Contributos para um debate mais assertivo sobre a questão do serviço militar[i]

quarta-feira, 22 de maio de 2024

 

Por   Adriano Miranda Lima[ii]

Deram já à estampa neste jornal 3 artigos da minha autoria sobre a matéria em título, em que defendo a reactivação do Serviço Militar Obrigatório (SMO), tendo prometido no último abordar um ângulo do problema que tem sido obliterado: a questão do Recrutamento, Convocação e Mobilização de recursos militares em reserva. Até ao momento, o discurso tem sido suscitado apenas pela insuficiência do voluntariado para as necessidades normais das estruturas militares nas suas múltiplas funções. A preocupação é que se o voluntariado não chega para a dimensão restrita de um sistema de forças concebido num tempo que se acreditava ser de paz perpétua, o que não será com o agravamento do quadro geopolítico na Europa e outras paragens do mundo? Por outro lado, é indubitável que o problema tem uma relação directa com a desvalorização a que vem sendo votada a condição militar desde há cinquenta anos, reflexo da baixa prioridade que tem sido concedida à política de Defesa Nacional neste Portugal democrático.

A evidência do problema fica bem exposta quando o ministro da Defesa, em recente entrevista ao semanário Expresso, afirma que “as Forças Armadas e as de Segurança têm de estar no mesmo plano de dignidade e que a resposta não pode ficar pelos discursos”. Tudo isto a propósito das actuais reivindicações remuneratórias das forças de segurança, quando os militares continuam a primar pela sua tradicional postura de dignidade e contenção, aguardando, talvez ingenuamente, que o Estado saiba assumir as suas responsabilidades para com a instituição cuja história é tão longa como a história pátria. Este foi o entendimento interiorizado ao longo de séculos, aliás, transversal a toda a nação ciosa dos valores que enformam a sua consciência identitária e a sua soberania. Ora, se o ministro da Defesa sente necessidade de fazer aquele reparo público é pela percepção nítida de que os militares têm vindo continuamente a perder direitos e a ver a sua dignificação pouco acautelada pelo poder político. Até parece surreal que se tenha de alertar para que os militares “tenham a mesma dignidade que os polícias”. Subjacente está a consciência de uma flagrante inversão de valores e de estatutos, que seria grave não fosse atempadamente corrigida, sob pena de ser atribuída a uma mera singularidade nacional ou a uma perversão no funcionamento do Estado de direito.

Voltando ao início, algumas opiniões até agora publicadas só têm visto o problema do serviço militar na estrita medida em que se consiga recrutar efectivos voluntários para prover às actuais necessidades das Forças Armadas. Seja porque é epidérmica a visão da realidade, ou porque ela não é conhecida em toda a sua envolvência, os seus autores dão mostras de ignorar que, independentemente do modelo de serviço militar, a estruturação da defesa militar da República tem de integrar um sistema de Recrutamento, Convocação e Mobilização eficaz para a gestão de reservas militares. Estas são um imperativo para a segurança no futuro, fonte de alimentação para que as Forças Armadas possam garantir a continuidade da sua missão pelo tempo fora, assim o exija a ameaça dentro das fronteiras nacionais ou num contexto exterior, neste último caso nos termos dos compromissos de Portugal perante a Aliança Atlântica.

É que, contrariamente a outros países que também aboliram o SMO, Portugal, a partir de 2004, data da extinção daquele modelo de serviço, iria encerrar as estruturas e mecanismos que criavam e administravam o sistema de Recrutamento (mesmo não implicando o cumprimento de serviço militar), Convocação e Mobilização que antes asseguravam a existência de reservas militares capazes de preencher as necessidades em função dos vários níveis de prontidão e de empenhamento. Daqui se depreende que uma coisa é dispor de um sistema de forças quanto baste para a normalidade de tempo de paz, outra é ter capacidade de a todo o momento gerar o seu crescimento volumétrico. Devia preocupar seriamente que, por falta de voluntários para o serviço militar, o país esteja abaixo dos mínimos efectivos autorizados e ao mesmo tempo não consiga mobilizar, em toda a dimensão recomendável, os cidadãos para a defesa da pátria, por ter prescindido das condições que antes o garantiam. O General Loureiro dos Santos foi assertivo quando, em 2013, afirmou que, para fazer face a previsíveis alterações estratégicas, é “indispensável montar os mecanismos capazes de garantir a mobilização nacional”, explicitando que, se as forças permanentes nas fileiras são normalmente reduzidas, o produto operacional a projectar para uma situação de conflito exigirá a convocação de forças complementares na situação de reserva.

