Sim,
Cabo Verde precisa de conhecer, de amar e de saber respeitar – para as poder
preservar –
as suas memórias, tanto as documentais, como, fundamentalmente, as que ficaram em
ruínas das edificações, das igrejas e dos faróis, entre outras…
A história destas ilhas, que hoje são um país
insular, remonta a meados do século XV, com a chegada das caravelas portuguesas.
Após isso, sucedeu-se um longo e, por vezes, doloroso caminho ao longo dos
séculos, para a sua subsequente edificação. Os vestígios e os registos de todo
os ciclos históricos devem ser bem conservados e devidamente identificados e organizados,
sob pena de sermos uma comunidade humana que não conhece o seu passado; que não
tem memória o que revela uma enorme ignorância histórica. Mas mais, em algumas
situações, até parece que nós não os queremos reconhecer e, nem que eles - os
vestígios e os registos históricos - se mantenham em registos visíveis.
Através da preservação
de vestígios patrimoniais, de documentos, estes servirão também como um recurso
educativo valioso para as gerações futuras.
De notar que a UNESCO instituiu
em 1982, O Dia Internacional dos Monumentos e dos Sítios, que se celebra a 18
de Abril, exactamente para que as nações não percam a memória colectiva do seu
passado.
Mas infelizmente, nós
não sabemos, não aprendemos ainda a estimar, a respeitar, a valorizar e a
guardar bem as memórias do passado, do nosso passado histórico. E nem sabemos
apreciá-las e valorizá-las. Das poucas que temos não cuidamos nem as tratamos
bem.
Tenho a sensação de que
isto acontece por épocas, que ora são de algum avanço, em matéria de
conservação, ora são de muito retrocesso – estou ainda a tentar compreender o
que se passa.
Helena Pinto, no seu interessante e
esclarecedor livro: «Educação Histórica e patrimonial: concepções de Alunos e
Professores sobre o Passado em Espaços do Presente» Edição. CITCEM - Centro de
Investigação transdisciplinar «Cultura Espaço e Memória» Porto, 2016, a certa altura diz o seguinte, que passo a
transcrever: “a ligação entre a problemática da identidade e a do património
– à escala da identidade nacional a ligação e do património cultural – ressalta
da tomada de consciência de que ambas se organizaram também em torno da questão
das relações com o lugar e o tempo, voltando-se para o futuro. (…) ao
conservarmos o património cultural – conjunto de objectos, naturais ou
artificiais, extraídos totalmente ou em parte do circuito de actividades
utilitárias, para serem preservadas para um futuro indefinidamente distante –
exteriorizamos e tornamos visível o laço que nos une àqueles e que «não se
reduz a uma sucessão no tempo nem a uma simples filiação genética, mas que
supõe uma pertença comum à nação e uma comum identificação com ela».
Assim, a problemática do património resulta da subordinação deste ao
futuro que «constitui um conjunto diverso de objectos e de sítios
enquanto património», daí a necessidade de conciliar as exigências de
conservação com várias outras.”
E a
investigadora acrescenta: Por isso, na relação com o tempo, o património não
desfrutou de continuidade, mas sofreu rupturas e questionamentos, na mudança de
um regime de memória para outro. Para alguns autores, (…), o património resulta
de uma ruptura entre o passado e o presente, em que os objectos já não têm a
função utilitária das coisas, mas finalidades diferentes, as de intermediários
entre o passado e o futuro. Os objectos antigos transportam o passado para o
presente, mas quem os contempla é transportado do presente para o passado, (…)
sendo esta fuga para as origens motivada pela observação do objecto antigo, o
que atrai e mobiliza os hodiernos para a sua sobrevalorização. Todavia, o
património não pode ser olhado apenas como reserva e, menos ainda, como
recordação, mas como algo que faz parte do nosso presente. Fim de
transcrição.
Ora bem, retomando a
nossa situação e o pouco valor que aqui se dá ao património construído, vamos, para
iniciar, apresentar alguns casos: vou
começar pelo meu rincão de origem – e que já é, há quase três décadas, município
de pleno direito – onde tem vindo a acontecer algo bizarro e de muito mau
exemplo para os munícipes, que é o facto
da edilidade que sucede nas eleições autárquicas,
deixa cair, deixa apodrecer tudo o que fora feito pelo colega anterior; e o
pior é que em algumas construções e miradouros públicos, o edil que saiu da
última eleição deixa ruir um muro ou algo similar, mandado fazer pelo autarca
anterior, para, por vezes, quando convém, o reerguer e colocar o nome dele em
placa destacada, seguida de inauguração do dito muro ou similar, como se ele
fosse o autor da obra reeditada… Com atitudes
comportamentais destas como queremos conservar o que já foi construído? É
também revelador de falta de respeito pelo erário. O mais bizarro aconteceu com
as árvores tidas como as mais velhas da antiga povoação, que se tornaram uma
espécie de património natural. Ora bem, por terem sido identificadas, cuidadas
e marcadas pelo autarca antecedente, foram imediatamente arrancadas a atiradas
ao lixo pelo autarca eleito que se lhe seguiu. Vejam bem! até com pertences da
mãe natureza se fizeram coisas dessas no meu município!
