Eleições Presidenciais ̶ uma abordagem inquietante

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Fiquei triste. Muito triste mesmo. Não só porque não esperava, mas sobretudo pelos resultados em si próprios desequilibrados tendo em conta o suposto apoio do partido que ele, Carlos Veiga, ajudou a fundar e que acabara de sair vitorioso, ainda há bem poucos meses, de uma disputa eleitoral, bem como o histórico das anteriores eleições presidenciais, designadamente, o “score” das suas duas anteriores participações.

Procurei as razões da minha inquietação e indagação, e detive-me, para começar, em alguns argumentos que subliminarmente alguns notáveis do MpD tentavam fazer passar – o desniveladíssimo ponto de partida nas sondagens em desfavor de Carlos Veiga e o desconhecimento do currículo do candidato (CV) pelo eleitorado, devido à juventude deste.

O primeiro ponto – facilmente desmontável – não tinha suporte objectivo real estando muito longe da verdade, representando uma grosseira manipulação, sobretudo se comparado com o ponto de partida de alguns candidatos vencedores em eleições anteriores; o segundo, associado a um oculto, mas perverso efeito boomerang, apoiava-se no absoluto desconhecimento da juventude da História recente do seu País e do papel de Carlos Veiga e do MpD na edificação da Liberdade e da Democracia.

O MpD não surgiu do nada. Tem a sua génese na imperiosidade de uma luta para derrubar uma ditadura liderada por um “Movimento armado” que se instalara no País e que se legitimava baseando-se numa narrativa heróica de uma luta que se fizera num outro país. Uma narrativa, primeiro, aceita acriticamente pela actual “administração”[1] do MpD e depois, adoptada de forma leviana como sendo também sua, ao considerá-la pertença do Estado, distinguindo e homenageando as suas figuras proeminentes em vez de lhes dar combate político respondendo ao objectivo para o qual fora criado; e não contente com isto, ignorou, secundarizou e chegou mesmo a reduzir e menosprezar o seu papel na conquista da liberdade e da democracia do povo cabo-verdiano e o impacto dessa conquista no desenvolvimento e na imagem política do País no mundo.

Durante a Ditadura a preocupação máxima da governação residiu na consolidação do regime autoritário com ênfase, em dois pontos basilares, a saber:

1.    Reforço do refinamento dos meios de repressão, a chamada “segurança”, funcionando como ameaça permanente para a dissuasão, e operando sem qualquer hesitação, sempre que lhe pareceu necessário para garantir a subordinação, a obediência e o silêncio da população;

2.    Formação ideológica das novas gerações através da Educação moldando-lhes a mente para, à boa maneira marxista-leninista, criar uma ideologia do Estado.

Foi com esta lógica de dominação totalitária e com uma preocupação meramente ideológica que o então poder, porque projectado para longo prazo, incumbiu à JAAC-CV a sua organização para a juventude – do controlo ideológico da Juventude e criou a Escola de Formação de Professores com o propósito mais de moldar mentalidades do que de transmitir conhecimentos, como se poderá ver dos seguintes extractos de documentos então produzidos:

Ø  “Sendo os estabelecimentos de ensino uma das principais plataformas de concepção, orientação e difusão da ideologia, com uma responsabilidade enorme na modelação da consciência política e social dos alunos e estudantes, cremos, por um lado, ser um objectivo prioritário o recrutamento selectivo e o enquadramento político dos corpos docentes e das direcções das nossas escolas;”

Ø  “Um dos principais veículos de formação ideológica é o sistema de ensino por onde passa praticamente toda a nova geração. Há, pois, que dar atenção especial ao conteúdo dos programas escolares, bem assim, à formação ideológica dos professores[2]

Ø  “…há que desenvolver, de modo independente, uma intensa acção ideológica junto dos alunos e estudantes, através de uma estrutura estudantil solidamente organizada e ideológica e politicamente sob controlo da JAAC-CV[3]

Esta breve abordagem à nossa História mais recente é apenas para lembrar que Carlos Veiga foi dela um dos rostos mais visíveis se não o mais visível. Foi aquele que protagonizou a mudança de regime do tipo estalinista para uma democracia liberal em que hoje vivemos. E esquecê-lo é desconhecer, é lesar a História e ignorar o que recentemente fomos e o que agora somos.

