Autoria:JOÃO Filipe DUARTE FONSECA
Geofísico, Vulcanólogo
e Professor Universitário
A 13 de Outubro
comemorou-se o Dia Internacional da Redução do Risco de Desastres. Por
coincidência, tive oportunidade de iniciar nesse dia uma breve visita à Chã das
Caldeiras, na Ilha do Fogo. Por altura da minha última estadia na Chã, em
Janeiro de 2015, decorria ainda a erupção que tivera início dois meses antes, e
imperava o choque e a consternação perante a devastação causada pelas escoadas
de lava nas povoações de Portela e Bangaeira.
Passados sete anos, a nova visita inspirou estas reflexões sobre as medidas
adoptadas desde a última erupção, feitas à luz da investigação em que venho
colaborando no campo da adaptação do património edificado ao risco vulcânico[1] .
Uma das vantagens da idade é permitir o confronto entre ocorrências
bastante separadas no tempo. Também em 1995 eu tive a oportunidade de
acompanhar a resposta de emergência à penúltima erupção e as medidas que se
seguiram com vista à normalização das condições de vida da população da Chã (e,
em 1951, pode-se dizer literalmente como na fábula do Lobo e do Cordeiro: “se
não foste tu, foi o teu pai”). Em comum, as duas experiências revelaram-me a
grande força anímica e resiliência do povo da Chã. Em contraste, é grato
registar que na ocorrência mais recente a resposta foi mais organizada e
eficaz, dando prioridade à recuperação do capital humano extraordinário que
pulsa diariamente na Chã das Caldeiras. Evitando os erros do passado, que
visavam impôr o abandono definitivo da Chã recorrendo à supressão de
infraestruturas básicas como a escola ou o posto sanitário, as medidas de apoio
agora tomadas pelas autoridades permitiram que em tempo recorde a Chã tenha
tirado partido da oportunidade criada pelo desastre, não só recuperando, mas
ultrapassando o grau de desenvolvimento em que a comunidade se encontrava em
2014.
Entre os exemplos notáveis da eficácia da recuperação conta-se a melhoria
da rede viária, estando quase a tornar-se realidade aquela que é a mais
importante medida de mitigação da vulnerabilidade vulcânica da Chã das
Caldeiras, a par com a monitorização geofísica (que o INMG tem levado a cabo de
modo exemplar e com reconhecimento internacional). Refiro-me à ligação ao
exterior através de uma segunda estrada, para Norte, terminando com a
indesejável “ratoeira” que é ter um único acesso viário exposto às escoadas de
lava. Mas os exemplos continuam: a construção de um edifício escolar condigno;
a realização de um furo para abastecimento de água; a introdução de iluminação
pública com recurso a energia solar, etc. Se bem que as restrições impostas
pela pandemia não tenham permitido ainda a plena retoma da actividade
turística, a vitalidade da população correspondeu à aposta na Chã, aumentando
significativamente a oferta de alojamento para visitantes, bem como o número de
restaurantes e bares. Vislumbra-se um futuro em que os visitantes dos vários
cantos do mundo se continuarão a maravilhar com a experiência única que é a
hospitalidade da população da Chã das Caldeiras.
Mas, inevitavelmente, existem riscos latentes (humanos, que os naturais são
evidentes) de que o progresso coloque em causa a galinha dos ovos de ouro da
oferta turística do Fogo. Estas notas de quem frequenta regularmente a Chã das
Caldeiras desde há 30 anos pretendem ser um aviso construtivo à navegação, na
esperança de que alguns aspectos menos consensuais possam ser reanalizados,
quiçá rectificados.
Um primeiro aspecto que salta à vista no reordenamento do território da Chã
é a preferência dada à Bangaeira para a reinstalação da população,
aparentemente com base no pressuposto de que a perigosidade vulcânica dessa
zona seria inferior à da Portela. Contudo, não se conhecem estudos científicos
que apontem nesse sentido, e tive pessoalmente oportunidade de coordenar um
mapeamento da perigosidade vulcânica realizado para as autoridades
Caboverdianas em 2014 (meses antes da última erupção) que contraria essa noção.
A própria erupção de 2014 se encarregou de mostrar que a Bangaeira está exposta
a escoadas provenientes do sector sul da Chã das Caldeiras, para lá da
exposição óbvia a escoadas provenientes do sector norte. Salvo melhor explicação,
aparenta ser desconcertante a preferência dada à região da Bangaeira, se o fito
dessa escolha foi a redução do risco vulcânico.
Outro risco de origem antrópica prende-se com o planeamento urbano, que ao
ter por base uma abordagem convencional da qualidade de vida da população pode
comprometer a atractividade da Chã das Caldeiras para o turismo, acabando assim
por lesar a qualidade de vida que se pretendeu promover. Nesse aspecto, pode
dizer-se que a Chã se está a tornar um laboratório para o estudo da
reabilitação pós-desastre. Do balanço entre o esforço de ordenamento do
território e o conservadorismo atávico da população, estão frente a frente no
terreno dois modelos de recuperação: na Bangaeira, metódico, planeado e com
tipologias contrutivas normalizadas, ditado por influências externas; na
Portela, expontâneo, orgânico, logo mais genuíno. Sem perder de vista o
imperativo de promover a qualidade de vida e as condições condignas para a
população, há que ponderar qual dos modelos melhor preserva a magia que tem
feito com que milhares de visitantes se encantem com a Chã das Caldeiras.
