Por Humberto Cardoso
Equívocos
diversos continuam a fazer mossa em Cabo Verde. Às vezes são equívocos à volta
da história e da memória. Outras vezes derivam da incompreensão que o país é,
de facto, insular e de pequena população, pobre de recursos e localização
remota. Ainda há os equívocos de competência entre os órgãos de poder
exacerbados pelo crescente protagonismo dos actores políticos.
A celebração dos 50 anos da libertação dos presos do
campo do Tarrafal hoje dia 1º de Maio é um dos tais acontecimentos envolvidos
em equívocos que desembocaram em confrontos entre a presidência da república e
o governo: o presidente da república encaminhou os visitantes da sua página do
facebook para o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência sobre a
suposta falta de articulação com o governo publicado nessa rede social. A
réplica do ministro da cultura veio logo de seguida no mesmo espaço mediático.
Um primeiro equívoco é o de confundir o acto de
libertação dos condenados pelo regime salazarista no dia 1º de Maio de 1974 com
o fim de actos ditatoriais em Cabo Verde e também com o encerramento do campo
do Tarrafal como prisão para presos políticos. Não foi nem uma coisa nem outra.
Actos ditatoriais iriam ser praticados em Cabo Verde por mais uma década e
meia, começando em Dezembro de 1974 com a prisão no Tarrafal de 72 pessoas
consideradas inimigas do PAIGC. E o encerramento do campo do Tarrafal só se tornou
definitivo com o decreto lei nº 3/75 de 19 de Julho de 1975.
É evidente que a confusão só ajuda os que queram manter a
narrativa do PAIGC que a sua luta se estendia a Cabo Verde e até tinha
prisioneiros num campo de concentração. Uma ideia que é reforçada ao se
associar Angola e Guiné-Bissau nas celebrações e a obter a chancela de
Portugal. O desencanto posterior dos que lá estiveram presos dá conta de como
essa narrativa era, de facto, uma farsa que apenas visava pôr o poder nas mãos
dos “melhores filhos do povo”.
Por outro lado, ao conjugar as comemorações do 25 de
Abril com a celebração da saída dos presos do campo do Tarrafal quer-se afirmar
que nos dois casos era a mesma a motivação de luta contra a ditadura. Na
realidade, o 25 de Abril deu origem a um movimento popular que levou Portugal a
uma democracia liberal e constitucional. Já em Cabo Verde aconteceu
precisamente o contrário. Abriu o caminho para a captura do movimento popular
com vista à substituição de uma ditadura por outra.
Na mesma linha de reforço de certo tipo de narrativas,
equívocos vão-se sucedendo com a designação oficial do campo do Tarrafal como
campo de concentração. Historicamente foi colónia penal desde 1936 até 1954 com
300 presos políticos. Em 1962 foi reaberto como campo de trabalho com ala para
presos políticos e outra para presos de delito comum. A designação de campo de
concentração só vai aparecer na resolução do conselho de ministros nº 33/2006
de 14 de Agosto de 2006 do governo do PAICV talvez para dar força dramática à
narrativa histórica a que está apegada. Sem se saber porquê foi continuada nos
governos do MpD a partir de 2016, ultimamente na proposta de candidatura a
património mundial.
Não é uma designação universalmente assumida,
nomeadamente pelas instituições portuguesas e compreende-se, considerando que a
imagem moderna dos campos de concentração é a dos campos nazis durante a
segunda guerra mundial. A assunção oficial desses equívocos pelo Estado de Cabo
Verde leva a que sejam reproduzidos em documentos oficiais, nas escolas, e na
comunicação social. Tudo isso para justificar uma narrativa histórica que pela
sua natureza marcadamente ideológica polariza a sociedade e não é inclusiva.
Como tal, no passado, levou à ditadura do partido único e excluiu muita gente.
No presente, divide a sociedade e agora alimenta fracturas entre órgãos de
soberania como se pode constatar do último choque público entre a presidência
da república e o governo.
A presidência da república resolveu assumir as
celebrações dos cinquenta anos da libertação dos presos políticos como
Homenagem do Estado. Mas como escreveu o reconhecido jurista e antigo assessor
jurídico de primeiros-ministros e presidentes da república, Dr. Eurico Pinto
Monteiro, comentando o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência da
república no Facebook, a comemoração “deveria
ter sido objecto de uma resolução do conselho de ministros que criaria uma
comissão de honra presidida pelo presidente da república e uma outra executiva
da qual fariam parte a ministra da presidência do conselho de ministros e o
chefe da casa civil, além de outras entidades”. Evitar-se-iam “incidentes” como os que aconteceram.
A verdade, porém, é que é muito provável que tais
incidentes continuem a verificar-se. Não só por causa da disputa de
protagonismo dos actores políticos, mas também devido a um certo “activismo” à
volta de temáticas caras a narrativas ideológicas em colisão directa com os
princípios e valores constitucionais. É exemplo disso os “incidentes” na sequência da não aprovação pelo
parlamento da proposta de comemoração oficial do centenário de Amílcar Cabral e
agora esse confronto à volta do campo do Tarrafal. E há outros exemplos
preocupantes de uma certa guerrilha institucional que não poupa até mesmo
sectores sensíveis como os negócios estrangeiros e as forças armadas.
Claramente que o país não precisa dessas distracções em
particular quando a conjuntura internacional é preocupante com o aumento de
tensões geoestratégicas e a reconfiguração das relações comerciais, afectando
preços, cadeias de abastecimento e cadeias de valor. Procurar soluções para
dificuldades nacionais nos transportes e em vários outros sectores-chave para o
futuro como energia e água, educação e saúde não se compadece com a manutenção
de uma cultura política que ainda se alimenta de narrativas já provadamente
exclusivas. E muito menos surtem efeito apelos para se construir vontades para
as enfrentar e vencer.
De facto, não se pode continuar a reproduzir fracturas
permanentes na sociedade, a aumentar a ineficácia do Estado e a inibir o
desenvolvimento forçando o país a se manter num circulo vicioso. Equívocos
alimentados pelo Estado e as suas instituições devem ser ultrapassados não só
para evitar incidentes como também para restaurar a paz inclusiva à cidadania.
Há que também deixar espaço livre para o exercício do espírito crítico tão
crucial para se encontrar os caminhos que podem levar à prosperidade, em Liberdade.
[i] Texto originalmente publicado na edição impressa do “Expresso das
Ilhas” nº 1170 de 1 de Maio de 2024
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