Por Adriano Miranda Lima[i]
O
debate mediático em torno do que deverá ser o regime de serviço militar mais
conveniente para o país, parece ter vindo para ficar, e oxalá que sim, porque a
sua natureza é o alfa e o ómega da decisão política que terá de ser tomada em
sede de poder soberano. E é por estar em causa um vector estruturante da
política de defesa nacional que se lastima que o serviço militar obrigatório
tenha sido extinto sem um debate similar, sem qualquer escrutínio público. Tal
obriga-nos a ter de reconhecer que só uma sociedade ainda em processo de
maturação política teria permitido que tão magno problema se reduzisse a um
capricho de líderes imaturos das juventudes partidárias ou fosse deixado ao
sabor de opinion makers para quem o tema serve apenas para mais uma das
suas deambulações retóricas. E pior é quando o serviço militar se presta, ontem
como hoje, a um tratamento preconceituoso entre os que, no seu prosaísmo, o
preferem olhar como uma simples provação e não como um imperativo nacional. Na
verdade, preocupa que o preconceito possa corromper a reciprocidade dual entre
os direitos e os deveres de cidadania que está no cerne de toda esta
problemática.
Diz-se
que não há condições políticas para fazer regressar o serviço militar
obrigatório, mas o que daí se extrai é uma rejeição pura e liminar dessa
possibilidade, dissociando-a do interesse nacional. Ora, as conjunturas
internas e externas é que criam as condições políticas que determinam as
decisões soberanas. Erróneo é invocar condições políticas do passado, fruto de
um determinado contexto, para postular sobre a realidade actual, quando é
exactamente a mutação desta que está na origem do retorno da discussão do
problema. Haja noção de que o cenário internacional está longe de ser
tranquilizador e o país não está imunizado contra as ameaças possíveis. A
solução a encontrar tem de ser realista, consistente, coerente e vinculadora do
compromisso do país perante a NATO. É preciso evitar que esta se questione
sobre a sua obrigação para com um país-membro que alega não possuir condições
políticas para repensar profundamente o seu modelo de serviço militar.
Um dos
argumentos propalados é que os exércitos modernos não se compadecem com
militares do serviço obrigatório em virtude da sofisticação dos armamentos,
assim se justificando o recurso exclusivo ao voluntariado. Ainda há poucos
dias, o político socialista Miguel Beleza afirmou que os militares de hoje têm
de ser “engenheiros informáticos”, daí não haver lugar para a conscrição. Passe
o amadorismo ou ligeireza de semelhante afirmação, que não é exclusiva desse
político, a alusão talvez seja à guerra cibernética, aquela em que o confronto
não ocorre com armas convencionais, mas com meios electrónicos e informáticos
no chamado ciberespaço. É uma área especializada e secreta da guerra,
obviamente requerendo profissionais altamente credenciados, pelo que não colhe
citá-la como paradigma do critério definidor do regime de serviço militar.
Acontece que a maior parte do material que equipa as unidades militares
pertence ao armamento individual e colectivo cuja utilização está perfeitamente
ao alcance dos militares da conscrição, mesmo que incorpore componentes mais
sofisticados. Estes consistem normalmente em automatismos que, ao invés de
complicar, até facilitam a sua utilização, pelo que a sofisticação não pode
constituir factor de discriminação, positiva ou negativa, entre a conscrição e
o voluntariado. Claro que há sistemas de armas de grande complexidade funcional
que requerem mais prolongada formação, mas nada indicando que esta não possa
ser enquadrável no tempo de serviço da conscrição, embora o mais natural seja
que se destinem, esses sim, a militares profissionais ou em situação
profissionalizante. É o exemplo dos mísseis Patriot, Himars, Atacms e outros
similares, material que, no entanto, não está no horizonte das nossas
possibilidades de aquisição, pelo menos num quadro temporal mais provável.
