Por Adriano Miranda Lima[i]
Há
alguns anos, escrevi um livro intitulado “Forças Expedicionárias a Cabo Verde
durante a II Guerra Mundial”. O que mais me motivou para essa iniciativa
literária foi o entusiasmo e orgulho com que os veteranos de Tomar e outras
localidades se reuniam amiúde, em almoços-convívio, para recordar essa
experiência militar vivida na sua já longínqua juventude. Há muito que já
nenhum sobrevive. Terminei o livro com estas palavras: “Invade-nos a
nostalgia quando vemos desaparecer os portadores de uma memória colectiva que
era evocada e celebrada com orgulho e emoção, como se nela estivesse o
epicentro das suas mundividências. Quando o sentimento do dever militar
cumprido ilumina o rosto de um veterano e lhe devolve momentaneamente o
entusiasmo juvenil, tem de se reconhecer que o serviço militar obrigatório é
uma oportunidade inigualável para o exercício mais expressivo e mais intenso da
cidadania.”
Os
veteranos da chamada “Guerra Colonial”, ou “Guerra do Ultramar”, conforme a
perspectiva política, reúnem-se anualmente em almoços-convívio, com o mesmo
propósito que animava os seus antepassados que serviram o país durante a II
Guerra Mundial.
Uns e
outros foram jovens que cumpriram o serviço militar obrigatório. Um serviço
cujo tempo médio era de cerca de 3 anos e em condições incomparáveis aos tempos
de hoje, com uma remuneração pouco mais que simbólica e em condições duras e
precárias. Não obstante, a maioria dos jovens encarava o cumprimento da
obrigação militar com um sentimento de orgulho porque, no mínimo, evidenciava a
plena afirmação das suas aptidões físicas e psicológicas. Antigamente, o acto
de ir "às sortes" (inspecção militar) era como um ritual de passagem,
e os mancebos apurados para a tropa eram recebidos em festa na aldeia. A
passagem pelas fileiras proporcionava uma ocasião ímpar para a socialização e
criação de laços de amizade e camaradagem que perduravam pela vida fora, além
do inegável contributo que representava para a formação humana dos jovens a
aquisição de valores cívicos e disciplinares. Ao longo de toda a minha vida
militar, nunca notei que os militares detestassem o serviço militar. As
cerimónias de juramento de bandeira eram um momento único de entrosamento entre
a instituição militar e a sociedade civil: as famílias enchiam os quartéis,
orgulhosas de verem os filhos garbosos nas suas fardas e aprumados nas
formaturas e nos desfiles que se seguiam.
Poderá
argumentar-se que todo esse imaginário pertence ao passado, que as sociedades
evoluem e que os padrões culturais da actualidade não se compadecem com
sentimentos e valores tradicionalistas. E que, por conseguinte, a
compulsividade inerente ao serviço militar não é passível de retorno, de ser
entendido e acolhido pacificamente pelas sociedades. Discordo, porque a alma
dos povos é imutável na sua essência e na consistência dos elementos afectivos,
simbólicos e místicos que a integram. A esse respeito, penso que nada mudou.
O que
mudou foi o modelo de serviço militar, a partir do momento em que, nos finais
dos anos 90, os líderes das juventudes partidárias do PSD e do PS,
respectivamente, Pedro Passos Coelho e António José Seguro, inscreveram na
agenda da sua militância a extinção do Serviço Militar Obrigatório (SMO).
Fizeram passar a ideia de que essa obrigação representava um sério prejuízo
para os jovens, um entrave ao seu progresso e um comprometimento do seu futuro.
Mas logo ficou evidente que a problemática do serviço militar se convertera em
simples instrumento de disputa eleitoral, permitindo duvidar não só da
maturidade política dos seus protagonistas como da própria autenticidade da
bandeira que arvoraram em suposta defesa da juventude.
Passos
Coelho muito se esforçou para que o governo do seu partido, o de Cavaco Silva,
avançasse com a proposta para a discussão no Parlamento da extinção do SMO, mas
sem êxito.
