Equívocos não trazem paz inclusiva[i]

segunda-feira, 6 de maio de 2024

 Por Humberto Cardoso

Equívocos diversos continuam a fazer mossa em Cabo Verde. Às vezes são equívocos à volta da história e da memória. Outras vezes derivam da incompreensão que o país é, de facto, insular e de pequena população, pobre de recursos e localização remota. Ainda há os equívocos de competência entre os órgãos de poder exacerbados pelo crescente protagonismo dos actores políticos.


A celebração dos 50 anos da libertação dos presos do campo do Tarrafal hoje dia 1º de Maio é um dos tais acontecimentos envolvidos em equívocos que desembocaram em confrontos entre a presidência da república e o governo: o presidente da república encaminhou os visitantes da sua página do facebook para o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência sobre a suposta falta de articulação com o governo publicado nessa rede social. A réplica do ministro da cultura veio logo de seguida no mesmo espaço mediático.

Um primeiro equívoco é o de confundir o acto de libertação dos condenados pelo regime salazarista no dia 1º de Maio de 1974 com o fim de actos ditatoriais em Cabo Verde e também com o encerramento do campo do Tarrafal como prisão para presos políticos. Não foi nem uma coisa nem outra. Actos ditatoriais iriam ser praticados em Cabo Verde por mais uma década e meia, começando em Dezembro de 1974 com a prisão no Tarrafal de 72 pessoas consideradas inimigas do PAIGC. E o encerramento do campo do Tarrafal só se tornou definitivo com o decreto lei nº 3/75 de 19 de Julho de 1975.

É evidente que a confusão só ajuda os que queram manter a narrativa do PAIGC que a sua luta se estendia a Cabo Verde e até tinha prisioneiros num campo de concentração. Uma ideia que é reforçada ao se associar Angola e Guiné-Bissau nas celebrações e a obter a chancela de Portugal. O desencanto posterior dos que lá estiveram presos dá conta de como essa narrativa era, de facto, uma farsa que apenas visava pôr o poder nas mãos dos “melhores filhos do povo”.

Por outro lado, ao conjugar as comemorações do 25 de Abril com a celebração da saída dos presos do campo do Tarrafal quer-se afirmar que nos dois casos era a mesma a motivação de luta contra a ditadura. Na realidade, o 25 de Abril deu origem a um movimento popular que levou Portugal a uma democracia liberal e constitucional. Já em Cabo Verde aconteceu precisamente o contrário. Abriu o caminho para a captura do movimento popular com vista à substituição de uma ditadura por outra.

Na mesma linha de reforço de certo tipo de narrativas, equívocos vão-se sucedendo com a designação oficial do campo do Tarrafal como campo de concentração. Historicamente foi colónia penal desde 1936 até 1954 com 300 presos políticos. Em 1962 foi reaberto como campo de trabalho com ala para presos políticos e outra para presos de delito comum. A designação de campo de concentração só vai aparecer na resolução do conselho de ministros nº 33/2006 de 14 de Agosto de 2006 do governo do PAICV talvez para dar força dramática à narrativa histórica a que está apegada. Sem se saber porquê foi continuada nos governos do MpD a partir de 2016, ultimamente na proposta de candidatura a património mundial.

Não é uma designação universalmente assumida, nomeadamente pelas instituições portuguesas e compreende-se, considerando que a imagem moderna dos campos de concentração é a dos campos nazis durante a segunda guerra mundial. A assunção oficial desses equívocos pelo Estado de Cabo Verde leva a que sejam reproduzidos em documentos oficiais, nas escolas, e na comunicação social. Tudo isso para justificar uma narrativa histórica que pela sua natureza marcadamente ideológica polariza a sociedade e não é inclusiva. Como tal, no passado, levou à ditadura do partido único e excluiu muita gente. No presente, divide a sociedade e agora alimenta fracturas entre órgãos de soberania como se pode constatar do último choque público entre a presidência da república e o governo.

A presidência da república resolveu assumir as celebrações dos cinquenta anos da libertação dos presos políticos como Homenagem do Estado. Mas como escreveu o reconhecido jurista e antigo assessor jurídico de primeiros-ministros e presidentes da república, Dr. Eurico Pinto Monteiro, comentando o esclarecimento do chefe da casa civil da presidência da república no Facebook, a comemoração “deveria ter sido objecto de uma resolução do conselho de ministros que criaria uma comissão de honra presidida pelo presidente da república e uma outra executiva da qual fariam parte a ministra da presidência do conselho de ministros e o chefe da casa civil, além de outras entidades”. Evitar-se-iam “incidentes” como os que aconteceram.

A verdade, porém, é que é muito provável que tais incidentes continuem a verificar-se. Não só por causa da disputa de protagonismo dos actores políticos, mas também devido a um certo “activismo” à volta de temáticas caras a narrativas ideológicas em colisão directa com os princípios e valores constitucionais. É exemplo disso os “incidentes” na sequência da não aprovação pelo parlamento da proposta de comemoração oficial do centenário de Amílcar Cabral e agora esse confronto à volta do campo do Tarrafal. E há outros exemplos preocupantes de uma certa guerrilha institucional que não poupa até mesmo sectores sensíveis como os negócios estrangeiros e as forças armadas.

Claramente que o país não precisa dessas distracções em particular quando a conjuntura internacional é preocupante com o aumento de tensões geoestratégicas e a reconfiguração das relações comerciais, afectando preços, cadeias de abastecimento e cadeias de valor. Procurar soluções para dificuldades nacionais nos transportes e em vários outros sectores-chave para o futuro como energia e água, educação e saúde não se compadece com a manutenção de uma cultura política que ainda se alimenta de narrativas já provadamente exclusivas. E muito menos surtem efeito apelos para se construir vontades para as enfrentar e vencer.

De facto, não se pode continuar a reproduzir fracturas permanentes na sociedade, a aumentar a ineficácia do Estado e a inibir o desenvolvimento forçando o país a se manter num circulo vicioso. Equívocos alimentados pelo Estado e as suas instituições devem ser ultrapassados não só para evitar incidentes como também para restaurar a paz inclusiva à cidadania. Há que também deixar espaço livre para o exercício do espírito crítico tão crucial para se encontrar os caminhos que podem levar à prosperidade, em Liberdade. 



[i] Texto originalmente publicado na edição impressa do “Expresso das Ilhas” nº 1170 de 1 de Maio de 2024

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