A problemática do serviço militar tem de ser olhada com seriedade e realismo

sexta-feira, 3 de maio de 2024

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

No meu último artigo sobre este tema, abordei a problemática do Serviço Militar Obrigatório (SMO) com o intuito de relembrar a precipitação que rodeou a extinção do antigo modelo e a forma como aparentemente foram menorizadas ou relativizadas todas as suas reais implicações. O artigo foi apenas o ponto de partida para uma discussão que terá de ser norteada pelo propósito de contribuir positivamente para uma solução que responda aos objectivos da segurança e defesa nacionais e se enquadre na capacidade financeira do país.

É importante sublinhar que o debate sobre este tema tem de envolver a sociedade civil e o meio militar. Mas as opiniões não podem reger-se por amadorismo e superficialidade, ou deixarem-se contaminar por preconceitos ideológicos ou ideias feitas. É como classifico certos juízos que parecem distanciados da realidade empírica, pela simples razão de serem formulados por quem não a conhece suficientemente. São situações em que parece mais cómodo ficar-se por floreados intelectuais à procura de empatia com a faixa social visada ou com o pseudo-interesse supostamente posto em causa.

Por exemplo, e para começar, considero errado do ponto de vista conceitual afirmar que os cidadãos não são recursos à disposição do Estado de Direito Democrático, daí insinuando-se que este não tem legitimidade para impor a obrigatoriedade do serviço militar, pelo que a solução será contratar quem se disponha a aceitar o compromisso de defender a pátria. Alguma opinião publicada desfavorável ao SMO funda-se em argumentos economicistas do género: “os cidadãos conscritos consomem, mas não produzem, e a produção económica é essencial para a obtenção dos impostos necessários ao funcionamento dos serviços do Estado, incluindo os exércitos”. Considero disparatado este pensamento, que, aliás, a própria história da civilização contraria. O sentimento colectivo de auto-defesa é intuitivo e remonta às primeiras comunidades humanas. Os homens válidos da aldeia, da tribo ou do clã não precisavam de qualquer estímulo, incitamento ou prémio para pegarem em armas contra o invasor ou agressor, pois sabiam que se não o fizessem o preço a pagar seria o fim da sua comunidade. Defender as suas vidas e as das suas famílias era uma prerrogativa que conferia honra e distinção.

O absurdo kafkiano de questionar a legitimidade de o Estado impor o serviço militar permitiria então, por inferência indutiva, acusá-lo de ter violado os direitos dos cidadãos até que foi decidido desconstitucionalizar a sua obrigatoriedade com a revisão constitucional de 1997. O que não se pensará então dos países europeus que, devido às alterações geo-políticas, retomaram um modelo de serviço militar obrigatório ou o expandiram, como a Noruega, a Finlândia, a Dinamarca, a Suécia, a Áustria, a Grécia e a Letónia? De facto, neste caso, seria de um ridículo inominável afirmar que países profundamente democráticos e socialmente avançados estão a violar os direitos dos seus cidadãos ao convocarem a sua participação nos trabalhos da defesa da pátria. De resto, é consabido que os direitos e os deveres de cidadania, duas faces da mesma moeda, assentam num princípio básico que é comum a todas as sociedades democráticas.

Outra narrativa para descredibilizar o regresso do SMO tem consistido em fazer crer que com a sua reintrodução se pretende reforçar a “socialização cívica” dos cidadãos, o que, aliás, com razão, os seus autores consideram “démodé” face à evolução dos níveis de escolaridade e progresso social. Mas, na verdade, só os que rejeitam liminarmente o SMO é que se agarram como lapa à semelhante falácia. O máximo que se pode dizer é que o fortalecimento da consciência cívica poderá ser uma consequência natural do SMO, mas longe de ser um fim em si mesmo. E mesmo assim sem representar um contributo relevante à escala nacional se se considerar que as mulheres e cerca de metade dos homens ficam isentos do serviço militar. Pois, se é verdade que o SMO favorece e estimula o apego a certos valores, como a camaradagem, espírito de corpo, disciplina, pontualidade, etc., contudo, não é por aí que passa a razão fundamental da sua reabilitação.

Também se têm lido opiniões publicadas que induzem o leitor a pensar que a reactivação do SMO terá em vista substituir o voluntariado. Ou que o SMO não resolve o problema da escassez dos efectivos. Porém, nada disso tem consistência ou traduz a verdade. A reactivação do SMO, pelo contrário, servirá, precisamente, para o embasamento estrutural do sistema de voluntariado, além de ser a única via possível para a recuperação do importante sistema de mobilização nacional que Portugal já possuiu, à semelhança de todos os países que dele não abdicaram, cientes da sua imprescindibilidade para a defesa nacional. A afirmação de que o SMO não resolve o problema da escassez de efectivos é uma perfeita evidência do equívoco ou fragilidade de alguns juízos. É claro que o SMO resolveria “tout court” o problema dos efectivos da mesma forma que o conseguiu no passado, dimensionado em função das necessidades impostas por cada conjuntura. No entanto, a resposta seria claramente em termos quantitativos, não ao nível da exigência qualitativa que depende necessariamente do tempo de serviço e do profissionalismo, que são as condicionantes do sistema do voluntariado. Como ninguém pensa em anular o voluntariado, mas, pelo contrário, promover a sua alimentação contínua e sustentada através de efectivos de conscrição anualmente convocados, ultrapassando-se assim a incerteza que ora rodeia o actual sistema, fica assim bem exposta a impertinência e ligeireza de algumas opiniões denegridoras do retorno do serviço obrigatório.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 90

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Em Portugal, há muita gente que não quer olhar para este problema com o necessário realismo.

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