EMPURRAR OU NÃO O ROCHEDO DE SÍSIFO?

quinta-feira, 30 de abril de 2015
                 
Em memória da minha amiga Maria Margarida Salomão Mascarenhas,  contista e cronista, falecida a 8 de Janeiro de 2011, que comigo partilhou  muitas reflexões filosóficas sobre a condição humana.



Com a ilustração desta imagem, a minha amiga Maria Margarida fez-me destinatário de uma reflexão poético-filosófica, revisitando o absurdo da condição humana, na peugada de Camus (1). A fotografia permite-nos evocar a tortura de Sísifo, de que nos dá conta a mitologia grega. Tendo desafiado os deuses, Sísifo foi condenado a empurrar sem descanso um enorme rochedo até ao cume de uma escarpa, de onde rolaria por aí abaixo para ser de novo empurrado, e assim repetidamente por toda a eternidade. Os deuses entenderam que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. E Sísifo não desiste, vai aí acima vezes sem conta apenas para rebolar de novo até ao fundo sempre que está prestes a alcançar o cimo. Albert Camus utilizou esta metáfora para sustentar a sua “filosofia do absurdo”, segundo a qual as nossas vidas não têm qualquer utilidade, não valendo mais do que a aparência ilusória do que criamos ou julgamos criar. E assim, perante uma vida inútil e sem sentido, para Camus a alternativa ao destino de Sísifo poderá ser o “suicídio”, ou seja, o fim de uma existência desprovida de sentido.
A minha amiga andava então a tratar-se de um carcinoma da mama que, infelizmente, a haveria de matar. Mas, mulher de uma estóica resistência e grande energia moral, arrostou com o sacrifício do penoso tratamento ao longo de anos, procurando no reencontro consigo própria a inabalável força interior para não desistir da sua luta tenaz. Os seus escritos funcionavam para ela como um poderoso estímulo, uma espécie de bálsamo para as dores físicas mas também para as angústias momentâneas:
“…. Sinto-me hoje com uma boa calibragem química devido ao tratamento de ontem e  vinha cavalgando uma filosofia libertária à Henry Miller, Anaïs  Nim ou June  dos anos trinta. Mas como transformar o sofrimento em escrita?”;
“….Não gosto de ser eterna. Pelo menos dentro da realidade que conheço, mas como um outro correio me fala de engenhocas que no futuro conduzirão ao futuro  (já agora ao passado), não sei se presentemente estou vivendo sem consciência uma realidade já vivida. Mas também não gosto de ser Sísifo, embora aprecie os ritmos da vida, da noite e do dia e das estações do ano, dos rituais festivos que me transmitem a noção do Tempo.”; 
“…. O sol despontou e incidiu sobre um trevo de quatro folhas cobertas de pérolas de cacimbo brilhando como diamantes e sei que amanhã a cortisona vai-me mandar a conta com juros.”
Repare-se que a Maria Margarida disse que “não gostava de ser Sísifo”, é verdade, mas também sei que ela era da estirpe daqueles que não desistem da busca contínua do sentido das coisas para o fortalecimento da sua consciência crítica.
Mas continuemos com a mitologia. Um dia, Sísifo chega ao topo, e, antes de voltar a resvalar por aí abaixo no seu eterno suplício, tem um assomo de clarividência e apercebe-se de que começa a ser mais forte que o rochedo, a assenhorear-se do seu próprio destino. E isso transmite-lhe um misterioso alento para recomeçar tudo de novo, preferindo a eternização do suplício ao termo da sua existência, isto é, ao “suicídio”. Daí poder-se dizer que Sísifo simboliza o heroísmo do “absurdo da existência humana”. A clarividência que devia fazer o seu tormento consagra a sua vitória.
Recentemente, foi noticiado o dramático caso de alguém que, esse sim, recusou ser Sísifo ou… Maria margarida Mascarenhas. Um septuagenário, cansado de cuidar da mulher doente e em estado vegetal, talvez apercebendo-se da inutilidade do seu esforço e do vazio de sentido da sua vida, matou-a e suicidou-se a seguir. Não é inédito, muitos casos semelhantes têm acontecido e vão continuar a ensombrar os nossos dias.
