sexta-feira, 17 de março de 2023

 

Alerta ao Leitor: este texto foi publicado em 2006 no Jornal «Expresso das Ilhas». Visto que o não havia publicado no Coral-Vermelho, decidi fazê-lo nesta data, pois creio que o assunto nele versado não prescreveu.

 

A Língua Portuguesa e a língua cabo-verdiana – Um caso de mútua aculturação?[i]

Quando se fala na caminhada, nas várias etapas, nas transformações e mesmo na evolução de uma língua viva, isto é, uma língua de comunicação permanente, que apreende e transmite o quotidiano, os sentimentos, o pensamento, e que “vê e organiza” o mundo de quem a fala, com certeza que nos acercámos da língua materna de um indivíduo.

Todo o seu processo de formação, de socialização, de transformação, de aquisição, e de permutas, quer fonéticas, quer lexicais, quer ainda morfossintácticas, semânticas, ou outro, o processo é complexo e dinâmico. E como não é possível, pelo menos, entre nós, por agora, montar um observatório linguístico em permanência, capaz de registar ao segundo, ao pormenor, com a frequência e o rigor necessários, as inúmeras e as constantes mutações  por que passam o nosso crioulo e a língua portuguesa presente nestas nossas ilhas, difícil se torna “travar” ou “imobilizar” cada instante sincrónico da(s) fala(s) cabo-verdiana e se me for permitido, melhor dito, dos falares, e/ou das variedades desses mesmos falares das ilhas, para se lhes apreender os mecanismos transcendentes da sua transformação.

Isto tudo, como pretexto para vos falar, ainda que de forma breve e muito pela rama, de fenómenos interessantes e, se calhar, imprevistos, que vêm sucedendo com a língua cabo-verdiana em determinados contextos da sua oralidade e do seu entroncamento cada vez mais visível na língua portuguesa actual.

Com efeito, o processo constante de mutações e de transformações na configuração por que passa o crioulo – há pouco mais de quatro décadas em condições autodeterminadas – fazem com que com decurso do tempo, ele se apetreche, se “aprimore” e se aproxime mais da língua portuguesa actual. As necessidades trazidas pelo processo de crescimento e de desenvolvimento social e económico de Cabo Verde potenciaram e guindaram a língua cabo-verdiana a patamares de maior exigência vocabular, de maior precisão e, por vezes, até de linguagem especializada para cada domínio de intervenção. Está hoje, sem dúvida, mais apetrechada, mais rica e, possivelmente, mais expressiva. Naturalmente que, para isso, tem ido à fonte principal e a que lhe está mais próxima e afim –  a língua portuguesa – à qual, reconhecida a paternidade, lhe pede e dela toma os vocábulos, as expressões e os articuladores para um discurso mais consentâneo e adequado para transmitir as novas exigências do desenvolvimento social, humano e tecnológico do Cabo Verde do século XXI. Agora já não basta o crioulo, o tradicional, a língua materna trazida de casa, não escolarizada. Trata-se, agora sim, de um veículo linguístico, oralmente mais elaborado, mais apurado, mais apetrechado e mais apto à comunicação da nova geração escolarizada do país. Conviria também anotar que esta variante oral do crioulo, não só pouco tem a ver com o português do século XV, XVI, trazido pelos marinheiros e pelos missionários, como também, apenas lhe sobram formas muito residuais da herança linguística africana  do século dos Descobrimentos portugueses, trazida nas diferentes oralidades dos escravos e que, na opinião abalizada de Baltazar Lopes da Silva nunca passou dos 3%.

Interessante é que se trata também de um fenómeno linguístico, se calhar, não previsto e nem esperado. Os linguistas nacionais, os estudiosos das questões do crioulo cabo-verdiano, talvez não contassem com esta trajectória da Língua cabo-verdiana. Talvez idilicamente e com alguma singeleza, conjecturassem que, com a nobilitação do crioulo, havida realmente com o advento da independência do país, e cortado o “cordão umbilical” do crioulo com o português, aquele se «fechasse» sobre si próprio, se sedimentasse, naturalmente, e depois no processo de interacção do organismo vivo que é uma língua de comunicação, ganhasse novos “apports”, talvez de outras línguas, num Cabo Verde independente. Quem sabe!?...

