- Uma Leitura -
O
autor, Diogo Freitas do Amaral, dispensa apresentação. Possuidor de um vasto curriculum
académico e político; regista neste livro, as suas memórias. Não só as de
grandes acontecimentos políticos, mas também, memórias sociais, pessoais e
afectivas.
Mas
antes de entrar no livro propriamente dito, vamos conhecer um pouco a vida do
seu autor. Uma breve biografia:
Diogo
Freitas do Amaral nasceu em 1941 na Póvoa de Varzim e faleceu em Lisboa em
2019. Formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
aí se doutorou em 1967 e foi Professor catedrático da mesma Faculdade. Reputado
especialista em Direito Público, com vasta obra escrita nesse domínio. Foi co
fundador da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e seu primeiro
Director.
Distinguiu-se
igualmente como Político, foi um dos fundadores do Partido CDS (Centro Democrático Cristão), depois do 25 de Abril de 1974. Várias vezes membro de Governo, em
sucessivos governos de aliança democrata.
Foi
Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, cargo desempenhado entre 1995
e 1996.
Das
suas ideias políticas, destaca-se aquela que era para Freitas do Amaral, fundamental:
ele defendia para Portugal um modelo político de democracia cristã de matriz
europeia.
Escritor,
dramaturgo, autor da famosa peça: «O Magnífico Reitor», entre outras peças
teatrais.
Igualmente
temos em Freitas do Amaral, um investigador probo da História portuguesa. Sobre
isso, ele legou-nos um vasto acervo escrito que abarca também figuras e
personalidades relevantes que marcaram a História do seu país. A par disso,
escreveu dezenas de livros sobre Direito Administrativo.
Uma
nota pessoal - Tive o prazer de o conhecer, creio eu que da última vez que ele
esteve em Cabo Verde, mais concretamente em 2013, em Mindelo, na ilha de São
Vicente, quando ele foi o padrinho do antigo e saudoso Presidente da República,
António Mascarenhas Monteiro, na cerimónia de Doutor «Honoris Causa» deste
último, realizada pela Universidade de Mindelo.
Falámos
de Literatura… sobre os Contos de Eça de Queiroz e impressionada fiquei com a
reprodução memorizada que ele fez das palavras, dos diálogos de alguns Contos,
com destaque para o conto: «José Matias».
E à
colação, trouxemos para a nossa conversa, a velha questão de se desenvolver a
memória nos alunos, desde os inícios da escolaridade, das vantagens disso e o
grande adjuvante que é, a boa memória, para a nossa inteligência. Falámos disso
como colegas de profissão, professores, cada um no seu nível, e ambos,
defensores de uma boa exercitação da memória em tempo de escolarização.
O
interessante também, é que percebi nele, uma verdadeira admiração de leitor,
pelo filho, o escritor Domingos Amaral e a este propósito, comentámos o belo
livro: «Enquanto Salazar Dormia».
Freitas
do Amaral, uma simpatia em pessoa, portador de uma cultura elevada e levada sem
ostentação, à naturalidade da sua conversação. São estas as impressões que
guardei e guardo do Professor Freitas do Amaral. Fecho a nota pessoal.
Posta
esta já longa introdução, mas que aquém ficou da vasta biografia de Freitas do
Amaral, passemos então ao livro «Ao Correr da Memória».
O
livro como referi no início deste escrito, é composto de várias pequenas (uma
página, meia-página) crónicas, dispostas cronologicamente. Assim temos o
capítulo da Infância e da Juventude em que o autor, através de quadros/crónicas,
retrata cenas dessa fase de vida marcante. A começar em casa paterna com o seu
baptismo e o ambiente familiar, passando pelo Liceu, e pela Faculdade de
Direito, em socialização com colegas e amigos, retratando também aspectos
peculiares dos professores que foi tendo ao longo da sua vida escolar.
A
seguir o leitor é convidado a acompanhar, a vida adulta, profissional e social
do autor, curiosamente não apenas, através de textos pessoalizados, mas sobretudo,
através de eventos e de personalidades destacadas da vida política do Estado
Novo e igualmente de famosos do depois do 25 de Abril de 1974, altura em que o
próprio autor é membro fundador e Líder do Partido, o CDS. Freitas do Amaral
foi Vice -Primeiro Ministro no Governo de coligação chefiado por Sá Carneiro. Participou
também no governo socialista, chefiado por José Sócrates, como Ministro dos
Negócios Estrangeiros.
