Tenho
lido nos últimos dias alguns textos de articulistas e de alguns especialistas
da Língua portuguesa, os quais, aproveitando-se da “deixa” proferida pela
escritora moçambicana, Paulina Chiziane, e que o título deste escrito alude,
pedirem igualmente uma “limpeza” da nossa Língua que está de tal maneira pejada
de vocábulos ingleses ou corruptela deles, que qualquer dia corremos o risco de
a ter descaracterizada…
Ora
bem, a este respeito concordo com o apelo lançado por esses articulistas que
discorrem sobre a Língua comum, pois já é aflitivo e mesmo insuportável
ouvir-se a cada passo, comunicadores de Língua portuguesa, sobre determinado
assunto, “encherem” literalmente o seu discurso − quer oral, quer escrito − com
palavras inglesas quando existem rigorosamente as mesmas em português.
Qual é
a necessidade disso? Será um querer exibir o seu domínio de inglês? Ou também demonstrar
que já se internacionalizou nas lides da tecnologia, da ciência ou mesmo das
Letras?
Uma
coisa é saber a Língua de comunicação internacional, isto é, o inglês, diria
imprescindível hodiernamente, mas coisa outra e bem diferente, é carregar e
afrontar a Língua portuguesa com palavras inglesas desnecessárias.
De
facto, razão têm aqueles que pedem a “descolonização” da Língua portuguesa de
termos em inglês.
Entrando
agora no pedido directo da nossa laureada com o Prémio Camões 2022, confesso
que a não havia entendido, quando, no seu discurso, no acto da entrega do
honroso galardão, pediu a “descolonização da Língua portuguesa”.
Descolonização? Como? (pensei eu…) A língua portuguesa, (LP), é hoje pertença dos falantes de Angola que a adaptaram à terra, a
transformaram de forma distinta e a fizeram sua, como Língua nacional, oficial
e Língua materna de mais de 50% da sua população actual.
É também pertença do Brasil que a reconfigurou e a absorveu de tal monta, que uma significativa faixa da sua população julgava −
ou ainda julga − que o português só se falava no Brasil e que a Língua
portuguesa tinha lá nascido. Nem a história da viagem da LP conheciam. Digo
conheciam, porque actualmente com a globalização e a numerosa emigração de
brasileiros de todas as condições sociais (quase um milhão) para Portugal, já
tiveram ocasião de verificar de onde partiu a matriz da Língua que eles cantam,
falam e escrevem.
É pertença do cabo-verdiano que a fez sua
Língua oficial e veicular do Ensino. O português de Cabo Verde deu origem a uma
brilhante literatura (romance, contos, noveletas e poesia) com o pioneiro Movimento
Claridade e particularmente reflectido nas obras de Baltazar Lopes da Silva,
Jorge Barbosa, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, Pedro Corsino de
Azevedo, entre outros. E mais, a LP reconhece como seu descendente quase directo,
nestas ilhas atlânticas da Macaronésia, o crioulo cabo-verdiano, hoje, Língua
cabo-verdiana.
A LP é igualmente pertença dos falantes
guineenses; dos falantes moçambicanos, como por exemplo, a escritora Paulina
Chiziane que a usa e bem nos seus livros e na sua fala; dos falantes
são-tomenses, enfim, dos falantes das comunidades de LP, espalhadas por
diversas partes do mundo.
A LP é pertença dos falantes portugueses que a fundaram sob base latina e com farta contribuição grega, arábe, celta, entre os muitos substractos de línguas outras que a constituíram. Citando, a propósito, o Prof. Doutor. Adriano Moreira : " A Língua portuguesa não é nossa, também é nossa"
Tudo isto reflecte a variedade, a riqueza e a
vitalidade da nossa Língua comum, cuja diversidade vem merecendo o escrupuloso
respeito de todos.
Portanto, a descolonização proviria de onde? De
qual desses países, todos independentes há quase meio século? Ou seria do Brasil
que já leva dois séculos como país?
Confesso
que não entendi o pedido. O erro, ou o não entendimento, podiam – ou podem − estar
do meu lado, admiti.
Mas
mais, hoje, em pleno século XXI, com todas as teorias linguísticas que
alteraram profundamente, os conceitos de pertença de uma Língua viva e
geograficamente dispersa e diversa, como é o caso da Língua portuguesa, fará
sentido tal pedido?
Mas
vejamos: com o advento do 25 de Abril e a consequente independência das
colónias africanas portuguesas, deixou de existir um “Centro” – leia-se
Metrópole – irradiador de directivas sobre a LP, passando cada um dos países de
Língua portuguesa a poder intervir de forma que achar conveniente sobre a
questão linguística.
