Sem nenhum propósito a comandar-me, a minha
atenção fixou-se, mais do que habitualmente, numa senhora idosa que passava na
rua com um grande ramo de flores. Mais adiante, num jovem casal que conversava animadamente
numa esplanada, e, mesmo ao lado, numa petiza sentada num cavalinho eléctrico
estacionário instalado frente ao mesmo estabelecimento. Perguntei-me então por
que motivo o meu olhar interior se focalizou com inusitada atenção naquelas
cenas do trivial quotidiano, réplicas tão naturais do simples acto de
viver que nem sequer nos damos por elas,
de tantas vezes repetidas.
Mas não, neste dia o binómio senhora
idosa-ramo de flores revelou-se-me, como se
pela primeira vez, uma ligação biunívoca entre o homem e a natureza que
cada vez mais escapa à nossa moderna e frívola sensibilidade. O jovem casal
representou-se-me a continuidade da vida, a promessa de futuro, nos tempos em
que este se cobre de tons sombrios sem, no entanto, o banirmos dos nossos sonhos
assimétricos. A petiza ao cavalinho eléctrico pareceu-me a revelação de que a
fantasia infantil talvez seja o último resguardo da nossa autenticidade.
Mas se todo este repertório do nosso mundo
sensível afinal existe, por que é que só hoje o “vi”? Pertencem a um universo
paralelo só apreensível aos que são dotados de percepções extra-sensoriais? Por
aí não vou. Integram um universo real que só nos passa “despercebido” porque
anestesiamos a nossa percepção do mundo que nos rodeia à custa de se repetirem
exaustivamente os mesmos estímulos exteriores? Quero perfilhar esta última
hipótese. De facto, as nossas reacções são regidas por um certo automatismo
que, operando no inconsciente, tende a bloquear a nossa capacidade dialéctica
com o mundo sensível. Deve ser este o caso. Assim se explica que até as coisas mais extravagantes que desfilam
aos nossos olhos tendem a banalizar-se e a serem ignoradas ao fim de um certo
tempo, se constantemente repetidas. É o resultado de um processo de contínuo
amortecimento da nossa sensibilidade. Um exemplo disso é o cortejo de desgraças
que a televisão nos despeja a toda a hora sem que a nossa consciência sofra
hoje em dia um verdadeiro sobressalto.
E então cabe perguntar que relação tenho eu
com cada um dos pequenos universos que observamos, ou não observamos, todos os
dias. O mesmo é querer saber se a senhora idosa deslumbrada com as suas flores,
o jovem casal prazeroso com a vida e a menina embevecida à sela do seu
cavalinho imaginário, assim como as desgraças do mundo, querer saber, dizia eu,
se são partículas de universos autónomos ou se são parte do meu universo
individual. Mesmo que peque por presunção intelectual, quero acreditar que integram o meu universo
egocêntrico, ou antropocêntrico, se preferirmos. A nossa existência devia ser
auspiciosamente concêntrica, presidida
por uma lógica de centralidade para a
qual nos convergiríamos. Só que tendemos, com o hábito e a rotina, a desligar a
tomada de ligação com o exterior, e só com a injunção de uma voltagem de retorno
é que conseguimos ocasionalmente fortalecer os circuitos internos que iluminam
o nosso espaço interior e nos permitem divisar todos os universos que
integramos.
Contudo, no fundo eu sou o centro do meu
universo e por muita afinidade que tenha – e tenho – com o que me rodeia, nada
tenho a ver intrinsecamente com o meu semelhante e o mesmo pode intuir cada
pessoa. Resta é saber em que medida os diversos egocentrismos são capazes de
formar um conjunto integrado e coerente que dê sentido à nossa existência
planetária. Porque seria razoável que os nossos universos individuais fossem
parcelas minúsculas dum universo maior e aglutinador. Só assim seria possível
uma dialéctica inteligente com o mundo sensível e encontrar respostas para
superar as nossas fragilidades e limitações naturais. Dir-se-á então que isso
seria um imperativo da nossa racionalidade, sem o que nos limitamos à infrene
gestão do trivial e a não passarmos de simples escravos das nossas inclinações
primárias.
Hoje, parecemos rodeados
de universos paralelos que nos são antagónicos, como o chamado Estado Islâmico
e o Capitalismo selvagem, sem que aparentemente lhes consigamos opor o trunfo
da nossa racionalidade. E é quando nos voltamos a interrogar sobre a casualidade
associada à teoria evolucionista, pelo menos na leitura que dela faz Edgar
Morin, no pressuposto de que para o evolucionismo a inteligência é um mero
produto que evoluiu num organismo vivo, sendo imprevisível a metamorfose da
morfologia cerebral e do entrelaçamento dos seus neurónios conducentes a uma
inteligência e a uma espiritualidade superiores. Em campo oposto, estão os que
se perguntam se a inteligência não será também produto de faculdades psíquicas,
exteriores ao homem, e que por isso transcendem
a nossa percepção racional e nada têm a ver com o organismo físico. Mas, se
assim é, de onde virão
essas capacidades? Este entendimento nos levará ao encontro da tese da
predestinação do homem, logo a recuperar a teoria do universo geocêntrico,
doravante numa perspectiva estritamente espiritual, o que por enquanto escapa à
nossa razão.
Tomar, 5 de Abril de 2015
Adriano Miranda Lima
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