Caro Leitor: eis um tema que nunca perde actualidade e oportunidade. Leia o texto. Vale a pena. Foi transcrito do Jornal, «Expresso das Ilhas».
Não adiar o futuro com divisões[i]
Por Humberto Cardoso
Pela primeira vez num acto solene de
primeira grandeza como é o de investidura do presidente da república o discurso
do presidente eleito foi proferido num modo bilingue, parte em português, parte
em crioulo. Ninguém ficou grandemente surpreendido considerando que há muito
que o uso da língua materna cabo-verdiana pelos titulares dos órgãos de
soberania é corriqueiro no país. O PR, o PM, os ministros e os deputados em
várias circunstâncias fazem declarações, debatem no parlamento e dirigem-se às
pessoas e ao país em crioulo, usando as diferentes variantes conforme a
audiência ou a origem do orador. Os cidadãos também podem tratar os seus
assuntos com administração pública e depor nos tribunais em crioulo. A língua é
falada de forma generalizada no país por todos os estratos sociais e é um
instrumento fundamental de expressão da alma cabo-verdiana particularmente na
sua música, em todos os géneros cultivados nas ilhas e nas comunidades no
estrangeiro. Se para alguns ainda houvesse algum sentimento que o crioulo era
oficialmente discriminado seria de esperar que com esse acto do novo PR, num
momento alto da vida da república, tal dúvida fosse completamente dissipada.
Estranhamente não é o que aconteceu.
Em vez da acalmia dos ânimos num momento único que devia ser de união, o que se
seguiu foi o recrudescer da militância em prol de uma oficialização que
supostamente estaria a ser preterida. De facto, o artigo 9º da Constituição da
República sob a epígrafe línguas oficiais estabeleceu desde 1999 que todos os
cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.
Também determina que o Estado promova as condições para a oficialização da
língua materna a par com a língua portuguesa, o que evidentemente implica que
tenha escrita aceite por todos. Ou seja, está-se a perseguir um fantasma, visto
que a oficialização é real, como o seu uso normal nos mais diferentes actos
deixa transparecer, em vez de concentrar na criação de condições para se ter a
língua escrita. Até parece que convém excitar paixões apontando exemplos de discriminação,
identificando vítimas e alimentando ressentimentos em vez de se estimular os
impulsos e sentimentos positivos de perseverança, criatividade e espírito de
união necessários para a realização prática das condições exigidas pela
constituição.
Não mais existindo razões reais para
continuar a pressionar o sistema político no sentido da oficialização, para
além da vontade de uns de se mostrarem “mais puros e autênticos” à custa de
adversários fictícios, o foco desvia-se para o sistema de ensino. Não se tem a
língua escrita padronizada, mas quer-se que seja ensinada nas escolas e liceus
do país. Não há professores formados nem se produziram manuais, mas tudo aponta
que as aulas para os alunos do secundário a partir do 10º ano vão começar no
próximo ano lectivo. O que, segundo declarações feitas na TCV, no domingo dia
14, por membros do governo e outras personalidades, parece ser uma decisão
assente, curiosamente ainda não foi levada para discussão e aprovação no órgão
próprio, no Conselho de Ministros. Também não se sabe se mais tempos lectivos
vão ser adicionados aos alunos ou se se vai subtrair de disciplinas fulcrais o
tempo para leccionar a língua materna e nem se conhecem os outros custos
tangíveis e intangíveis a incorrer com a iniciativa. Entretanto, para muitos
pais apreensivos, observando de fora esta ofensiva militante que já vem de
longe, só lhes resta, se tiverem sorte e meios, procurar outras escolas com
outro currículo e outra gestão como, aliás, vem acontecendo há vários anos.
Todo este conflito fictício em que o
crioulo é apresentado como uma língua discriminada tem tido custos pesadíssimos
que estão à vista de todos, mas que são ignorados como, aliás, muitas outras
coisas no país. Posto em confronto de natureza identitária com o português,
torna-se num sério obstáculo à aprendizagem afectando transversalmente a
qualidade do ensino em Cabo Verde. Ninguém, porém, parece preocupado com o
facto dos enormes investimentos no sistema educativo não trazer os retornos
desejados. O facto de se exigir aos estudantes cabo-verdianos que vão para
universidade em certos países lusófonos prova de proficiência no português não
parece ser motivo de preocupação, nem tão pouco o facto de entre os países de
expressão portuguesa serem os cabo-verdianos a ficar para trás no domínio da
língua com prejuízo para a sua empregabilidade entre os emigrantes em Portugal.
Para quem alimenta este conflito o que interessa são os reflexos da polarização
em outras disputas políticas e culturais pois, fazendo muitos deles parte de
uma elite que envia os filhos para as melhores escolas, não são prejudicados
com as consequências. Antes pelo contrário, consolidam a sua posição.
Cabo Verde tem ganho uma grande
reputação pela sua estabilidade política na democracia ao longo dos últimos 30
anos. Para essa estabilidade contribui extraordinariamente o facto de Cabo
Verde ser um povo e uma nação unido pela cultura, pela língua e por um destino
comum no decurso de séculos e em condições adversas dentro de um império
colonial. É fundamental não permitir que esse ganho extraordinário seja
diminuído com divisões que opõem ilhas e regiões do país numa luta por
recursos, com importações de preconceitos de raça e de cor de há muito sem
sentido no país em termos sociais, económicos ou políticos e com questões
identitárias desconhecidas para uma gente de há muito imbuída de uma
consciência de nação. Aprecia-se a riqueza que se tem quando se observa o
desastre terrível que se abateu sobre a Etiópia, um país que estava em pleno
progresso e um exemplo de sucesso em África, por causa de conflitos étnicos.
Por outro lado, há que ter em atenção que a democracia, porque tem na sua base
a liberdade e o pluralismo, pode na sua dinâmica levar a polarizações, impasses
e mesmo ao extremar de posições com base em conflitos políticos, sindicais e
outros. Manter a unidade de propósitos em questões fundamentais evitando
fractura divisivas e artificiais é essencial para se beneficiar da dinâmica
democrática e para fazer avançar o país sem que se incorra no perigo de
paralisia e regressão que podem advir de instabilidade política com impacto
duradoiro nos domínios económico e social.
No mundo de hoje com as grandes
crises, a pandémica e a económica e social, e os grandes desafios, a transição
energética e as alterações climáticas, é de maior importância que se construa
nas sociedades democráticas um capital de confiança traduzido na confiança nas
instituições, no alto grau de civismo e no foco no interesse comum. Países com
esse capital conseguem com mais facilidade e mais solidariedade enfrentar as dificuldades
presentes como os surtos de covid-19, as resistências à vacinação, os altos
preços de energia, a inflação que vai fazer subir o custo de vida e diminuir o
poder de compra e as dificuldades em conseguir emprego de qualidade. Central
para se conseguir esse capital de confiança vai ser o comportamento dos
governantes e da classe política em geral. Mais do que nunca, o país precisa de
uma liderança de qualidade, competente e comprometida com o interesse comum e
que não se deixa levar pelo caminho fácil, mas custoso do ilusionismo. Do
presidente da república, órgão singular e suprapartidário, espera-se que aja
para reforçar a unidade da nação para que a dinâmica da governação democrática
mostre os seus frutos sem perigo de divisões que criam ineficiências,
distracções e bloqueios e deixam o futuro permanentemente adiado.
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