Ademais,
ao invocar-se a maior exigência tecnológica do armamento hodierno para
justificar o voluntariado ou o profissionalismo, descura-se que a conscrição
até tem a vantagem de oferecer uma base de escolarização superior e mais
diversificada do que o voluntariado, capacitando-a a uma maior facilidade de
aquisição de conhecimentos. O voluntariado é normalmente preenchido com
mancebos de pouco sucesso escolar, que não prosseguiram nos estudos e não têm
uma formação profissional, razão por que, sem outra alternativa, optam pela
solução temporária do serviço militar. De resto, como ignorar que foi apenas
com militares de conscrição que no passado ainda recente provemos as guarnições
e os operadores dos equipamentos mais sofisticados, como viaturas blindadas,
mísseis anticarro e obuses de artilharia?
Também
se argumenta que o voluntariado vem permitindo que o país seja condignamente
representado em missões exteriores de manutenção de paz, granjeando honra para
as Forças Armadas e aumentando a sua reputação internacional. Este raciocínio é
capcioso se a finalidade é enaltecer o voluntariado em detrimento da
conscrição. Porque nada garante que militares conscritos não possam dignificar
de igual modo as nossas Forças Armadas em missões que acima de tudo põem em
evidência requisitos de postura cívica e moral, de disciplina e exemplaridade
de conduta perante populações estrangeiras. Um maior nível de escolarização só
pode favorecer a aquisição desses requisitos.
Contudo,
numa altura em que se confrontam argumentos e se denunciam tabus, parece
ignorar-se que a discussão em torno do serviço militar só volta a ser suscitada
porque o voluntariado não tem garantido às Forças Armadas os recursos humanos
de que necessitam, e, não menos importante, porque o quadro geopolítico se
alterou e a ameaça à paz na Europa não é uma miragem. Segundo dados fornecidos
pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas, o efectivo total nos seus 3 ramos
é de 23425 militares, drasticamente abaixo do “efectivo autorizado”, que em si
já estava minimizado, dando razão a um comentador militar para afirmar,
jocosamente, que esse número de pessoas não enche um estádio de futebol de
média dimensão. Ainda assim, o que tem alimentado algum voluntariado é a
expectativa das missões no estrangeiro, em que os militares auferem
remunerações suplementares bastante vantajosas, custeadas pelas organizações
internacionais. Vaticina-se que, extinguindo-se essas missões, e desaparecendo
o incentivo pecuniário, o voluntariado sofra uma razia incalculável, tornando
irresolúvel o problema dos recursos humanos para as Forças Armadas, a menos que
o Estado melhore significativamente os respectivos estatutos remuneratórios e
outros atractivos, o que é pouco credível quando são vários os interesses
corporativos a reclamar direitos e regalias ao mesmo tempo. É neste contexto
que ressurge a discussão pública sobre o regime de serviço militar, com
opiniões nem sempre as mais esclarecidas.
O bom
senso requer que se olhe para o problema com atenção, pondo de lado visões
idílicas que não se coadunam com a nossa realidade. Portugal não tem a tradição
de países como os EUA e o Reino Unido para basear o seu sistema de serviço
militar exclusivamente no voluntariado e não dispõe de recursos financeiros
para o suportar na dimensão recomendável pelos seus compromissos
internacionais. Por outro lado, é desvalorizar a missão das Forças Armadas encará-las,
não como um nobre fim em si mesmo, mas como um local de recolha de incentivos e
de simples transição para outras realizações profissionais, como alguns
sugerem. Assim sendo, o pragmatismo aconselha a que se reactive a conscrição,
não para prescindir do voluntariado, mas para ser o seu embasamento estrutural,
ou seja, a sua fonte subsidiária.
Num
próximo artigo, abordarei a estreita relação genética e de complementaridade
que importará estabelecer entre a conscrição e o voluntariado, favorecendo a
resolução imediata do grave problema quantitativo dos efectivos, enquanto a sua
progressiva evolução qualitativa será função dos tempos de serviço estipulados
e dos objectivos que forem traçados. Com a reabilitação da conscrição, irá
ainda recuperar-se, gradualmente, o sistema de recrutamento e mobilização de
implantação territorial que existiu enquanto prevaleceu aquela modalidade de
serviço militar, e que será imprescindível se o país tiver de convocar os
cidadãos para a defesa da pátria. Não é compreensível a omissão que se tem
verificado a respeito desta imperiosa necessidade.
0 comentários:
Enviar um comentário