Mas como realizar esse desiderato se as condições estruturais que o permitiam se extinguiram com o fim do SMO? Até 2014, vigorou um sistema formado por 19 Distritos de Recrutamento e Mobilização (DRM) implantados em todo o território continental e ilhas adjacentes, e 4 Centros de Classificação e Selecção (CCS) localizados em Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal. Estes foram criados em 1980 por se ter concluído que havia necessidade de um maior apuro e especialização técnica na inspecção médica e psicotécnica dos mancebos recenseados para o serviço militar, deixando essa função de ser exercida pelas Juntas de Inspecção que pontualmente eram colocadas nos DRM. Hoje, pode concluir-se que, com a extinção dessas estruturas, o país perdeu uma valiosa base de dados sobre a população masculina nacional (era à data o sexo predominante nas fileiras) a partir dos 18 anos, que integrava registos biométricos, sanitários e psicotécnicos. Calcule-se a importância desses dados para fins estatísticos e como contributo para estudos no âmbito da História e da Antropologia.

As listagens dos mancebos inspeccionados e seleccionados eram enviadas para os DRM. Estes comunicavam às juntas de freguesia as listagens do pessoal a incorporar nas unidades dos 3 ramos das Forças Armadas. Os mancebos apurados para o serviço militar e que excediam as necessidades de incorporação, integravam a Reserva de Recrutamento, significando que em caso de futura necessidade poderiam ser convocados. Por sua vez, as Juntas de Freguesia publicavam editais para conhecimento público dos militares a incorporar nas unidades militares. Aquelas em que os militares eram colocados depois da formação recebida conservavam, nas respectivas Secções de Mobilização, as suas fichas individuais até à idade dos 29 anos. A partir daqui as fichas eram enviadas para os DRM, onde se mantinham até aos 35 anos, idade em que terminava a obrigação militar, mas que em tempo de guerra poderia ser prolongada. Assim, os cidadãos que cumpriram as suas obrigações militares passavam a integrar a Reserva de Mobilização dentro dos limites etários referidos. Finda a idade da obrigação militar, as fichas eram enviadas para o Arquivo Geral do Exército. Esta interligação funcional entre os CCS, os DRM, as unidades territoriais e as juntas de freguesia permitiu que cidadãos que já tinham cumprido o serviço militar pudessem ter sido de novo convocados e mobilizados por imperativo nacional em várias conjunturas, sobretudo na I Guerra Mundial (constituição do Corpo Expedicionário Português), mas também, em casos pontuais, na II Guerra Mundial (reforço da defesa militar das Ilhas Atlânticas) e mesmo no aprontamento das primeiras unidades para a Guerra no Ultramar.

Actualmente, as estruturas existentes estão dimensionadas às necessidades mínimas para o recrutamento de militares visando os dois regimes de contrato em vigor: contrato normal até 4 anos; contrato especial até 14 anos. É claro que nada disto é suficiente e menos o será se o agravamento da situação internacional exigir uma reformulação do modelo de serviço militar e uma dilatação do sistema de forças nacionais. Em minha opinião, não existe outra saída senão a reactivação do SMO, à semelhança da decisão já tomada por outros países europeus, mas competindo ao Estado alocar à Defesa Nacional os recursos orçamentais recomendados pela Aliança e ao mesmo tempo garantir outros padrões de dignificação à condição militar. Conforme caracterizei em artigo anterior, a reactivação do SMO favorecerá “a relação genética e de complementaridade que importará estabelecer entre a conscrição e o voluntariado”. Para não exceder o espaço normal de um artigo de opinião, continuarei a abordar este tema em próximo artigo.



[i] Publicado no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 90.

 

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