Mas nada disso aconteceu. A Língua cabo-verdiana e a Língua portuguesa aqui nas ilhas, estão cada vez  mais unidas e mais interdependentes uma da outra. É um facto.

Por outro lado, existem também os falantes e os estudiosos desta questão, que consideram esta nova norma oral do crioulo -  cujo léxico é directamente fornecida pela Língua portuguesa actual - uma excelente via de homogeneização das diferentes variantes islenhas do Crioulo, facilitando a sua aprendizagem aos estrangeiros, e a sua escrita ao falante nativo, num quadro  não só de cooperação para o desenvolvimento, que Cabo Verde não dispensa, mas também, mostrando um sentido para o qual caminha o crioulo à medida que aumenta a escolaridade.

Assim vejam nisso, maiores vantagens comunicativas da Língua cabo-verdiana…

Note-se que a língua veicular do ensino em Cabo Verde é e tem sido até agora, a língua portuguesa.

Logo, este, talvez seja o novo Crioulo oral das ilhas de Cabo Verde, que se vem desenvolvendo, depois do processo da independência do país. O qual, para além de revelar maior literacia, é também portador de um corpus lexical mais alargado, e está, sem dúvida, muito mais próximo da língua portuguesa actual que de outras heranças ancestrais. É falado, sobretudo, em situações de comunicação formal e mediática por falantes com alto grau de escolaridade. Digamos que é o veículo que serve ao governante, ao professor, ao intelectual, ao técnico, ao político para difundir o seu discurso sectorial específico à população-alvo.

Uma série de fenómenos em que o aumento da escolaridade no país, o acesso aos media e a rápida difusão e, nomeadamente, a expansão e a abrangência intercontinental através da rádio, da televisão, a exibição das telenovelas brasileiras, portuguesas e angolanas em quase todos os canais televisivos de língua portuguesa, o seu acesso nas principais cidades e nas sedes municipais – através de antenas parabólicas, privadas e comunitárias, estas, já com alguns anos de funcionamento – somados e conjunturalmente simultâneos, podem explicar a aceleração nessa reviravolta linguística do crioulo de Cabo Verde e podem também ser considerados agentes transformadores e agentes fornecedores de novos vocábulos, de novas expressões, de uma linguagem melhor articulada para questões de natureza técnica, política e científica.

 Aliás, como já aqui referido, já se notam no país os novos falantes deste também inovado e mais enriquecido veículo de comunicação.

Trata-se de um veículo linguístico, falado por uma elite letrada, que ocupa cargos de responsabilidade nos diversos sectores da sociedade, que vai mais vezes à comunicação social e que se encarrega naturalmente de o difundir. Porque toda a elite é uma referência e um modelo a seguir nas sociedades novas, como é o caso de Cabo Verde, é nossa convicção de que estamos a assistir ao nascimento e ao desenvolvimento de uma nova via oral de comunicação erudita e elaborada do crioulo de Cabo Verde e que muito deve, já não à língua portuguesa da era dos Descobrimentos, mas sim, à língua portuguesa actual, deste século.

Independentemente do querer e das “barafundas”, passe a expressão, dos falantes, dos gramáticos, dos linguistas, quer de uma ou de outra língua, as duas, a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana, o crioulo, de/e em Cabo Verde, mantêm-se unidas e actualmente, cada vez mais cúmplices, mais interdependentes uma da outra, nesse processo de permutar, de alterar e de transformar vocábulos; de trocar palavras, de reter e de absorver mutuamente construções antigas e novas, recriando-se constantemente a um ritmo e numa interacção tais, só explicáveis, se calhar, por este tempo de globalização. É que também devemos falar no português de Cabo Verde, climatizado e aculturado num processo e num ambiente fortemente crioulístico.

