O poema que se segue da autoria de Adriano Miranda Lima, chegou-nos em formato “Power-Point” com música de Bau que terá também inspirado o poeta ao ouvi-la ao vivo, como aliás, explica na Nota de rodapé.
Infelizmente, este “Blog” não
está capacitado com a ferramenta adequada para passar o poema tal como veio no
original.
Lamentamos!
Mesmo assim, e porque achámos bela a
composição poética de A. Miranda Lima, queremos partilhá-la com o leitor.
Fica a promessa de que se viermos a conseguir
publicá-la no original - com música - voltará a ser aqui colocada.
A noite é de um silêncio puro e irreal
como o prenúncio de uma tormenta.
Não sopra a mais leve brisa
e uma cálida mansidão invade os espectros
dos navios fundeados na baía do porto.
Até as ondas calaram o seu murmúrio
quando subitamente o vulto místico da
Eurídice
liberta das grades do seu submundo
desce às ruas desertas de vida
e bate ansiosamente às portas
à procura do seu amado Orfeu.
Surpreso ensaio o verbo do meu espanto
e a minha voz soa como o vagido
da flor que se abre à luz da vida.
Nisto um som de violino surge do nada
e invade a noite morna derramando
a convulsão das suas cordas
ora em suave gemido de uma alma sofrida
ora em súplica de coração ardente.
Submissa a noite explode de emoção
e o violino ignora o meu grito:
– Ó alma virtuosa espera um instante
deixa-me subir ao terraço da infância
para regressar ao velho lençol de linho
onde me enrolei a ouvir o vento
e a namorar o rosto terno da lua!
– Quero aliviar a mágoa
pelos silêncios a que não dei voz
e pelas vozes que não me responderam!
Mas a serenata prossegue ininterrupta
inundando-me com o seu feitiço
e o meu ser voa silenciosamente
e entra na espessura da noite
como
um pirilampo vogando ao acaso
à descoberta
do infinito.
Até que o violino suspende o meu devaneio
e imploro com veemência:
– Ó mágico violino, bálsamo da vida,
poupa as tuas lágrimas e as tuas penas
que a saudade é já só um eco remoto
a morrer nas tuas finas cordas!
Penitencio-me do pecado da longa ausência
e rendo-me à plangência da tua melodia!
Contudo o violino não me ouve
porque o seu mundo é incorpóreo
e o seu destino é apenas conquistar corações.
Entretanto raia a aurora e tudo se extingue
em misteriosa alternação de sombra e luz
com a música já em dolentes acordes de despedida.
Acabei de viajar à origem das coisas
encantado por uma música sublime
que me levou aos confins da memória.
Vou partir. Irei aos primeiros alvores do dia
com mágoa de não ter decifrado
o mistério da noite enfeitiçada.
Adriano Miranda Lima
Música “Regresso”, interpretada por Rufino Almeida (Bau)
Nota explicativa:
Foi em 2003 que ouvi pela primeira vez e ao vivo a composição “Regresso”,
quando o seu autor, o músico Rufino Almeida, mais conhecido por Bau, actuava na
esplanada de um hotel na cidade portuária do Mindelo. Tanto apreciei a melodia
que ela me inspirou uma reacção poética, tocado pela graça do tema musical, de
extraordinária beleza e soberba interpretação. Ela fez-me viajar aos confins da minha memória
mais longínqua, onde reside uma saudade em que se amalgamam porções de
mistério, remorso e encantamento. Reduzi o tempo a uma única dimensão,
prendendo-o ao momento presente e acrescentando-lhe o que permanecia incólume
no meu imaginário, refúgio de sonhos e ideais. Os anacronismos sentimentais que
alimentam a nossa saudade podem assumir as formas mais variadas, mas o seu
fundo motivacional é o mesmo. O problema é que a própria idealização
desconstrói os nossos mitos quando nos confrontamos com a realidade nua e crua.
E é por isso que raramente encontramos o que idealizamos.
2 comentários:
Bela composição poética «Regresso» que se deixou impregnar-se da e na melodia homónima. Digo "composição" porque a melodia escutada é parte dela.
A melodia, a noite na cidade do Mindelo, foram de tal forma sugestivas, inspiradoras e encantatórias que, conduziram o sujeito poético a um regresso mágico ao passado, à infância e fizeram com que o poeta pedisse que o deixassem "subir ao terraço da infância // para regressar ao velho lençol de linho (...)".
Mas mais, dentro dessa magia a que o poeta esteve sujeito naquele virtuoso momento musical, fá-lo soltar uma confissão:
"- Quero aliviar a mágoa/ pelos silêncios a que não dei voz / e pelas vozes que não me responderam"
Para finalmente, confessar (e atente-se nos versos finais do poema:
“Penitencio-me do pecado da longa ausência / e rendo-me à plangência da tua melodia!”
Daí que se encontre - na minha opinião - no poema dois eixos fundamentais, provocados pela magia da melodia; o primeiro será o sentimento poético de pertença “ao lugar,” onde a escutou, tal como vem no verso: “Eurídice (…) à procura do seu amado Orfeu.”
O segundo eixo é o de uma certa e inacabada “revelação,” que quase permitiu ao sujeito poético, desvendar o mistério profundo que há muito trazia e traz recolhido dentro de si, como se de uma intimidade sagrada se tratasse.
Para melhor o entender, reveja os versos da última estrofe do poema.
Ondina, agradeço, muito sensibilizado, o seu comentário e interpretação do sentimento impregnado no texto que escrevi e em que, sem querer entrar no domínio dos poetas, procurei encontrar o discurso mais adequado à expressão da minha saudade pela longa ausência da terra natal.
Não encontro palavras para enaltecer a eloquência do seu comentário, senão um MUITO OBRIGADO.
Enviar um comentário