Por Nuno
Pacheco [ii]
Pistas
para descobrir, ou redescobrir, uma das grandes vozes da poesia em língua
portuguesa
Nasceu em Dezembro, cantou Maio,
morreu em Abril. Tudo meses em que celebramos alguma coisa de relevo, sem que,
todavia, tenhamos assinalado os 60 anos da sua morte, cumpridos no dia 6 do mês
passado. E, no entanto, o nome de Daniel Filipe persiste na nossa memória, não
só dos que ainda se lembram do extraordinário A Invenção do Amor, extenso e
torrencial poema que ele gravou em fita e viria a ser editado anos depois em
disco, como do impacto dos seus livros A Invenção do Amor e Outros Poemas e
Pátria, Lugar de Exílio (poesia em tempo de guerra), editados, respectivamente,
em 1961 e 1963 na Colecção Forma da Editorial Presença.
Ainda há dias, quando se festejou o
cinquentenário do primeiro 1.º de Maio em liberdade (o de 1974), se recordou
aqui um disco com as reportagens transmitidas pela Emissora Nacional, O
Primeiro 1.º de Maio. Ora, abrindo esse disco, podíamos ler no seu interior
excertos de um poema que parecia acabado de escrever nesses dias de euforia:
“Somos a alegria o corpo e o sal da terra/ o sol das manhãs férteis a música do
outono/ a própria essência do amor a força das marés/ somos o tempo em marcha//
[…] Vêm de toda a parte sem idade/ Redescobrem palavras esquecidas/ e no
silêncio cúmplice desfraldam/ um novo e claro amanhecer do mundo// […] Neste
Primeiro de Maio (…) podemos finalmente sorrir sem amargura.”
Sim, podia ter sido escrito para
aquele Maio de 1974, mas foi publicado muito antes, em 1961. Trata-se de uma
colagem (sem assinalar as separações) de excertos do longo poema de Daniel
Filipe Pátria, lugar de exílio; e o Maio a que ele se refere, suprimido pelos
últimos parênteses, é de 1962, numa ânsia de liberdade ainda por conquistar
(“Agora poderemos ser de novo homens/ livres ainda que presos/ mastigando a
comida sem o sabor a lágrimas/ antes com o sal da esperança”).
Português? Ou cabo-verdiano? Talvez
ambas as coisas. Nascido em Cabo Verde, na ilha da Boavista, em 11 de Dezembro
de 1925, foi em Portugal (onde chegou ainda criança, com cerca de dois anos de
idade) que estudou, trabalhou e criou as suas obras: Missiva (1946), Marinheiro
em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga
Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957), O Manuscrito na
Garrafa (1960, romance que os censores consideraram “um livro
inconveniente, sob os pontos de vista político, social e moral”, proibindo-o; o
PÚBLICO editou-o este ano em fac-símile), A Invenção do Amor (1961) e Pátria,
Lugar de Exílio (1963). Perseguido e torturado pela PIDE, viria a morrer a
6 de Abril de 1964, em Lisboa, com 38 anos, deixando uma obra “marcada pelo
sentimento de solidão, de bloqueio e de pátria como lugar de exílio”, como a
descreveu, em 2016, a filóloga e professora cabo-verdiana Ondina Ferreira.
Sem que, até hoje, tenha sido
objecto de edição a sua obra completa (talvez no centenário do nascimento, em
1925?), Daniel Filipe está presente em várias antologias, como a Poesia
Portuguesa do Pós-Guerra 1945-1965 (Editora Ulisseia, 1965), a Antologia
da Novíssima Poesia Portuguesa (Moraes, 1971), O Nosso Amargo
Cancioneiro (Livraria Paisagem, 1973), Cancioneiro de Abril
(Ulmeiro, 1999), Poemas Portugueses – Antologia da Poesia Portuguesa do Séc.
XIII ao Séc. XXI (Porto Editora, 2009). Além disso, os seus poemas podem
também ser escutados em discos, quer de poesia, quer de canções.
O LP A Invenção do Amor e Outros
Poemas de Daniel Filipe (Orfeu, 1973), além do poema-título dito pelo seu
autor (com acompanhamento musical feito de improviso por Marcos Resende e Rui
Cardoso, ao ouvirem a voz gravada de Daniel Filipe), tem ainda oito poemas
ditos por Mário Viegas, retirados de “O viajante clandestino”, “A ilha
imaginada” (ambos do livro Pátria Lugar de Exílio) e “Canto e lamentação
na cidade ocupada”, poemas 1, 3, 9 e 10 (do livro A Invenção do Amor).
Viegas, diga-se, já gravara outro poema de “O viajante clandestino” no disco Palavras
Ditas (1972).
A poesia de Daniel Filipe foi também
inspiradora de canções. Luís Cília gravou-o logo no seu primeiro disco, Portugal-Angola,
Chants de Lutte, de 1964 (reeditado como Meu País em 1973), nas
canções Meu país, Basta, Canta e O que menos importa. E voltaria a
cantá-lo no disco Contra a Ideia da Violência, a Violência da Ideia
(1973), com a canção Pátria lugar de exílio. Além de Cília, amigo
pessoal do poeta (foi Daniel Filipe quem o convenceu a cantar poesia), também
Manuel Freire e Fausto Bordalo Dias gravaram poemas de Daniel Filipe. O
primeiro com Lutaremos meu amor, no EP Trovas Trovas Trovas
(1968) e o segundo com Carta de Paris (do “Canto e lamentação na cidade
ocupada”, poema 3), no álbum P’ro Que Der e Vier (1974). Pistas para
descobrir, ou redescobrir, uma das grandes vozes da poesia em língua
portuguesa.
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