Este
tema tem sido badalado nos últimos dias, interpelando o sentido da nossa
humanidade e a nossa espiritualidade.
No
ano passado, no mês de Maio, desloquei-me a S. Vicente/Cabo Verde, minha ilha
natal, para estar presente numa altura em que, a minha mãe, aos 92 anos, sofrendo
de doença grave pouco tempo antes detectada (cancro no pâncreas), estava acamada
e a aguardar o desfecho final. Depois de ter estado internada no hospital, os
médicos decidiram que ela devia regressar a casa porque o único tratamento ali
ministrado podia ser prosseguido em casa: medicamentação para aliviar as dores,
cuidados paliativos, como hoje se diz.
Num
estado de semi-inconsciência, ela ainda me reconheceu quando cheguei, mas não
tardaria a perder a noção do que a rodeava. Pelas informações que fui recebendo
enquanto estive ausente, o súbito agravamento do seu estado convencera-me de
que tinha de viajar sem demora, sob pena de não chegar a tempo do funeral, dado
que, com a sua avançada idade, a morte podia ocorrer a todo o momento. No
entanto, assim não aconteceu. Ela ainda resistiu 21 dias desde a minha chegada,
o que me proporcionou o conforto espiritual de lhe fazer uma companhia que,
embora em circunstância dolorosa, tinha para mim um significado muito especial:
no momento derradeiro, estar presente e desejar que a minha mãe permanecesse
viva o mais que pudesse.
Mas
aí é que podem emergir sentimentos contraditórios. Sentir o enlevo da presença
de um ente querido e ao mesmo tempo assistir angustiosamente ao seu sofrimento,
sabendo-o uma tortura de que só a morte é capaz de libertar. Interrogar-se
também sobre qual será o desejo que o doente acalenta lá no fundo da sua
semi-inconsciência quando, como era o caso da minha progenitora, não era
possível qualquer comunicação verbal ou minimamente sinalizada.
O
que eu senti, eu, Adriano, e toda a família, é que seríamos de todo incapazes
de autorizar qualquer forma de eutanásia, mesmo que a mãe, estando consciente,
o desejasse. No entanto, no que a mim toca, se um dia vier a estar em
semelhante situação, desejarei, pelo contrário, que os meus familiares
autorizem o termo do sofrimento. Mas o que desejarei para mim não o projecto
para outros.
Eis
uma questão verdadeiramente controversa e difícil de ser avaliada sob uma
perspectiva jurídica sem que a nossa consciência ético-moral e os fundamentos
da nossa espiritualidade não reclamem primazia.
No
entanto, em Portugal, no dealbar do século passado, a eutanásia era praticada
nas remotas aldeias serranas. Escreve o Aquilino Ribeiro na sua obra “Geografia
Sentimental” que essa prática era usual naquele tempo. Quando um idoso, em fim
de vida, se apresentava doente, em grande sofrimento, sem esperança, a família
chamava o “abafador”, um homem que se prestava ao acto de abreviar o sofrimento
de outrem. E Aquilino descreve a cena: na sala, o mulherio aguarda em silêncio;
entra o “abafador” e, sem palavra, dirige-se ao quarto do paciente que, à
vista, começa a gemer; o outro, às cavalitas, tapa-lhe o rosto com a almofada e
pressiona até que a imobilidade sucede ao estertor. Consumada a tarefa e pago,
o “abafador” sai e o mulherio rompe em choro lastimoso: “ai coitadinho, ai
coitadinho…”.
Mais
de um século depois, interrogamo-nos sobre o que verdadeiramente evoluiu
positivamente em termos civilizacionais. Os recursos da ciência médica para
aliviar o sofrimento do doente terminal? Certamente que sim. Os fundamentos da
nossa consciência ético-moral em relação aos tempos transactos? Provavelmente
não.
Tomar,
13 de Março de 2012
Adriano
Miranda Lima
0 comentários:
Enviar um comentário