Aqui chegados, atrevo-me a perguntar qual é, actualmente, o “Centro irradiador” da nossa Língua comum para fazer circular orientações? Brasília? Lisboa? Luanda? Maputo? Ou alguma das outras capitais de que se compõe a CPLP?
Nenhuma
delas. Creio ser esta a resposta mais adequada.
O
que significa então, na hora actual, “descolonizar” a Língua portuguesa?
Será
que a Escritora se referia – ao fazer tal pedido – ao caso específico do seu país, Moçambique?
O
que se passa com a Língua portuguesa naquele País do Índico? As notícias que
nos chegam é que a LP vem aumentando de falantes de forma continuada e
sustentada, sobretudo nas gerações de moçambicanos com menos de 50 anos. Logo
está pujante.
Continuei
– e lamento dizê-lo – sem perceber e sem conseguir descodificar o pedido da
insigne Escritora a quem aproveito para felicitar por tão importante prémio
recebido.
Mais,
mais tarde, lido na integra e com atenção o discurso é que percebi a
especificidade do pedido da escritora, pois que as grandes parangonas dos jornais
só diziam que Paulina Chiziane tinha pedido: “a descolonização da Língua
portuguesa” e, afinal, verifiquei que o que a escritora moçambicana solicitou
foi a erradicação ou quiçá alteração, dos Dicionários de português de conceitos,
como: “Matriarcado”, “Patriarcado” “Catinga” e “Palhota” por conterem definições
ofensivas ou inapropriadas para a actualidade em que vivemos.
Surpreendida
pela intervenção e movida pela curiosidade uma vez que tinha uma percepção diferente
dado que estava convencida de que tais observações já não tinham razão de ser fui
imediatamente consultar os dicionários que não sendo muito actuais poderiam
ainda conter as incomodidades apresentadas. Assim encontrei:
Caatinga,
catinga = cheiro intenso e desagradável a suor.
Matriarcado = Conceito de organização social em que a mulher possui papel central, é chefe de família, e exerce autoridade preponderante e a transmissão patrimonial segue a via materna.
Patriarcado
= Princípio social, político, económico…assente na descendência e sucessão por
via masculina como o fundamento básico da organização de uma sociedade.
Palhota = (de palha+ sufixo - ota) Cabana coberta de palha ou de colmo. Habitação
características de algumas comunidades indígenas africanas.
In: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Editora Verbo, I e II volumes, 2001.
Procurando noutro dicionário, apenas para confirmação, este de autor brasileiro embora o meu tenha sido editado em Portugal, encontrei para as mesmas palavras o seguintes significados:
Matriarcado
(1899) = regime social em que a autoridade é exercida por mulheres. (…)
Patriarcado
= (…) Forma de organização social em que a descendência reconhecida é
patrilinear.
Palhota
= casa rústica.
Caatinga
ou catinga = mau cheiro. Odor desagradável ou nauseante.
In:
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – Círculo dos Leitores. Lisboa, 2002.
Logo,
deduzo que seja ela quem deva actualizar os seus dicionários de português uma
vez que, – presumo – que o pedido dela já esteja satisfeito nos dicionários da
Língua Portuguesa, publicados há mais de vinte anos
Em
boa verdade, os dicionários mais modernos, já contêm definições, sem
preconceitos, mais científicos e que seguem os ditames dos tempos, dos modos e
do entendimento de culturas distintas.
Reitero
que os dicionários actuais, a que tenho tido acesso, vêm fazendo um esforço
louvável de “decantação” da sua sinonímia. Creio que, sobretudo, a partir da
última década do século XX. Mas atenção, refiro-me aos dicionários da Língua portuguesa,
publicados em Portugal, pois que são os que utilizo.
De
qualquer forma já é mais do que tempo para que nos nossos países independentes –
há perto de cinco décadas – as respectivas Editoras publicarem os seus próprios
dicionários, ao invés, de criticar o alheio.
2 comentários:
Dra. Ondina Ferreira, prezada Amiga, também fui assaltado
pelas mesmas dúvidas quando ouvi a escritora Paulina Chiziane afirmar a necessidade de “descolonizar” e limpar” a nossa língua, que é de todos e de ninguém em particular. Como não tive oportunidade de ler o texto integral da sua intervenção, as minhas dúvidas mantiveram-se e nem mesmo com a tentativa de compreensão da Dra. Ondina Ferreira elas se desfizeram.