Um outro ponto que
queria aqui referir é o da estatuária pública das ilhas. Gostaria de aproveitar
este escrito, para expressar o meu elevado apreço ao Historiador, Dr. Joaquim Saial,
pois que, graças a ele, ao levantamento que ele fez sobre isso, permitiu-nos conhecer
a origem, a data das esculturas, os seus autores e a respectiva justificação
histórica de cada estátua, de cada busto erguido nas praças e nos miradouros do
Arquipélago. Um trabalho de vulto para nós. Bem-haja!
Vou abrir aqui um
pequeno parêntesis e narrar o seguinte: de cada vez que levamos pessoas amigas,
de uma maneira geral, forasteiras – e já
não são poucas as vezes que tal acontece –
que nos vêm visitar à Praia e
para as quais fazemos, Armindo e eu um programa de visita, onde incluímos, quase
que obrigatoriamente, uma passagem pela “Cidade Velha” e por Tarrafal, e de
cada vez que visito, quer sejam as ruínas da Sé Catedral, quer seja a Igreja de
Nossa Senhora do Rosário (a mais antiga do Arquipélago e curiosamente em
actividade religiosa) – fica-me a impressão de maior degradação, de menor
cuidado com os objectos antigos, originais.
O pior disso tudo, na
minha modesta opinião, foi o péssimo trabalho que creio ter sido feito pela
cooperação espanhola, nos inícios de 2000 (século XXI, na recuperação e conservação
de monumentos da Cidade Velha. Não consegui perceber porque retiraram as
lápides dos túmulos dos religiosos sepultados no átrio da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário desde o século XVI, que actualmente estão amontoados e ao
abandono no mesmo átrio e este todo com pedras… qual foi o sentido histórico
disto? Qual foi o sinal de preservação de vestígios até aí conservados?...até
hoje estou para entender a razão da destruição feita. Não parece que se tenha
preocupado minimamente com a História, mas apenas com a Engenharia…
Reforço a minha
narração, acrescentando que, da última vez que levei amigos, no passado mês de Abril
do ano que corre, fiquei envergonhada quando, ao entrar nas ruínas da antiga Sé
catedral, para além do lixo ali acumulado…até uma mesa de plástico de “pernas
para o ar” encontrámos! como que a querer dizer aos visitantes: “vejam ao que
isto chegou!”. Fecho o parêntesis.
Desculpe-me, caro leitor, este arrazoado de casos, aparentemente
“casitos” e de caos, reveladores da pouca importância que a população e as
próprias autoridades demonstram em relação aos símbolos, às estátuas e aos
marcos públicos.
Não sei como está neste
momento a antiga Colónia Penal do Tarrafal (1936-1960), mais tarde, Campo de Trabalho
de Tarrafal 1960-1975). Deduzo que esteja de “cara lavada” por causa das recentes
comemorações dos 50 anos da libertação dos presos políticos portugueses.
Como vou com alguma frequência ao Tarrafal,
notei nos dias que antecederam às comemorações, desusado movimento de muitos
trabalhadores a capinarem a erva seca, que normalmente cobre as suas instalações
ao longo do ano, dando-lhe um ar decrépito, que tinha da última vez que lá
levei gente amiga forasteira que queria conhecer a prisão de triste memória.
Chegado a este ponto
remeto para a educação formal – da mesma forma que é na escola que as crianças
e os adolescentes se habilitam a olhar com atenção e com mais cuidado, o meio
ambiente (educação ambiental) que de há já alguns anos a esta parte, se
ministra no ensino básico – assim, a educação para a preservação da memória
histórica e do património construído, deve, igualmente, fazer parte do
currículo da aprendizagem na escola.
Quanto aos Faróis – outro
património construído e que deve ser conservado – vejam-se os bons exemplos,
nesta matéria, de Portugal e dos Açores, que reclamam (ou, exigem) uma atenção especial, pois, para além de representar
aquilo que as ilhas possuem de mais emblemático, o mar, guardam também histórias
de salvamentos, de naufrágios, de iluminação do caminho do mar e da sua protecção
aos barcos em demanda do porto de destino ou de abrigo.
