Por Adriano Miranda Lima[ii]
Deram
já à estampa neste jornal 3 artigos da minha autoria sobre a matéria em título,
em que defendo a reactivação do Serviço Militar Obrigatório (SMO), tendo
prometido no último abordar um ângulo do problema que tem sido obliterado: a
questão do Recrutamento, Convocação e Mobilização de recursos militares em
reserva. Até ao momento, o discurso tem sido suscitado apenas pela
insuficiência do voluntariado para as necessidades normais das estruturas
militares nas suas múltiplas funções. A preocupação é que se o voluntariado não
chega para a dimensão restrita de um sistema de forças concebido num tempo que
se acreditava ser de paz perpétua, o que não será com o agravamento do quadro
geopolítico na Europa e outras paragens do mundo? Por outro lado, é indubitável
que o problema tem uma relação directa com a desvalorização a que vem sendo
votada a condição militar desde há cinquenta anos, reflexo da baixa prioridade
que tem sido concedida à política de Defesa Nacional neste Portugal
democrático.
A
evidência do problema fica bem exposta quando o ministro da Defesa, em recente
entrevista ao semanário Expresso, afirma que “as Forças Armadas e as de
Segurança têm de estar no mesmo plano de dignidade e que a resposta não pode
ficar pelos discursos”. Tudo isto a propósito das actuais reivindicações
remuneratórias das forças de segurança, quando os militares continuam a primar
pela sua tradicional postura de dignidade e contenção, aguardando, talvez
ingenuamente, que o Estado saiba assumir as suas responsabilidades para com a
instituição cuja história é tão longa como a história pátria. Este foi o
entendimento interiorizado ao longo de séculos, aliás, transversal a toda a
nação ciosa dos valores que enformam a sua consciência identitária e a sua
soberania. Ora, se o ministro da Defesa sente necessidade de fazer aquele
reparo público é pela percepção nítida de que os militares têm vindo
continuamente a perder direitos e a ver a sua dignificação pouco acautelada
pelo poder político. Até parece surreal que se tenha de alertar para que os
militares “tenham a mesma dignidade que os polícias”. Subjacente está a
consciência de uma flagrante inversão de valores e de estatutos, que seria
grave não fosse atempadamente corrigida, sob pena de ser atribuída a uma mera singularidade
nacional ou a uma perversão no funcionamento do Estado de direito.
Voltando
ao início, algumas opiniões até agora publicadas só têm visto o problema do
serviço militar na estrita medida em que se consiga recrutar efectivos
voluntários para prover às actuais necessidades das Forças Armadas. Seja porque
é epidérmica a visão da realidade, ou porque ela não é conhecida em toda a sua
envolvência, os seus autores dão mostras de ignorar que, independentemente do
modelo de serviço militar, a estruturação da defesa militar da República tem de
integrar um sistema de Recrutamento, Convocação e Mobilização eficaz para a
gestão de reservas militares. Estas são um imperativo para a segurança no
futuro, fonte de alimentação para que as Forças Armadas possam garantir a
continuidade da sua missão pelo tempo fora, assim o exija a ameaça dentro das
fronteiras nacionais ou num contexto exterior, neste último caso nos termos dos
compromissos de Portugal perante a Aliança Atlântica.
É
que, contrariamente a outros países que também aboliram o SMO, Portugal, a
partir de 2004, data da extinção daquele modelo de serviço, iria encerrar as
estruturas e mecanismos que criavam e administravam o sistema de Recrutamento
(mesmo não implicando o cumprimento de serviço militar), Convocação e
Mobilização que antes asseguravam a existência de reservas militares capazes de
preencher as necessidades em função dos vários níveis de prontidão e de
empenhamento. Daqui se depreende que uma coisa é dispor de um sistema de forças
quanto baste para a normalidade de tempo de paz, outra é ter capacidade de a
todo o momento gerar o seu crescimento volumétrico. Devia preocupar seriamente
que, por falta de voluntários para o serviço militar, o país esteja abaixo dos
mínimos efectivos autorizados e ao mesmo tempo não consiga mobilizar, em toda a
dimensão recomendável, os cidadãos para a defesa da pátria, por ter prescindido
das condições que antes o garantiam. O General Loureiro dos Santos foi
assertivo quando, em 2013, afirmou que, para fazer face a previsíveis
alterações estratégicas, é “indispensável montar os mecanismos capazes de
garantir a mobilização nacional”, explicitando que, se as forças permanentes
nas fileiras são normalmente reduzidas, o produto operacional a projectar para
uma situação de conflito exigirá a convocação de forças complementares na
situação de reserva.