Retomando o grande filólogo, Baltasar Lopes da Silva, este afirmava em 1956, numa soberba intervenção numa das sessões da “Mesa-Redonda sobre o Homem cabo-verdiano” a propósito daquilo que ele definiu como a constante e progressiva “aristocratização” do crioulo: «o crioulo numa situação diferente da que estiveram o português, ou qualquer língua românica com o latim. Quando certas línguas se formaram o latim já não era na realidade viva, ao passo que nós notámos um dialecto, um idioma, que evolui sob os olhos da língua matriz, sob uma influência constante da tal língua matriz. Há este princípio da aristocratização que se nota por toda a parte

De se notar também, o que tem sido a reacção de alguns estudiosos, entre nós hodiernamente. A respeito do fenómeno: Acham que, nomeadamente, é necessário “contrariar” essa nova tendência do crioulo em transformar-se num “criouguês”, ou num “crioulês” como já se diz humoristicamente entre nós. Para alguns, a solução é rapidamente alfabetizar e ensinar de forma distinta e correcta, o falante cabo-verdiano, tanto em língua cabo-verdiana, como em língua portuguesa.

Embora concordando de que estamos necessitados de uma boa metodologia para o ensino das línguas vivas, de comunicação oficial e materna do país, no meu entender, trata-se de um caso interessante de conluio linguístico e de mútua aculturação que se vêm processando entre a Língua cabo-verdiana e a Língua portuguesa e, ao que tudo indica, sem pressa de desfecho e, a acontecer, de difícil previsão.



[i] In “Expresso da Ilhas” de 25.10.2006

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Li com imenso gosto este artigo, que está muito bem elaborado e aborda uma questão de grande pertinência e que só pode ser desvalorizada ou ignorada por aqueles que acreditam e defendem acerrimamente que o crioulo tem condições para se promover autonomamente, abdicando ou mesmo rejeitando liminarmente a influência e o legado da sua mãe: a língua portuguesa.
Mas este assunto não é a primeira vez que é tratado pela autora. Em 10 de Maio de 2006, publicou no Expresso das Ilhas o artigo intitulado “CRIOULÊS”, em que a dado passo diz: “Tem vindo a insinuar-se discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas sempre em crescendo, uma nova língua – chamemo-la 'crioulês', por comodidade de expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em crioulo, nem em português, ou fugindo a isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o crioulo e o português.”
Por acaso, a essa data escrevi, por meu turno, um artigo em que replicava com idênticos argumentos, referindo-me ao da Dra. Ondina Ferreira.
Portanto, e pelo quadro que a autora agora descreve com argumentos reiterados e reforçados, é previsível um crescendo imparável da situação de "coluio e aculturação mútua entre as duas línguas". Resta esperar para ver o que dirá o futuro. Mas se a tendência é para ser contínua e cada vez maior "a expansão e a abrangência intercontinental através da rádio, da televisão, a exibição das telenovelas brasileiras, portuguesas e angolanas em quase todos os canais televisivos de língua portuguesa", é muito natural que, por mimetismo, o cabo-verdiano comum e menos escolarizado comece a utilizar normal e espontaneamente, na sua comunicação informal, não só um crioulês cada vez mais despojado de roupagem crioula, como até mesmo a exprimir-se num português semelhante, ao nível vocabular e gramatical, ao que fala o angolano e o brasileiro comuns.
De permeio até podem ir nascendo novos vocábulos, por contributo da herança crioula, assim enriquecendo-se a língua portuguesa, de que também somos genuínos proprietários como todos os seus falantes, pelo que não podemos ter qualquer espécie de constrangimento em o falar com toda a naturalidade e de a considerar língua materna em paridade com o crioulo.
Por falar em enriquecimento da língua portuguesa, creio que poucas têm tantas possibilidades diversificadas como ela, repartidas por geografias e povos diferentes. E a propósito, há poucos dias, um moçambicano do povo, homem de uns 50 anos, interpelado por um repórter a respeito da tempestade que desabou sobre o seu país, teve esta expressão: Ah, o tempo hoje está muito "sustoso". Claro que percebi logo que ele queria dizer que o tempo estava a provocar susto. E por que não considerar "sustoso" um adjectivo que exprime a qualidade do que provoca susto?
Bem, esperemos que a política não intervenha na evolução do processo linguístico, como recentemente parece ter pretendido o presidente da república, sabe-se lá com que propósito ou motivação, quando o recomendável é deixar que seja a natureza (o homem e a sociedade) a fazer o seu trabalho.
As minhas felicitações à autora por este artigo.

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