Regressando ao risco vulcânico: dada a a natureza predominantemente efusiva
das erupções históricas do Fogo, parece consensual que o principal fenómeno
adverso a ter em conta são as escoadas de lava. Contra estas, a medida de
protecção eficaz é a cota a que se edifica. Por outro lado, as características
da topografia da Chã impõem um delicado equilíbrio que tenha em conta o perigo
de queda de blocos rochosos da bordeira. Na procura desse equilíbrio, as
encostas do Monte Amarelo poderão proporcionar a melhor solução para as
infraestruturas mais vulneráveis. Constata-se aliás que no período em que a
estrada de emergência esteve em uso se verificou um primeiro impulso de construção
na encosta por onde essa estrada passava, mas que viria a ser preterido a favor
dos terrenos mais planos – logo, mais expostos - quando se abriu a nova estrada
através da recente escoada de lava. Talvez uma oportunidade perdida de
condicionar a localização do edificado através da implantação criteriosa das
infraestruturas?
Também a localização do furo de abastecimento de água a norte do Monte
Amarelo é potencialmente um factor determinante da fixação futura da população,
e por esse motivo a sua localização deveria ter tido em conta não só a
vulnerabilidade da própria infraestrutura, mas principalmente o efeito na
evolução da exposição da população. Desse ponto de vista, os manifestos
problemas associados à fraca qualidade da água podem ser uma oportunidade para
corrigir essa escolha. Com efeito, é sabido há várias décadas que o aquífero
existente a algumas centenas de metros de profundidade na Chã das Caldeiras é
altamente mineralizado devido à permanente emanação de gases vulcânicos através
da caldeira. Surpreendentemente, não tem sido explorada na Chã das Caldeiras a
abertura de túneis horizontais para captação de água no interior do maciço
rochoso da bordeira. A tímida experiência da galeria de Boca Fonte (próximo da
Portela), com cerca de 15m escavados no início do séc. 20, parece mostrar que
esse é o caminho para o abastecimento de água de qualidade na Chã das
Caldeiras. Haja em vista o sucesso que teve nos anos 80 do século passado a
abertura da galeria da Fajã em São Nicolau, com 200 metros de comprimento. E
não se receie que a exploração de água em altitude afecte os poços e nascentes
que existem perto do nível do mar: segundo um estudo levado a cabo pelos
Serviços Ggeológicos dos Estados Unidos[2], cerca de 99% da água que se infiltra nas
terras altas acaba por perder-se para o oceano através de nascentes submarinas.
A exploração de água através de túneis horizontais na bordeira permitiria
colocar essas importantes infraestruturas fora do alcance das escoadas de lava,
uma regra que deveria ser verificada em todas as instalações de natureza industrial
na Chã das Caldeiras.
Na fronteira entre a Portela e a Bangaeira, o bar Ramiro foi reabilitado,
sob coordenação da M_EIA. No seu interior, entre as paredes calcinadas pela
visita da lava, vê-se agora uma pequena biblioteca, mas continua a reinar o
Manecom. O pátio exterior permite um convívio mais desafogado, mas os filhos e
netos do inolvidável Sr. Djonzinho asseguram a continuidade das fabulosas jam
sessions musicais. No lado poente do pátio, um arco de pedra sustém o
amplexo da escoada de lava, autêntico monumento à resiliência dos homens e
mulheres da Chã, que dia a dia proclamam ao vulcão: “queremos o chão que é
teu!”. Possa este exemplo, imbuído de caboverdianidade e pleno de
sensibilidade, inspirar a reabilitação de toda a Chã das Caldeiras.
[1] Jenkins, S., Spence, R., Fonseca, J.,
Solidum, R. and Wilson, T. (2014). Volcanic risk assessment: Quantifying physical
vulnerability in the built environment. Journal of Volcanology and Geothermal
Research, 276, p. 105.
Jenkins, S., Day, S., Faria, B.V.E. and Fonseca, J.F.B.D. (2017). Damage
from lava flows: insights from the 2014–2015 eruption of Fogo, Cape Verde, Journal
of Applied Volcanology (Society and Volcanoes) 6(6)
- 1)[2]Heilweil, V.M., Earle, J.D.,
Cederberg, J.R., Messer, M.M., Jorgensen, B.E., Verstraeten, E.M., Moura,
M.A., Querido, A., Spencer, F. e Osório, T., (2006). Evaluation of
Baseline Ground-Water Conditions in the Mosteiros, Ribeira Paul, and
Ribeira Fajã Basins, Republic of Cape Verde, West Africa, 2005-06,
Scientific Investigations Report 2006-5207, United States Geological
Survey, Menlo Park, USA
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº
1039 de 27 de Outubro de 2021.
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