Fiquei
triste. Muito triste mesmo. Não só porque não esperava, mas sobretudo pelos
resultados em si próprios desequilibrados tendo em conta o suposto apoio do
partido que ele, Carlos Veiga, ajudou a fundar e que acabara de sair vitorioso,
ainda há bem poucos meses, de uma disputa eleitoral, bem como o histórico das
anteriores eleições presidenciais, designadamente, o “score” das suas duas
anteriores participações.
Procurei
as razões da minha inquietação e indagação, e detive-me, para começar, em
alguns argumentos que subliminarmente alguns notáveis do MpD tentavam fazer
passar – o desniveladíssimo ponto de partida nas sondagens em desfavor de
Carlos Veiga e o desconhecimento do currículo do candidato (CV) pelo
eleitorado, devido à juventude deste.
O
primeiro ponto – facilmente desmontável – não tinha suporte objectivo real
estando muito longe da verdade, representando uma grosseira manipulação, sobretudo
se comparado com o ponto de partida de alguns candidatos vencedores em eleições
anteriores; o segundo, associado a um oculto, mas perverso efeito boomerang,
apoiava-se no absoluto desconhecimento da juventude da História recente do seu
País e do papel de Carlos Veiga e do MpD na edificação da Liberdade e da
Democracia.
O
MpD não surgiu do nada. Tem a sua génese na imperiosidade de uma luta para
derrubar uma ditadura liderada por um “Movimento armado” que se instalara no
País e que se legitimava baseando-se numa narrativa heróica de uma luta que se fizera
num outro país. Uma narrativa, primeiro, aceita acriticamente pela actual
“administração”[1]
do MpD e depois, adoptada de forma leviana como sendo também sua, ao
considerá-la pertença do Estado, distinguindo e homenageando as suas figuras
proeminentes em vez de lhes dar combate político respondendo ao objectivo para
o qual fora criado; e não contente com isto, ignorou, secundarizou e chegou
mesmo a reduzir e menosprezar o seu papel na conquista da liberdade e da
democracia do povo cabo-verdiano e o impacto dessa conquista no desenvolvimento
e na imagem política do País no mundo.
Durante
a Ditadura a preocupação máxima da governação residiu na consolidação do regime
autoritário com ênfase, em dois pontos basilares, a saber:
1. Reforço
do refinamento dos meios de repressão, a chamada “segurança”, funcionando como
ameaça permanente para a dissuasão, e operando sem qualquer hesitação, sempre
que lhe pareceu necessário para garantir a subordinação, a obediência e o
silêncio da população;
2. Formação
ideológica das novas gerações através da Educação moldando-lhes a mente para, à
boa maneira marxista-leninista, criar uma ideologia do Estado.
Foi
com esta lógica de dominação totalitária e com uma preocupação meramente
ideológica que o então poder, porque projectado para longo prazo, incumbiu à
JAAC-CV – a sua organização para a juventude – do
controlo ideológico da Juventude e criou a Escola de Formação de Professores com
o propósito mais de moldar mentalidades do que de transmitir conhecimentos,
como se poderá ver dos seguintes extractos de documentos então produzidos:
Ø “Sendo os
estabelecimentos de ensino uma das principais plataformas de concepção,
orientação e difusão da ideologia, com uma responsabilidade enorme na modelação
da consciência política e social dos alunos e estudantes, cremos, por um lado, ser
um objectivo prioritário o recrutamento selectivo e o enquadramento político
dos corpos docentes e das direcções das nossas escolas;”
Ø “Um dos principais veículos de formação
ideológica é o sistema de ensino por onde passa praticamente toda a nova
geração. Há, pois, que dar atenção especial ao conteúdo dos programas
escolares, bem assim, à formação ideológica dos professores”[2]
Ø “…há que desenvolver, de modo
independente, uma intensa acção ideológica junto dos alunos e estudantes,
através de uma estrutura estudantil solidamente organizada e ideológica e
politicamente sob controlo da JAAC-CV”[3]
Esta breve abordagem à nossa História mais recente
é apenas para lembrar que Carlos Veiga foi dela um dos rostos mais visíveis se
não o mais visível. Foi aquele que protagonizou a mudança de regime do tipo estalinista
para uma democracia liberal em que hoje vivemos. E esquecê-lo é desconhecer, é
lesar a História e ignorar o que recentemente fomos e o que agora somos.