É preciso dizer ao jovem eleitorado cabo-verdiano, ou fazê-lo saber, que a Independência, sem liberdade e sem democracia, pouco mais foi do que a substituição da Ditadura do Estado Novo (português) por uma outra do mesmo quilate, desta feita, protagonizada por actores cabo-verdianos. Ela não significou para os cabo-verdianos, nem formalmente nem na realidade quotidiana, o fim da opressão, da repressão, da polícia política, da tortura, das prisões arbitrárias, da perseguição política, da censura, do exílio na base de uma ideologia, nem tão pouco a conquista da liberdade  ̶  de expressão, da cidadania plena, de circulação, da inclusão da emigração na Nação, de assumpção da múltipla nacionalidade, entre outras  ̶  ou da democracia  ̶  eleições livres e transparentes, participações de partidos políticos, da livre escolha do nosso destino.

Não pode o MpD subordinar os seus “protagonistas” da “Liberdade e da Democracia” aos da “Independência”. A liberdade é a mais preciosa condição do ser humano. É ela que lhe faculta o direito à autodeterminação e a opção pela independência real e não o contrário.

Nesta caminhada para a implantação da Democracia, Carlos Veiga obteve duas maiorias qualificadas, representando a primeira, inquestionavelmente, uma rejeição absoluta do regime ditatorial então em vigor cujos protagonistas os novos dirigentes do MpD e o próprio MpD hoje veneram e prestam vassalagem. Até parece que estão todos contaminados com a síndrome de Estocolmo.

Chegado a este ponto julgo que alegar que o fraco resultado da votação em Carlos Veiga seria o facto de ele “já não ser conhecido” pela maior parte do eleitorado cabo-verdiano devido à juventude deste, não abona muito para o partido do Governo. Além de ser uma afronta para o próprio MpD que não se acautelou em promover (historicamente) os seus dirigentes que lutaram e correram riscos pela “Liberdade e Democracia”, é também uma vergonha, sabendo que dava grandes visibilidades, protagonismos e muita cumplicidade a outras figuras pertencentes a outras áreas políticas e também afastadas de funções de relevo no Estado. Tudo isto enquanto permitia que figurassem heroicamente nos manuais escolares.

A História, sempre ouvi dizer, não julga, como pretendem certos paladinos da “negritude”; analisa, avalia e interpreta os factos correlacionando-os. Estes devem ser os mais correctos e objectivos possíveis, para permitir que ela, a História, cumpra a sua função, o que não acontece nas orientações formais e nos conteúdos programáticos do nosso actual sistema de ensino.

Carlos Veiga, nisto, não está totalmente isento de culpas. Aceita-se, no entanto, que os seus dois Governos, preocupados e concentrados na gigantesca tarefa de implantação e formalização de um regime livre e democrático se tenham descuidado e negligenciado o desmantelamento e a neutralização da terrível e fatídica máquina de propaganda e de lavagem cerebral que constituía a Educação na maquiavélica missão de criar uma ideologia de Estado.

O que não se pode compreender nem aceitar é que, durante os tranquilíssimos quinze anos do exercício da oposição mais os quase seis que já tem de governação, o MpD tenha mantido esse alheamento e essa inércia ou apatia sobre assunto tão importante para a formação de uma sociedade livre, pensante e verdadeiramente democrática.

É óbvio que os fracos resultados de CV nas recentes presidenciais não podem residir nem na juventude do eleitorado nem da popularidade no momento de partida da disputa eleitoral. São, na maior parte, da responsabilidade da actual direcção do MpD a qual tem faltado hombridade e dignidade para os assumir endossando-os totalmente através de mesquinhas e obscuras manobras manipuladoras ao próprio candidato, embora este não esteja isento de alguns erros e culpas.

Não sejamos inocentes e não nos respaldemos em quaisquer eufemismos: Toda a manobra do MpD, configura uma “traição” em toda a sua extensão por total negligência ou incompetência, ou puro maquiavelismo. Não é de afastar ainda a cobrança mesquinha de frustrações, pequenas birras e pueris invejas pessoais, como forma de reacção à determinação de Veiga em se candidatar à “revelia” do partido.

Uma análise mais cuidada até mostra que nem sequer os meios de comunicação – no mais lato sentido – tidos como afectos ao MpD lhe deram – ao candidato Carlos Veiga – qualquer relevo simulando, quase todos, uma pretensa equidistância. Equidistância que em política, ou é ingenuidade ou é má-fé, ou um táctico distanciamento.

