O serviço militar obrigatório ̶ equívocos e inconsistências em argumentos que o rejeitam

quinta-feira, 9 de maio de 2024

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

O debate mediático em torno do que deverá ser o regime de serviço militar mais conveniente para o país, parece ter vindo para ficar, e oxalá que sim, porque a sua natureza é o alfa e o ómega da decisão política que terá de ser tomada em sede de poder soberano. E é por estar em causa um vector estruturante da política de defesa nacional que se lastima que o serviço militar obrigatório tenha sido extinto sem um debate similar, sem qualquer escrutínio público. Tal obriga-nos a ter de reconhecer que só uma sociedade ainda em processo de maturação política teria permitido que tão magno problema se reduzisse a um capricho de líderes imaturos das juventudes partidárias ou fosse deixado ao sabor de opinion makers para quem o tema serve apenas para mais uma das suas deambulações retóricas. E pior é quando o serviço militar se presta, ontem como hoje, a um tratamento preconceituoso entre os que, no seu prosaísmo, o preferem olhar como uma simples provação e não como um imperativo nacional. Na verdade, preocupa que o preconceito possa corromper a reciprocidade dual entre os direitos e os deveres de cidadania que está no cerne de toda esta problemática.

Diz-se que não há condições políticas para fazer regressar o serviço militar obrigatório, mas o que daí se extrai é uma rejeição pura e liminar dessa possibilidade, dissociando-a do interesse nacional. Ora, as conjunturas internas e externas é que criam as condições políticas que determinam as decisões soberanas. Erróneo é invocar condições políticas do passado, fruto de um determinado contexto, para postular sobre a realidade actual, quando é exactamente a mutação desta que está na origem do retorno da discussão do problema. Haja noção de que o cenário internacional está longe de ser tranquilizador e o país não está imunizado contra as ameaças possíveis. A solução a encontrar tem de ser realista, consistente, coerente e vinculadora do compromisso do país perante a NATO. É preciso evitar que esta se questione sobre a sua obrigação para com um país-membro que alega não possuir condições políticas para repensar profundamente o seu modelo de serviço militar.

Um dos argumentos propalados é que os exércitos modernos não se compadecem com militares do serviço obrigatório em virtude da sofisticação dos armamentos, assim se justificando o recurso exclusivo ao voluntariado. Ainda há poucos dias, o político socialista Miguel Beleza afirmou que os militares de hoje têm de ser “engenheiros informáticos”, daí não haver lugar para a conscrição. Passe o amadorismo ou ligeireza de semelhante afirmação, que não é exclusiva desse político, a alusão talvez seja à guerra cibernética, aquela em que o confronto não ocorre com armas convencionais, mas com meios electrónicos e informáticos no chamado ciberespaço. É uma área especializada e secreta da guerra, obviamente requerendo profissionais altamente credenciados, pelo que não colhe citá-la como paradigma do critério definidor do regime de serviço militar. Acontece que a maior parte do material que equipa as unidades militares pertence ao armamento individual e colectivo cuja utilização está perfeitamente ao alcance dos militares da conscrição, mesmo que incorpore componentes mais sofisticados. Estes consistem normalmente em automatismos que, ao invés de complicar, até facilitam a sua utilização, pelo que a sofisticação não pode constituir factor de discriminação, positiva ou negativa, entre a conscrição e o voluntariado. Claro que há sistemas de armas de grande complexidade funcional que requerem mais prolongada formação, mas nada indicando que esta não possa ser enquadrável no tempo de serviço da conscrição, embora o mais natural seja que se destinem, esses sim, a militares profissionais ou em situação profissionalizante. É o exemplo dos mísseis Patriot, Himars, Atacms e outros similares, material que, no entanto, não está no horizonte das nossas possibilidades de aquisição, pelo menos num quadro temporal mais provável.

