Recordar o poeta Daniel Filipe, nos 60 anos da sua morte[i]

sábado, 11 de maio de 2024

 

Por Nuno Pacheco [ii]

Pistas para descobrir, ou redescobrir, uma das grandes vozes da poesia em língua portuguesa

Nasceu em Dezembro, cantou Maio, morreu em Abril. Tudo meses em que celebramos alguma coisa de relevo, sem que, todavia, tenhamos assinalado os 60 anos da sua morte, cumpridos no dia 6 do mês passado. E, no entanto, o nome de Daniel Filipe persiste na nossa memória, não só dos que ainda se lembram do extraordinário A Invenção do Amor, extenso e torrencial poema que ele gravou em fita e viria a ser editado anos depois em disco, como do impacto dos seus livros A Invenção do Amor e Outros Poemas e Pátria, Lugar de Exílio (poesia em tempo de guerra), editados, respectivamente, em 1961 e 1963 na Colecção Forma da Editorial Presença.

Ainda há dias, quando se festejou o cinquentenário do primeiro 1.º de Maio em liberdade (o de 1974), se recordou aqui um disco com as reportagens transmitidas pela Emissora Nacional, O Primeiro 1.º de Maio. Ora, abrindo esse disco, podíamos ler no seu interior excertos de um poema que parecia acabado de escrever nesses dias de euforia: “Somos a alegria o corpo e o sal da terra/ o sol das manhãs férteis a música do outono/ a própria essência do amor a força das marés/ somos o tempo em marcha// […] Vêm de toda a parte sem idade/ Redescobrem palavras esquecidas/ e no silêncio cúmplice desfraldam/ um novo e claro amanhecer do mundo// […] Neste Primeiro de Maio (…) podemos finalmente sorrir sem amargura.”

Sim, podia ter sido escrito para aquele Maio de 1974, mas foi publicado muito antes, em 1961. Trata-se de uma colagem (sem assinalar as separações) de excertos do longo poema de Daniel Filipe Pátria, lugar de exílio; e o Maio a que ele se refere, suprimido pelos últimos parênteses, é de 1962, numa ânsia de liberdade ainda por conquistar (“Agora poderemos ser de novo homens/ livres ainda que presos/ mastigando a comida sem o sabor a lágrimas/ antes com o sal da esperança”).

Português? Ou cabo-verdiano? Talvez ambas as coisas. Nascido em Cabo Verde, na ilha da Boavista, em 11 de Dezembro de 1925, foi em Portugal (onde chegou ainda criança, com cerca de dois anos de idade) que estudou, trabalhou e criou as suas obras: Missiva (1946), Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957), O Manuscrito na Garrafa (1960, romance que os censores consideraram “um livro inconveniente, sob os pontos de vista político, social e moral”, proibindo-o; o PÚBLICO editou-o este ano em fac-símile), A Invenção do Amor (1961) e Pátria, Lugar de Exílio (1963). Perseguido e torturado pela PIDE, viria a morrer a 6 de Abril de 1964, em Lisboa, com 38 anos, deixando uma obra “marcada pelo sentimento de solidão, de bloqueio e de pátria como lugar de exílio”, como a descreveu, em 2016, a filóloga e professora cabo-verdiana Ondina Ferreira.

Sem que, até hoje, tenha sido objecto de edição a sua obra completa (talvez no centenário do nascimento, em 1925?), Daniel Filipe está presente em várias antologias, como a Poesia Portuguesa do Pós-Guerra 1945-1965 (Editora Ulisseia, 1965), a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (Moraes, 1971), O Nosso Amargo Cancioneiro (Livraria Paisagem, 1973), Cancioneiro de Abril (Ulmeiro, 1999), Poemas Portugueses – Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI (Porto Editora, 2009). Além disso, os seus poemas podem também ser escutados em discos, quer de poesia, quer de canções.

O LP A Invenção do Amor e Outros Poemas de Daniel Filipe (Orfeu, 1973), além do poema-título dito pelo seu autor (com acompanhamento musical feito de improviso por Marcos Resende e Rui Cardoso, ao ouvirem a voz gravada de Daniel Filipe), tem ainda oito poemas ditos por Mário Viegas, retirados de “O viajante clandestino”, “A ilha imaginada” (ambos do livro Pátria Lugar de Exílio) e “Canto e lamentação na cidade ocupada”, poemas 1, 3, 9 e 10 (do livro A Invenção do Amor). Viegas, diga-se, já gravara outro poema de “O viajante clandestino” no disco Palavras Ditas (1972).

A poesia de Daniel Filipe foi também inspiradora de canções. Luís Cília gravou-o logo no seu primeiro disco, Portugal-Angola, Chants de Lutte, de 1964 (reeditado como Meu País em 1973), nas canções Meu país, Basta, Canta e O que menos importa. E voltaria a cantá-lo no disco Contra a Ideia da Violência, a Violência da Ideia (1973), com a canção Pátria lugar de exílio. Além de Cília, amigo pessoal do poeta (foi Daniel Filipe quem o convenceu a cantar poesia), também Manuel Freire e Fausto Bordalo Dias gravaram poemas de Daniel Filipe. O primeiro com Lutaremos meu amor, no EP Trovas Trovas Trovas (1968) e o segundo com Carta de Paris (do “Canto e lamentação na cidade ocupada”, poema 3), no álbum P’ro Que Der e Vier (1974). Pistas para descobrir, ou redescobrir, uma das grandes vozes da poesia em língua portuguesa.



[i] In “Público" de 09 de Maio de 2024

[ii] Jornalista. Escreve  à quinta-feira

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