O comportamento do MpD não esconde que o candidato Carlos Veiga (CV) não fazia parte dos seus planos nem da sua agenda. Esperaram sempre que CV não se atrevesse a ir sem o prévio apoio/acordo do MpD. Foram surpreendidos com: “Com ou sem apoio partidário, eu serei candidato!”. Quando, o que devia ter acontecido, como obrigação, dado o estatuto de Carlos Veiga no partido, seria proclamar, com a devida antecedência: “se Carlos Veiga for candidato, é óbvio que ele terá todo o apoio do MpD!”

É claro que isto não aconteceu porque era uma agenda indesejada que bulia com interesses pessoais e esconsos arranjos internos. Em vez disso o partido calou-se. E quando falou, fê-lo com alguma ambiguidade e timidez, primeiro pelo seu presidente em nome pessoal e muito mais tarde, do apoio do partido.

Mas o apoio partidário nas eleições presidenciais não é apenas comparecer nos comícios e proclamar apoio. Ou fingir ir ao terreno e não diligenciar qualquer movimento, directiva ou orientação, como se diz ter acontecido com alguns espectáveis dirigentes do MpD. Não se trata de apoios de personalidades individualmente, mas de uma colectividade, de um partido ao qual está umbilicalmente ligado.

Os militantes não são carneiros. E muito menos o serão os simpatizantes. Não votam porque o presidente do Partido ou qualquer outro dirigente o determinou. Era preciso pôr as estruturas do Partido no terreno, ir aos sítios mais recônditos como o faz nas legislativas, a esclarecer da bondade do candidato e do porque é que o Partido o apoiava, como aliás, o MpD dirigido por Carlos Veiga sempre fez no apoio às candidaturas presidenciais declarado pelo partido. Era o mínimo que o partido deveria fazer por Carlos Veiga.

E o MpD não o fez! E ainda por cima cometeu o erro crasso, que o candidato consentiu, de o colar ao Governo enquanto este alegre e hipocritamente convidava a população a um exercício de puro masoquismo, cometendo “com muita oportunidade” a proeza de aumentar o preço dos bens essenciais a partir da abrupta subida, do preço da água e da electricidade, bem como do IVA. Esta é daquelas que se diz que “não lembra ao diabo”. Foi uma tirada de génio. Brilhante! A cereja no topo do bolo. Quem tem amigos destes, seguramente que não tem inimigos, porque não são necessários.

Depois da tragédia vem a farsa – repartir ardilosamente o odioso com o ARME como se as instituições do Estado fossem dirigidas de forma acéfala e mecânica; quando é sabido que as decisões dessas instituições – nomeadas pelo Governo – são fruto de ponderação de múltiplos parâmetros com a consulta prévia a várias organizações, designadamente, o Governo.

E não podem ignorar negligentemente as circunstâncias políticas, mormente quando se trata de situações transitórias e datadas – de muito curta duração – que são as campanhas eleitorais. Independência ou autonomia não significa irresponsabilidade ou inimputabilidade.

É só perguntar se seriam capazes, em plenas eleições legislativas, de fazer a subida dos preços dos bens essenciais como a que fizeram?

Por favor, tenham algum respeito pela nossa ignorância!...

Costuma-se dizer “quem com ferros mata, com ferros há-de morrer! Não é um desejo nem uma premonição. Apenas um aviso…

Resta-me aqui felicitar o novo Presidente da República e desejar-lhe sucessos plenos no desempenho das suas funções. O sucesso dele será o de Cabo Verde, o de todos nós.

A.   Ferreira



[1] Terminologia usada com muita propriedade numa lúcida análise de Alte Pinho sobre as recentes eleições.

[2] In “O trabalho ideológico do Partido”, documento aprovado no 2º Congresso do PAICV, a 27 de Junho de 1983, páginas 19 2 20 (Extraído de “A «Democracia» Nacional Revolucionária”  ̶  José Tomaz W. Veiga- Edição Livraria Pedro Cardoso – 2020)

 [3] In “Informação”, Boletim interno editado pelo departamento de acção ideológica do secretariado do CN do PAICV, Outubro de 1988, página 44. (Extraído de “A «Democracia» Nacional Revolucionária”  ̶  José Tomaz W. Veiga- Edição Livraria Pedro Cardoso – 2020)

 

 

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