoio da extrema-direita. Não seria nada saudável para a nossa democracia que se estendesse o tapete ao partido que o denega e atenta contra os seus fundamentos, os seus princípios e os seus valores. Partilhar com ele a governação, ainda que por via indirecta, seria uma promiscuidade inaceitável e difícil de digerir por todos aqueles que se orgulham da democracia instaurada há 50 anos e que transformou radicalmente a vida dos portugueses.
Além disso, o Partido Socialista deverá saber que se forçar o derrube do governo que entra em funções muito dificilmente poderá contar com o retorno de uma situação de alternância que lhe seja eleitoralmente diferente e mais vantajosa do que a actual. E com a contrapartida negativa de, eventualmente, se poder alimentar ainda mais uma instabilidade que favorecerá os desígnios eleitorais da extrema-direita. Seria desastroso que a entronização de mini-ciclos legislativos pudesse abrir a porta a uma indesejável ciclotimia nacional, ameaçando seriamente a saúde da democracia.
Nota: escrevo conforme a ortografia anterior ao AO 90.
Adriano Miranda Lima
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