Por ter achado actual e interessante, a perspectiva da entrevistada, a eurodeputada belga, Assita Kanko, aqui se publica, o texto transcrito do Jornal Diário de Notícias de 17/02/2022. O texto foca temas como a incapacidade e a rapacidade de muitos Líderes africanos, no que toca ao desenvolvimento e ao bem-estar dos respectivos países e povos; o perigo do Jihadismo violento, que grassa e destrói o Continente africano; e a culpa dos governos africanos no que respeita às vagas de deslocados, e da emigração clandestina de africanos para a Europa neste século.
Finalmente, o reparo maior da Deputada europeia de origem africana, vai para a Europa que continua a errar na ajuda ao desenvolvimento dos países africanos, dando dinheiro, dinheiro esse, que vai quase que directamente, para "bolsos errados."
Assita Kanko
“A Europa está 60 anos atrasada em África”
Eurodeputada belga, que cresceu no Burkina Faso,
critica “mentalidade do passado”, numa Europa que perde “oportunidades” em
África, insistindo no “remédio errado”.
Entrevista conduzida por JOÃO FRANCISCO GUERREIRO,
Bruxelas [i]
Assita Kanko foi eleita pelo partido nacionalista flamengo N-VA e
senta-se no grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus.
Que expectativas tem sobre a cimeira UE-África? Não é tarde para travar a influência de outros
actores como Rússia ou mesmo Turquia?
A Europa ainda não
acordou. Há um pouco de sonambulismo no caos. O jihadismo tem progredido,
especialmente no sul de África. A região foi tomada pelos jihadistas e pelos
autocratas da Rússia, enquanto Erdogan anda a circular para falar sobre
negócios com a Turquia.
A Europa está a falhar?
Falhamos porque temos uma abordagem muito conservadora na
relação com a África. Apenas queremos ajudar, em vez de trabalhar com África. É
uma escola muito antiga dos anos 1960. Mas, hoje estamos em 2022. Então a
Europa está 60 anos atrasada em África. A Europa pensa que o que tem que ver
com a África é para a África, mas na verdade também é para a Europa. Tem de ser
uma parceria vantajosa para ambos. A Europa está a perder influência e oportunidades.
A cimeira foi adiada. E agora, podíamos esperar algo de novo. Mas o que
aconteceu? A presidente da Comissão foi para a África e fez exactamente o mesmo
circo que veio a ser repetido por antigos líderes europeus.
Refere-se ao anúncio de 150 mil milhões de investimento nos
próximos sete anos?
Sim. Falamos de milhares de milhões. Mas eu acredito no sector
privado, na economia. Agimos como se fôssemos fazer o trabalho dos presidentes
africanos. E qual é o trabalho deles então? Não acredito nessa solução. Ir lá e
acenar com dinheiro nunca funcionou. Estou muito céptica porque o cenário é o
mesmo e para mim é um déjà vu. Não fico só triste, mas também furiosa. É
uma enorme falta de respeito pelo potencial humano e falta de consciência da
realidade. Quando analisamos, o dinheiro aumenta e vemos a segurança a diminuir
e a responsabilidade dos líderes a diminuir. E isto não faz soar alarmes na
Europa. Nunca vi outro cenário. Nasci e cresci em África, no Burkina Faso. Vi
líderes europeus que vieram com cheques. Sabe o que mudou na minha vida de
jovem em África? Absolutamente nada. A única coisa é que o presidente tinha
mais dinheiro para nos intimidar como estudantes. E é tudo. E, dinheiro
europeu.
O plano que vai ser apresentado na cimeira envolve condicionalidades
nos direitos humanos, direitos das mulheres, saúde sexual e reprodutiva,
governança, valores e outras áreas. Vê em África a vontade de responder a estes
compromissos?
Haverá sempre resposta. Se formos para a praça pedir às
pessoas que digam o que queremos ouvir, dermos um cheque, as pessoas vão
concordar. Não é o plano que está fundamentalmente errado. É o controlo e a
prestação de contas.
O que pode ser feito?
Os jovens africanos são fortes, inteligentes e motivados.
Eles não são indefesos. Não estão sentados à espera de que a Europa venha
salvá-los. Antes de ingressar na política, no sector privado vi como é difícil
estruturar uma operação bancária com alguns países africanos. Precisamos de
ouvir os bancos, quais são os problemas com que se deparam. A segunda questão
que enfrentei foi a da contabilidade das PME. Para muitas PME, em África, não
se consegue a contabilidade deles ou não é centralizada. Há empresas que têm
muito potencial, que têm muito dinheiro, mas que não têm estrutura legal, como
aqui, onde se pode simplesmente ir ao Banco Central e avaliar o potencial de
uma empresa. Em África não. A dívida do país também nunca é boa por causa da
burocracia ou por causa dos maus hábitos. E tudo isso não é levado em
consideração. O que a Europa está a fazer é a dar o remédio errado a um
paciente que ainda não está doente. Dando o remédio, o paciente fica doente
porque quer aquele remédio, quer aquele dinheiro, quer o dinheiro grátis.
Mencionou os jovens. Todos os anos há milhares que chegam à Europa.
As migrações são um dos temas da cimeira. Como deve ser tratado pelos governos
da UE e de África?
A grande, grande questão é que os líderes africanos precisam
de ser líderes dos seus próprios países e fazer o próprio trabalho, ajudar os
seus povos, amparar os jovens e procurar ambientes seguros para eles e para as
empresas. Os países são independentes desde os anos 1960. Porque é que o
relacionamento ainda é baseado no velho paradigma? Se a mentalidade não mudar,
os mesmos erros produzirão os mesmos resultados. Em segundo, a crise migratória
não é apenas por razões económicas, mas também por razões de segurança. Se vir
como os jihadistas incendiaram países como Burkina Faso, Níger, Mali... Mas
quando o islamismo começou a invadir a religião, o que fizemos como comunidade
internacional? Fechámos os olhos. E agora 1,5 milhões de pessoas estão
deslocadas no Burkina Faso por causa do islamismo e dos criminosos russos que
estão lá com o grupo Wagner.
Falou numa mentalidade do passado e em déjà vu...
Tinha 7 anos quando vi o primeiro golpe de Estado no Burkina
Faso. E algumas pessoas estavam a dançar nas ruas e algumas também estavam a
chorar. E ouvia os meus pais: tens de te deitar. Porque nunca se sabe o que
pode acontecer. E, na verdade, depois, ouvimos a Europa a apelar ao regresso da
ordem constitucional. Mas que ordem constitucional? Também não havia antes.
Sempre foi o mesmo presidente. E mudou a Constituição para permanecer
presidente. Pedir para voltar à ordem constitucional mostra quão pouco é o conhecimento
da Europa. Então achamos que o dinheiro vai resolver os problemas. Nós damos o
dinheiro, o dinheiro vai para os bolsos errados e é usado. Isso está a ajudar
ditaduras e a intimidar pessoas comuns.
O seu trabalho na área dos direitos das mulheres é conhecido.
Têm existido avanços neste campo?
Vejo algum progresso, um progresso não muito forte, mas algum
que vem das próprias mulheres.
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