Ademais, ao invocar-se a maior exigência tecnológica do armamento hodierno para justificar o voluntariado ou o profissionalismo, descura-se que a conscrição até tem a vantagem de oferecer uma base de escolarização superior e mais diversificada do que o voluntariado, capacitando-a a uma maior facilidade de aquisição de conhecimentos. O voluntariado é normalmente preenchido com mancebos de pouco sucesso escolar, que não prosseguiram nos estudos e não têm uma formação profissional, razão por que, sem outra alternativa, optam pela solução temporária do serviço militar. De resto, como ignorar que foi apenas com militares de conscrição que no passado ainda recente provemos as guarnições e os operadores dos equipamentos mais sofisticados, como viaturas blindadas, mísseis anticarro e obuses de artilharia?

Também se argumenta que o voluntariado vem permitindo que o país seja condignamente representado em missões exteriores de manutenção de paz, granjeando honra para as Forças Armadas e aumentando a sua reputação internacional. Este raciocínio é capcioso se a finalidade é enaltecer o voluntariado em detrimento da conscrição. Porque nada garante que militares conscritos não possam dignificar de igual modo as nossas Forças Armadas em missões que acima de tudo põem em evidência requisitos de postura cívica e moral, de disciplina e exemplaridade de conduta perante populações estrangeiras. Um maior nível de escolarização só pode favorecer a aquisição desses requisitos.

Contudo, numa altura em que se confrontam argumentos e se denunciam tabus, parece ignorar-se que a discussão em torno do serviço militar só volta a ser suscitada porque o voluntariado não tem garantido às Forças Armadas os recursos humanos de que necessitam, e, não menos importante, porque o quadro geopolítico se alterou e a ameaça à paz na Europa não é uma miragem. Segundo dados fornecidos pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas, o efectivo total nos seus 3 ramos é de 23425 militares, drasticamente abaixo do “efectivo autorizado”, que em si já estava minimizado, dando razão a um comentador militar para afirmar, jocosamente, que esse número de pessoas não enche um estádio de futebol de média dimensão. Ainda assim, o que tem alimentado algum voluntariado é a expectativa das missões no estrangeiro, em que os militares auferem remunerações suplementares bastante vantajosas, custeadas pelas organizações internacionais. Vaticina-se que, extinguindo-se essas missões, e desaparecendo o incentivo pecuniário, o voluntariado sofra uma razia incalculável, tornando irresolúvel o problema dos recursos humanos para as Forças Armadas, a menos que o Estado melhore significativamente os respectivos estatutos remuneratórios e outros atractivos, o que é pouco credível quando são vários os interesses corporativos a reclamar direitos e regalias ao mesmo tempo. É neste contexto que ressurge a discussão pública sobre o regime de serviço militar, com opiniões nem sempre as mais esclarecidas.

O bom senso requer que se olhe para o problema com atenção, pondo de lado visões idílicas que não se coadunam com a nossa realidade. Portugal não tem a tradição de países como os EUA e o Reino Unido para basear o seu sistema de serviço militar exclusivamente no voluntariado e não dispõe de recursos financeiros para o suportar na dimensão recomendável pelos seus compromissos internacionais. Por outro lado, é desvalorizar a missão das Forças Armadas encará-las, não como um nobre fim em si mesmo, mas como um local de recolha de incentivos e de simples transição para outras realizações profissionais, como alguns sugerem. Assim sendo, o pragmatismo aconselha a que se reactive a conscrição, não para prescindir do voluntariado, mas para ser o seu embasamento estrutural, ou seja, a sua fonte subsidiária.

Num próximo artigo, abordarei a estreita relação genética e de complementaridade que importará estabelecer entre a conscrição e o voluntariado, favorecendo a resolução imediata do grave problema quantitativo dos efectivos, enquanto a sua progressiva evolução qualitativa será função dos tempos de serviço estipulados e dos objectivos que forem traçados. Com a reabilitação da conscrição, irá ainda recuperar-se, gradualmente, o sistema de recrutamento e mobilização de implantação territorial que existiu enquanto prevaleceu aquela modalidade de serviço militar, e que será imprescindível se o país tiver de convocar os cidadãos para a defesa da pátria. Não é compreensível a omissão que se tem verificado a respeito desta imperiosa necessidade.



[i] Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90

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