Não vá sem acrescentar,
que alguns faróis (não muitos) estão restaurados e conservados por iniciativa e
a pedido, se não estou em erro, de alguns edis dos Concelhos de certas ilhas.
Mas tenho notícias também da existência de outros faróis, nas pontas extremas
de algumas ilhas, em estado de degradação crescente.
Citando
o antropólogo João Lopes Filho, (in: “Faróis de Cabo Verde”, Maio de 2019)
transcrevo: Acontece
que, devido à sua privilegiada posição geográfica e pela natureza de alguns
portos, o arquipélago de Cabo Verde foi desde a expansão marítima europeia um
ponto de paragem quase inevitável dos navios a vela (descanso
da marinhagem, reparação das embarcações, aguada e receber frescos), passando
mais tarde a ser importante escala na época da navegação a vapor, sobretudo,
para reabastecimento dos barcos que cruzavam o Atlântico.
Como navegar entre as ilhas cabo-verdianas implicava estar em permanente estado
de alerta, devido aos ventos, correntes e obstáculos junto das costas,
associados a zonas de anomalia magnética, acrescidos da limitada capacidade de
manobra das embarcações e inexactidão dos mapas, faziam com que muitos barcos
naufragassem, de modo que os faróis contribuiriam para tentar evitar os
acidentes que se registavam amiúde. Fim de
transcrição.
Com efeito, os faróis
carregam memórias belas e memórias trágicas da vida marítima das ilhas e de entre
as ilhas e de barcos estrangeiros que demandavam os nossos portos ou, de
passagem pelas ilhas para outras paragens.
Por tudo isto, urgem
ser preservados, através do restauro estes belos símbolos do mar, que inspiraram
poemas e narrativas aos poetas e escritores mais consagrados, entre nós.
A terminar, e para
satisfazer alguma curiosidade sobre os nomes dos mais importantes faróis de Cabo
Verde, aqui se registam numa pequena lista: Farol Dona Maria Pia, construído em
1881 na cidade da Praia, ilha de Santiago,
Farol D. Luís I, construído em 1882 no ilhéu dos Pássaros, junto à ilha
de São Vicente, Farol Fontes Pereira de
Melo na ilha de Santo Antão, inaugurado em 1886, o Farol da Ponta Preta,
instituído em 1889 na então vila do Tarrafal e
Farol Rainha Dona Amélia, edificado na ilha de São Vicente no ano de
1894. (extraída do trabalho aqui citado de João Lopes Filho, que por sua vez, a
transcreveu da Capitania dos Portos, de São Vicente)
Note-se que quase todos os nomes (patrónimos) dos
faróis de Cabo Verde, são homenagens a reis e a rainhas portugueses, com
excepção do de Fontes Pereira de Melo, (1819-1887) aristocrata e primeiro-ministro
de Portugal no reinado de D. Maria II e interessantemente muito ligado a Cabo
Verde. De várias maneiras: primeiro, jovem, acompanhando o seu pai, João Fontes
Pereira de Melo, governador de Cabo Verde (1839-1843). Terminada a comissão,
seu pai, acompanhado da mulher, regressou a Portugal. O jovem deixou-se ficar
por cá pois, entre outras razões, apaixonara-se por uma cabo-verdiana; segundo,
casa com Isabel Sousa Machado, cabo-verdiana, com quem teve uma filha. E, terceiro,
regressado a Portugal com a família, António Fontes Pereira de Melo foi eleito
Deputado pelas ilhas de Cabo Verde.
Fecho esta pequena nota, a que chamei de curiosa,
e termino o texto, voltando à memória patrimonial, para concluir que há um
grande trabalho a fazer-se entre nós, sobre a preservação do património
construído e dos seus vestígios – embora poucos, mas é o que temos – sendo nosso
o dever de cuidar deles. Alguém já o disse: património conservado é, sobretudo,
consciência histórica.
1 comentários:
Excelente artigo (mais um), escrito com a habitual elegância, assertividade, erudição e rara coragem, alguns dos atributos da autora que me fizeram ser seu incondicional admirador.
Reconheço também o incómodo que este alerta poderá provocar junto de alguns poderes mais preocupados com o imediato do que respeitarem o património nacional, através da sua conservação e preservação, única via, no meu modesto entender, de mostrarem respeito pelas gerações passadas e garantir que as vindouras percebam quais as suas verdadeiras origens. Agradeço ainda à Dra Ondina Ferreira o seu sempre fundamentado contributo para a cultura dos seus leitores, em particular, a "lição" que nos dá sobre os faróis de Cabo Verde, esse rico património que se encontra quase destruído pela incúria e abandono a que têm sido votados por quem deveria zelar pela sua conservação e preservação.
Muito obrigado!
Os meus sinceros parabéns
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