A
decisão só seria tomada no final de 1999 pelo executivo seguinte, chefiado por
António Guterres, o qual, face à pressão exercida por todos os partidos, à
excepção do PCP, não teve outra saída senão levar o assunto ao Parlamento,
tendo o respectivo diploma sido discutido e aprovado. Contudo, foi estabelecido
um período de transição de quatro anos para o diploma entrar em vigor, o que
aconteceu em Setembro de 2004. Passos Coelho considerou o diploma “um logro”,
por arrastar durante mais quatro anos a obrigatoriedade do serviço militar.
Seja como for, o SMO foi abolido sem qualquer discussão pública entrecruzando a
sociedade civil, a academia e a instituição militar. O seu fim não obedeceu a
uma visão estratégica e não foi precedido de um estudo aprofundado do problema
e de tudo o que o envolve; resultou em grande parte de um capricho das
juventudes político-partidárias, que, expulsando os adultos da sala, foram
juízes em causa própria em algo que as transcendia largamente, porque estava em
causa uma delicada e complexa questão que se inscreve na centralidade da Defesa
Nacional.
O
problema volta agora de novo à discussão pública quando soam tambores de guerra
na Europa e outras paragens do mundo. O fenómeno da guerra tem hoje a marca da
omnipresença e da transversalidade. E é neste cenário que a NATO aconselha aos
seus membros o reforço do orçamento da Defesa no mínimo de 2% do PIB, além de
medidas reformadoras das políticas de defesa nacionais, no cerne das quais se
coloca necessariamente a questão do serviço militar.
Mas o
regresso da discussão da problemática do SMO se deve à constatação de que o
sistema de voluntariado e contrato não resolveu nem parece capaz de resolver o
problema dos recursos humanos para as Forças Armadas, a avaliar pela grave
situação deficitária dos efectivos causada pela dificuldade de recrutamento de
novos militares. As razões de fundo estarão directamente relacionadas com as
condições remuneratórias pouco atractivas e ainda com a circunstância de o
actual sistema oferecer uma solução de empregabilidade apenas transitória. Só
que o problema não se cinge apenas à capacidade de criar e apetrechar
estruturas de forças para responder a qualquer ameaça. Para isso, o
voluntariado serve e será sempre possível aliciá-lo com um sistema
remuneratório mais compatível e outros incentivos, acaso o permitam os recursos
financeiros. O problema de fundo é que a extinção do SMO eliminou o importante
sistema de mobilização que o país construiu e vigorou desde sempre e ao longo
de muitas décadas, mercê dos “distritos de recrutamento militar” instalados no
território continental e ilhas, e das “secções de mobilização” existentes em
cada unidade territorial. Tudo isso desapareceu e o país ficou sem condições
para proceder a uma efectiva e maciça mobilização de forças de reserva se
qualquer ameaça ou emergência o exigirem. Num ápice, por amadorismo político e
irreverência juvenil, destruiu-se um sistema secular que foi validado e
consolidado ao longo de décadas.
Destruir
é muito mais fácil do que construir ou reconstruir. Embora se constate que os
políticos continuam a fugir do assunto como o diabo foge da cruz, a discussão
tem de ser fomentada na sociedade civil e no seio das Forças Armadas, para a
recolha dos mais diferentes contributos que permitam uma tomada de decisão em
sede institucional própria, decisão a ser equacionada, como me lembrou um amigo
da Armada e correspondente, em função dos parâmetros
"estrutural-genético-operacional" e "adequabilidade-exequibilidade-aceitabilidade".
Seja como for, nada perderemos se olharmos para os modelos de serviço militar
obrigatório que foram reintroduzidos na Suécia, Dinamarca, Finlândia, Noruega,
Letónia, Grécia e Áustria, entre outros. São países democráticos e socialmente
avançados que encararam o problema com realismo e sem complexos existenciais,
porque a necessidade o exigiu.
0 comentários:
Enviar um comentário