ABRIL DE ABRIL
Era um Abril de amigo
Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo
Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo
Abril de Abril.
Era um Abril na praça
Abril de massas
era um Abril na rua
Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava
Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril
Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se
Abril palavra
esse Abril em que
Abril se libertava.
Era um Abril de clava
Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre in “País de Abril” – Uma antologia
50 anos
após o 25 de Abril: Responsabilidades por assumir[i]
Por Humberto Cardoso
Amanhã dia 25 de Abril completam-se
cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura
salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de
que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a
guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas
forças armadas. Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal
como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos
três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o
golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros
processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes,
iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P.
Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira
vaga da democracia.
No cumprimento do primeiro D,
descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em
que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos
povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação
da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos
governos p portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a
ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades
que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e
manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram
uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os
territórios sob administração portuguesa.
Claramente em vantagem se
posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de
libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do
poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas
da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou
eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica
de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso
especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas
colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi
realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na
prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos
e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos
das Forças Armadas (MFA).
O que se seguiu confirmou a intenção
primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes
instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos
rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores
chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos
casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras
civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como
se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não
tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.
A incapacidade dos governos
portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à
autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha
verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação
Interterritorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de
Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para
contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs
que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a
consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu,
disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.
É evidente que a consulta popular
não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os
adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das
rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além
disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único
representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua
direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória
para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.
Feita a descolonização com a
preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus
objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento.
Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma
nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num
ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia
25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma
democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não
tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores
trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas
seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as
liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de
Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.
As comemorações do quinquagésimo
aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da
responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma
descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças
armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos
povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver
autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas
histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os
incarnaram como paladinos da liberdade.
Narrativas não são factos e a história com
toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente
impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se
para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a
liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.
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