É
preciso dizer ao jovem eleitorado cabo-verdiano, ou fazê-lo saber, que a
Independência, sem liberdade e sem democracia, pouco mais foi do que a substituição
da Ditadura do Estado Novo (português) por uma outra do mesmo quilate, desta
feita, protagonizada por actores cabo-verdianos. Ela não significou para os
cabo-verdianos, nem formalmente nem na realidade quotidiana, o fim da opressão,
da repressão, da polícia política, da tortura, das prisões arbitrárias, da perseguição
política, da censura, do exílio na base de uma ideologia, nem tão pouco a
conquista da liberdade ̶ de expressão, da cidadania plena, de circulação,
da inclusão da emigração na Nação, de assumpção da múltipla nacionalidade,
entre outras ̶ ou da democracia ̶
eleições livres e transparentes, participações de partidos políticos, da
livre escolha do nosso destino.
Não
pode o MpD subordinar os seus “protagonistas” da “Liberdade e da Democracia”
aos da “Independência”. A liberdade é a mais preciosa condição do ser humano. É
ela que lhe faculta o direito à autodeterminação e a opção pela independência
real e não o contrário.
Nesta
caminhada para a implantação da Democracia, Carlos Veiga obteve duas maiorias
qualificadas, representando a primeira, inquestionavelmente, uma rejeição
absoluta do regime ditatorial então em vigor cujos protagonistas os novos
dirigentes do MpD e o próprio MpD hoje veneram e prestam vassalagem. Até parece que estão todos contaminados com
a síndrome de Estocolmo.
Chegado
a este ponto julgo que alegar que o fraco resultado da votação em Carlos Veiga
seria o facto de ele “já não ser conhecido” pela maior parte do eleitorado
cabo-verdiano devido à juventude deste, não abona muito para o partido do
Governo. Além de ser uma afronta para o próprio MpD que não se acautelou em
promover (historicamente) os seus dirigentes que lutaram e correram riscos pela
“Liberdade e Democracia”, é também uma vergonha, sabendo que dava grandes
visibilidades, protagonismos e muita cumplicidade a outras figuras pertencentes
a outras áreas políticas e também afastadas de funções de relevo no Estado.
Tudo isto enquanto permitia que figurassem heroicamente nos manuais escolares.
A
História, sempre ouvi dizer, não julga, como pretendem certos paladinos da “negritude”;
analisa, avalia e interpreta os factos correlacionando-os. Estes devem ser os
mais correctos e objectivos possíveis, para permitir que ela, a História, cumpra
a sua função, o que não acontece nas orientações formais e nos conteúdos
programáticos do nosso actual sistema de ensino.
Carlos
Veiga, nisto, não está totalmente isento de culpas. Aceita-se, no entanto, que
os seus dois Governos, preocupados e concentrados na gigantesca tarefa de implantação
e formalização de um regime livre e democrático se tenham descuidado e negligenciado
o desmantelamento e a neutralização da terrível e fatídica máquina de
propaganda e de lavagem cerebral que constituía a Educação na maquiavélica missão
de criar uma ideologia de Estado.
O
que não se pode compreender nem aceitar é que, durante os tranquilíssimos
quinze anos do exercício da oposição mais os quase seis que já tem de
governação, o MpD tenha mantido esse alheamento e essa inércia ou apatia sobre
assunto tão importante para a formação de uma sociedade livre, pensante e
verdadeiramente democrática.
É
óbvio que os fracos resultados de CV nas recentes presidenciais não podem residir
nem na juventude do eleitorado nem da popularidade no momento de partida da
disputa eleitoral. São, na maior parte, da responsabilidade da actual direcção
do MpD a qual tem faltado hombridade e dignidade para os assumir endossando-os totalmente
através de mesquinhas e obscuras manobras manipuladoras ao próprio candidato,
embora este não esteja isento de alguns erros e culpas.
Não
sejamos inocentes e não nos respaldemos em quaisquer eufemismos: Toda a manobra
do MpD, configura uma “traição” em toda a sua extensão por total negligência ou
incompetência, ou puro maquiavelismo. Não é de afastar ainda a cobrança
mesquinha de frustrações, pequenas birras e pueris invejas pessoais, como forma
de reacção à determinação de Veiga em se candidatar à “revelia” do partido.