O “absurdo” da alegoria de Camus assume nos tempos que correm uma evidência ainda mais flagrante, com o Homo sapiens a dar razão a que se duvide de que o cosmos tenha sido feliz quando o privilegiou com a capacidade racional para reinar entre os outros seres da Criação. Numa era em que se esperava que o salto vertiginoso do progresso tecnológico alavancaria o homem para alturas superiores da sua clarividência, estamos a assistir precisamente ao inverso. Um pouco por todo o lado, emergem inumeráveis narrativas sobre a sordidez da natureza humana: guerras por motivos fúteis; barbárie; genocídios; massacres; execuções em massa; tráfico de seres humanos; escravidão sexual; tortura; etc. Este milénio parece apostado em demonstrar que a mente humana está mais próxima do cérebro reptiliano do que podemos imaginar. Assistimos ao paradoxo de as manifestações primárias daquele cérebro serem sadicamente divulgadas pelas tecnologias criadas precisamente pelo cérebro racional: câmaras de filmar, televisão, facebook, etc. A racionalidade devia ser o comando firme e esclarecido da  mente e a emoção o tempero equilibrador da alma, mas a simbiose entre as duas virtudes parece tão contingente quanto o seria nos primeiros passos da humanidade. As exasperação e o desnorte crescem, a questão filosófica central no pensamento de Camus mantém uma impressionante actualidade.
Assim, neste cenário de um mundo desprovido de sentido, coerência e unidade, é angustioso o dilema da  existência que se coloca ao homem, confrontado  com os limites da sua razão e a inquietação metafísica sobre o seu destino. Perante isto restar-lhe-ia o suicídio face à perda de sentido da sua vida. Será? Não, para Camus o suicido não será a melhor resposta ao “absurdo” da nossa condição, pois que cortar o fio da existência não resolve o problema. Entende que a assunção de um estado de  “revolta” é a atitude correcta porque aviva no homem a consciência de si próprio e estimula-lhe o inconformismo e a recusa obstinada às armadilhas do quotidiano e às servidões e ameaças a que está sujeito. Se uma atitude de revolta contra o “absurdo” não garante conforto e tranquilidade ao homem, coloca-o porém no “cume vertiginoso” que para Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo. Pois foi assim que Sísifo descobriu que “a lucidez que devia constituir a sua tortura ao mesmo tempo coroa a sua vitória”. O escritor-filósofo diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”. Tentando compreender a lógica do “homem absurdo”, Camus propõe assim a sua moral, deixando-nos pistas para responder às perplexidades, terrores e angústias que assaltam o nosso quotidiano, seja à escala das vivências individuais, seja à escala dos grandes desafios colectivos.
Quem é verdadeiramente o Homo sapiens? Quais são os limites da sua racionalidade?
A dado passo do meu diálogo com a Maria Margarida sobre esta problemática, lembrei-lhe estas palavras de Kant: “o nosso entendimento cria as suas leis, não a partir da natureza, mas prescreve-as à natureza”. E então contei-lhe que certo dia um cão aproximou-se de mim (estava eu sentado num jardim) e por momentos olhou-me de uma forma tão estranha e penetrante que me perguntei se aquele animal dito irracional não apreende coisas do mundo natural que escapam aos meus sentidos. Teria ele momentaneamente captado a essência do meu ser? A diferença entre mim e o animal estará apenas na capacidade de elaboração e sistematização do que vejo, enquanto ele deve chegar a alguma dimensão que me é interdita? O Criador deu ao homem a capacidade racional mas em troca lhe sonegou alguns poderes concedidos a outros seres considerados inferiores? Com estas incógnitas, concluí eu, de nada vale cortar pelas nossas mãos o fio que nos liga à existência. É que pouco sabemos de nós e do mundo natural para taparmos os ouvidos ao chamamento interior da nossa consciência.  
Acredito que a alma da minha amiga se tenha acolhido na eternidade, lá onde existe aquela infinita dimensão do Tempo que ela incessantemente procurou.
(1) As palavras e expressões entre aspas referem-se ao livro O Mito de Sísifo, de Alberto Camus, exceptuando a transcrição dos excertos de textos da Maria Margarida Salomão Mascarenhas.

Tomar, Maio de 2015
Adriano Miranda Lima

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