Assim
sendo, o livro, «Ao Correr da Memória» também prolonga a memória (pessoal) do
autor, entrosando-a num fundo histórico que ao longo dos textos perspectiva
para o leitor e o situa ora durante o Estado Novo, ora após a revolução de
Abril de 1974.
Das
peripécias, dos acontecimentos e das viagens acontecidas ao longo das então
quase quatro décadas após a revolução dos cravos, presenciadas e participadas
pelo autor de «Ao Correr da Memória – Pequenas Histórias da Minha Vida»
Bertrand Editora, 2003, o leitor encontrará plasmadas em meia página e numa
página, com um poder de síntese extraordinário, descrições e narrações, vivas e
vividas de uma forma evolvente pelo autor que nisso implica também o leitor.
Não
resisto a transcrever aqui, para exemplificar, o resultado da viagem feita a
Cabo Verde em 1980 - na comitiva do então Presidente da República Portuguesa,
Ramalho Eanes - ainda em regime de Partido Único (pág. 58-59).
Pois
bem o texto diz o seguinte:
“A República de Cabo Verde, em 1980, era um
regime político marxista, de partido único, governado em ditadura. Mas era uma
ditadura “soft,” sem presos políticos, e com traços curiosos.
Quando visitei o país nesse ano,
acompanhando o Presidente Ramalho Eanes, ouvi com a maior surpresa declarações
como estas: - O Ministro dos Negócios Estrangeiros apresentou-me um pedido
oficial de ajuda financeira de Portugal para restaurar a catedral da Cidade Velha,
pois tinham grande interesse nela, porque aí tinha feito sermão o Padre António
Vieira, a caminho do Brasil…;
- O Primeiro-Ministro informou-me que,
no recente Congresso do PAIGC, tinha sido decidido substituir a qualificação de
Cabo Verde como «Estado Revolucionário» pela de «Estado de Direito». «Quais as
consequências práticas?» perguntei: «A principal, respondeu, «consiste no
seguinte: dos actos administrativos dos Ministros que lesem ilegalmente
direitos de particulares só se podia recorrer para o Conselho de Ministros;
agora, o recurso é para o Supremo Tribunal de Justiça, que pode anulá-los»;
- O Ministro da Justiça, com quem pedi
para me avistar a sós, contou-me que, aquando da transformação acabada de
referir, propôs que o recurso contencioso dos actos ministeriais fosse
interposto para um Supremo Tribunal Administrativo, como em Portugal. A
proposta não foi aceite porque Cabo Verde não tinha dinheiro para sustentar
dois Supremos Tribunais, duplicando instalações, presidentes, número de juízes,
etc. E comentou: «mas ficámos com muitas dúvidas: porque estávamos a contrariar
frontalmente os ensinamentos do Prof. Marcello Caetano – que para nós são uma
bíblia!»
Fiquei, de facto, abismado: o regime
cabo-verdiano não tinha quase nada de marxista-leninista; era sobretudo um
produto luso-tropical da civilização dos brandos costumes.” Fim
de Transcrição.
É de
pequenos textos como este, que se preenchem os nove capítulos que constituem o
livro.
De entre
eles, distingo também o capítulo VI, «Alguns Grandes do Mundo» no qual o autor
traçou o perfil político, social e humano de grandes ou de famosas figuras
europeias do século XX. De Churchill a Helmut Kohl, passando por Adolfo Suárez,
indo a Mário Soares e a Francisco Sá Carneiro; o autor de «Ao Correr da
Memória» faz um precioso retrato de cada um deles, e naquilo que mais os
distinguiu na História recente da Europa, na dos seus respectivos países e na da
construção da União Europeia.
Termino
esta leitura, dizendo que não é fácil sintetizar um livro como este, que embora
pequeno em dimensão, é muito rico, pela variedade de temas nele contido. E mais,
é de boa leitura, pois o leitor apercebe-se que a obra foi elaborada, através
de uma pena culta e de uma reflexão profunda do seu autor.
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