Mas
como realizar esse desiderato se as condições estruturais que o permitiam se
extinguiram com o fim do SMO? Até 2014, vigorou um sistema formado por 19
Distritos de Recrutamento e Mobilização (DRM) implantados em todo o território
continental e ilhas adjacentes, e 4 Centros de Classificação e Selecção (CCS)
localizados em Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal. Estes foram criados em 1980
por se ter concluído que havia necessidade de um maior apuro e especialização
técnica na inspecção médica e psicotécnica dos mancebos recenseados para o
serviço militar, deixando essa função de ser exercida pelas Juntas de Inspecção
que pontualmente eram colocadas nos DRM. Hoje, pode concluir-se que, com a
extinção dessas estruturas, o país perdeu uma valiosa base de dados sobre a
população masculina nacional (era à data o sexo predominante nas fileiras) a
partir dos 18 anos, que integrava registos biométricos, sanitários e
psicotécnicos. Calcule-se a importância desses dados para fins estatísticos e
como contributo para estudos no âmbito da História e da Antropologia.
As
listagens dos mancebos inspeccionados e seleccionados eram enviadas para os
DRM. Estes comunicavam às juntas de freguesia as listagens do pessoal a
incorporar nas unidades dos 3 ramos das Forças Armadas. Os mancebos apurados
para o serviço militar e que excediam as necessidades de incorporação,
integravam a Reserva de Recrutamento, significando que em caso de futura
necessidade poderiam ser convocados. Por sua vez, as Juntas de Freguesia
publicavam editais para conhecimento público dos militares a incorporar nas
unidades militares. Aquelas em que os militares eram colocados depois da
formação recebida conservavam, nas respectivas Secções de Mobilização, as suas
fichas individuais até à idade dos 29 anos. A partir daqui as fichas eram
enviadas para os DRM, onde se mantinham até aos 35 anos, idade em que terminava
a obrigação militar, mas que em tempo de guerra poderia ser prolongada. Assim,
os cidadãos que cumpriram as suas obrigações militares passavam a integrar a
Reserva de Mobilização dentro dos limites etários referidos. Finda a idade da
obrigação militar, as fichas eram enviadas para o Arquivo Geral do Exército.
Esta interligação funcional entre os CCS, os DRM, as unidades territoriais e as
juntas de freguesia permitiu que cidadãos que já tinham cumprido o serviço
militar pudessem ter sido de novo convocados e mobilizados por imperativo
nacional em várias conjunturas, sobretudo na I Guerra Mundial (constituição do
Corpo Expedicionário Português), mas também, em casos pontuais, na II Guerra
Mundial (reforço da defesa militar das Ilhas Atlânticas) e mesmo no
aprontamento das primeiras unidades para a Guerra no Ultramar.
Actualmente,
as estruturas existentes estão dimensionadas às necessidades mínimas para o
recrutamento de militares visando os dois regimes de contrato em vigor:
contrato normal até 4 anos; contrato especial até 14 anos. É claro que nada
disto é suficiente e menos o será se o agravamento da situação internacional
exigir uma reformulação do modelo de serviço militar e uma dilatação do sistema
de forças nacionais. Em minha opinião, não existe outra saída senão a
reactivação do SMO, à semelhança da decisão já tomada por outros países
europeus, mas competindo ao Estado alocar à Defesa Nacional os recursos
orçamentais recomendados pela Aliança e ao mesmo tempo garantir outros padrões
de dignificação à condição militar. Conforme caracterizei em artigo anterior, a
reactivação do SMO favorecerá “a relação genética e de complementaridade que
importará estabelecer entre a conscrição e o voluntariado”. Para não exceder o
espaço normal de um artigo de opinião, continuarei a abordar este tema em
próximo artigo.
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