Claro que libertá-la de anglicismos e galicismos não é o que está em causa. Se é um facto que desde tempos remotos alguns vocábulos franceses e ingleses se foram convertendo em palavras portuguesas adaptadas para vincular o mesmo significado, e não são tão poucas como isso, o que hoje tendencialmente se verifica é algo exagerado e abusivo e sem que se justifique. E também algo diferente porque se usa na conversação em português o termo ou a expressão em inglês puro e genuíno Neste caso, “descolonizar” e “limpar” tem de ser uma preocupação, mas antes disso importará que o utente da língua não crie conspurcações desnecessárias.
Mas a minha dúvida é se algumas das palavras citadas pela escritora laureada devem ser objecto de qualquer acção de limpeza ou processo de descolonização. Por exemplo, “matriarcado e patriarcado”, uma vez que o seu significado é do âmbito da sociologia e da antropologia, conectando-se com a fenomenologia histórica, não vinculando exclusivamente os povos africanos e, por isso, não podendo ser-lhes atribuída uma interpretação pejorativa que suscite racismo.
“Palhota” não passa de uma habitação rural contruída com recursos naturais à mão (palha e canas). Em Cabo Verde e em certas regiões do interior de Portugal utiliza-se pedra, o meio abundante na natureza. A diferença entre uma palhota e um casebre de pedra é apenas no material da construção, não na sua indigência básica. Só com intenção marcadamente pejorativa se pode ver na palavra palhota uma ideia de racismo. O facto de um régulo me receber em 1972 na sua palhota numa aldeia de Moçambique (era maior e melhor que as outras) não lhe retirava dignidade aos meus olhos e menos ainda aos olhos do próprio. Esse régulo nutria uma simpatia particular pela minha pessoa.
Por fim, a palavra caatinga ou catinga. Usa-se no Brasil desde os primórdios da colonização do seu território e significa um terreno árido com vegetação característica. Mas passou, de facto, a ser usado, não sei desde quando e onde, certamente nos territórios africanos, de forma pejorativa e em alusão ao cheiro típico exalado por africanos. É evidente que tanto brancos como pretos podem exalar cheiro típico por falta de higiene, mas sei que havia a crença de que os africanos exalavam um cheiro próprio ou por falta de higiene ou por uma questão hormonal. Dizia-se em Angola, como eu bem sei, “catinga de preto”, pelo que, aqui sim, há toda a razão em eliminar dos dicionários esse significado da palavra deixando incólume o outro, o verdadeiro. É indigno e urge a limpeza.
(Continua)
Adriano Lima
(Continuação do comentário anterior)
Portanto, fico com dúvidas sobre as verdadeiras palavras que, no critério da senhora Chiziane, justificam acção depurativa. Outras certamente haverá que poderão requerer “limpeza”, mas no meu entendimento não poderá ser por qualquer rasoira saneadora. Porque se virmos bem não seremos apenas nós, os africanos ou de origem africana, a assumir esse encargo, mas sim todos os falantes da língua, independentemente da sua geografia e cultura. Como os linguistas sabem melhor do que eu, as transformações numa língua não se operam por deliberações administrativas, mas sim pelo contínuo e prolongado desuso de palavras no léxico da comunicação entre as pessoas.
Para concluir, porque já fui longe demais, não quero deixar de considerar que a escritora não tinha qualquer necessidade de começar a sua intervenção com estas palavras: “Sou negra, e depois?” “sou africana, e depois?”. Sim, e depois, Paulina Chiziane? Qual a razão por que formulou essas duas interrogações? Compete-lhe mais a ela responder do que o júri que lhe atribuiu o prémio ou os milhões de lusófonos que assistiram à cerimónia. E que até devem ter ficado, como eu fiquei, encantados com a beleza da senhora e com a dignidade do seu porte e apresentação.
Como tenho Moçambique no meu coração, mais do que Angola, por onde andei primeiro, não me esqueço de uma cena ternurenta proporcionada por um soldado moçambicano natural de Inhambane que era meu subordinado. Ele fazia parte de um grupo de 50 praças que reforçavam a minha companhia. Estudou numa missão protestante e falava e escrevia o português como qualquer metropolitano escolarizado. Ora, no dia 10 de Junho de 1972, já lá vão 51 anos, ele, que ajudava na escolarização dos meninos da aldeia local, decidiu organizar um pequeno espectáculo teatral com a classe escolar. O tema foi “Camões e o amor”. Eu e os meus graduados fomos assistir e aplaudimos. Comove-me ainda esta recordação.
As minhas felicitações, Dra. Ondina Ferreira, pelo seu importante texto e pelo que representa de luta empenhada pela valorização do português e pela sua real promoção como língua materna e instrumento de comunicação entre os falantes da nossa terra.
Adriano Lima
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