Uma
análise mais cuidada até mostra que nem sequer os meios de comunicação – no mais
lato sentido – tidos como afectos ao MpD lhe deram – ao candidato Carlos Veiga
– qualquer relevo simulando, quase todos, uma pretensa equidistância.
Equidistância que em política, ou é ingenuidade ou é má-fé, ou um táctico
distanciamento.
O
comportamento do MpD não esconde que o candidato Carlos Veiga (CV) não fazia
parte dos seus planos nem da sua agenda. Esperaram sempre que CV não se atrevesse
a ir sem o prévio apoio/acordo do MpD. Foram surpreendidos com: “Com ou sem
apoio partidário, eu serei candidato!”. Quando, o que devia ter acontecido, como
obrigação, dado o estatuto de Carlos Veiga no partido, seria proclamar, com a
devida antecedência: “se Carlos Veiga for candidato, é óbvio que ele terá todo o
apoio do MpD!”
É
claro que isto não aconteceu porque era uma agenda indesejada que bulia com interesses
pessoais e esconsos arranjos internos. Em vez disso o partido calou-se. E
quando falou, fê-lo com alguma ambiguidade e timidez, primeiro pelo seu presidente
em nome pessoal e muito mais tarde, do apoio do partido.
Mas
o apoio partidário nas eleições presidenciais não é apenas comparecer nos
comícios e proclamar apoio. Ou fingir ir ao terreno e não diligenciar qualquer movimento,
directiva ou orientação, como se diz ter acontecido com alguns espectáveis
dirigentes do MpD. Não se trata de apoios de personalidades individualmente,
mas de uma colectividade, de um partido ao qual está umbilicalmente ligado.
Os
militantes não são carneiros. E muito menos o serão os simpatizantes. Não votam
porque o presidente do Partido ou qualquer outro dirigente o determinou. Era
preciso pôr as estruturas do Partido no terreno, ir aos sítios mais recônditos
como o faz nas legislativas, a esclarecer da bondade do candidato e do porque é
que o Partido o apoiava, como aliás, o MpD dirigido por Carlos Veiga sempre fez
no apoio às candidaturas presidenciais declarado pelo partido. Era o mínimo que
o partido deveria fazer por Carlos Veiga.
E o
MpD não o fez! E ainda por cima cometeu o erro crasso, que o candidato
consentiu, de o colar ao Governo enquanto este alegre e hipocritamente
convidava a população a um exercício de puro masoquismo, cometendo “com muita
oportunidade” a proeza de aumentar o preço dos bens essenciais a partir da abrupta
subida, do preço da água e da electricidade, bem como do IVA. Esta é daquelas
que se diz que “não lembra ao diabo”. Foi uma tirada de génio. Brilhante! A
cereja no topo do bolo. Quem tem amigos destes, seguramente que não tem
inimigos, porque não são necessários.
Depois
da tragédia vem a farsa – repartir ardilosamente o odioso com o ARME como se as
instituições do Estado fossem dirigidas de forma acéfala e mecânica; quando é
sabido que as decisões dessas instituições – nomeadas pelo Governo – são fruto
de ponderação de múltiplos parâmetros com a consulta prévia a várias organizações,
designadamente, o Governo.
E não
podem ignorar negligentemente as circunstâncias políticas, mormente quando se
trata de situações transitórias e datadas – de muito curta duração – que são as
campanhas eleitorais. Independência ou autonomia não significa
irresponsabilidade ou inimputabilidade.
É só
perguntar se seriam capazes, em plenas eleições legislativas, de fazer a subida
dos preços dos bens essenciais como a que fizeram?
Por
favor, tenham algum respeito pela nossa ignorância!...
Costuma-se
dizer “quem com ferros mata, com ferros há-de morrer! Não é um desejo nem uma
premonição. Apenas um aviso…
Resta-me
aqui felicitar o novo Presidente da República e desejar-lhe sucessos plenos no
desempenho das suas funções. O sucesso dele será o de Cabo Verde, o de todos
nós.
A. Ferreira
[1] Terminologia usada com
muita propriedade numa lúcida análise de Alte Pinho sobre as recentes eleições.
[2] In “O trabalho ideológico do Partido”, documento aprovado no 2º Congresso do
PAICV, a 27 de Junho de 1983, páginas 19 2 20 (Extraído de “A «Democracia»
Nacional Revolucionária” ̶ José Tomaz W. Veiga- Edição Livraria Pedro
Cardoso – 2020)
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