Com a devida vénia à autora, tomámos a liberdade de aqui publicar o texto da Professora e escritora, Ana Cristina Silva - "Ler ou não ler! Eis uma questão sobre a qual é importante reflectir." Publicado no Diário de Notícias de 27 de Abril de 2023.
Afinal, trata-se de um assunto sempre com interesse, sempre actual e que nos interpela...
.
Há meses, os jornais portugueses fizeram manchetes
sobre a ausência de hábitos de leitura dos portugueses. Um estudo encomendado
pela Fundação Gulbenkian demonstrava que apenas 39% da população tinha lido
pelo menos um livro e 27% destes eram pequenos leitores com um máximo de 5
livros lidos num ano. O eco da dramática manchete estendeu-se durante uma
semana pelos ouvidos dos leitores de jornais e, depois, como é habitual nestas
coisas, foi-se esbatendo sendo substituído pela sonoridade de um outro escândalo
igualmente veemente. O estudo revela que muitos dos não leitores têm ambientes
de literacia familiar relativamente pobres -- na linha do que algumas
investigações feitas pela Prof.ª. Lourdes Mata do ISPA têm demonstrado.
Curiosamente apresenta ainda um outro dado digno de registo: apenas 12 % dos
leitores com habilitações de nível superior lêem por prazer, o que significa
que, para estes, a leitura de ficção e de poesia não faz parte do seu cardápio
habitual de leitura.
A relevância da leitura de romances e poesia tem sido
objecto, em anos, recentes de diversas investigações no domínio da psicologia
com estudos que abordam o seu efeito ao nível do bem-estar emocional, com
estudos que avaliam o impacto da ficção e da poesia como recurso de terapias,
com estudos que avaliam o impacto da literatura infantil no desenvolvimento de
competências emocionais, verbais e cognitivas em crianças, etc. Em diversos
países são proporcionados aos alunos de psicologia, de medicina, de sociologia,
etc. cadeiras opcionais de escrita criativa e poesia, não com o objectivo de
criar grandes analistas literários, mas como uma estratégia para promover nos
alunos o contacto com as suas emoções e as dos outros. É de assinalar, por
exemplo, que uma das faculdades de medicina do Porto tem uma cadeira opcional
de Poesia ministrada por um médico que é igualmente um poeta de renome, tendo
sido aliás o último Prémio Pessoa. O Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti
afirmou que "Não temos conhecimento daquilo que sentimos, sendo necessário
que o vejamos nos outros para o reconhecermos" e a literatura pode ser um
dos meios possíveis para despoletar esse tipo de autoconhecimento.
A narrativa e a ficção são elementos que fazem parte
da natureza humana e isso é um dado que a psicologia tem repetidamente
demonstrado. Por exemplo o desenvolvimento socio emocional das crianças está
associado de perto à capacidade de aprenderem a narrar-se; a memória individual
em relação ao passado tem frequentemente componentes ficcionais. A narrativa e
a metáfora são recurso e asas para a terapia. No entanto, a literatura vai mais
fundo na arte da narrativa procurando ir além do efémero, desvendando com as
suas histórias individuais a dor que faz parte de todo e qualquer ser humano.
Como refere Joyce Carol Oates, os escritores esforçam-se por, a partir do que
lhe é próximo e da sua voz individual, chegar à voz comum, criando dessa
maneira uma inesperada intimidade com os leitores. E a criatividade literária
busca tantas vezes o processo alquímico de transformar sofrimento em beleza.
A literatura pelos recursos linguísticos e narrativos
que mobiliza e que fazem parte do processo de criar uma obra de arte permite
que a dimensão emocional e cognitiva seja simultaneamente tocada no decurso da
leitura e desse modo, poderá conduzir o leitor a entrar em contacto de uma
forma mais profunda com as suas emoções e as dos outros. «Aprendi com a
Primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre em inteira» diz
Cecília Meireles num dos seus poemas, estendendo deste
modo a mão ao processo de renovação tão necessário num processo terapêutico.
Joan Didion escreve no seu célebre romance, «O ano do pensamento do pensamento
mágico»: "O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é
possível passar a correr", tacteando com esta imagem o coração de muitos
leitores em processo de luto. Pretendo com estes exemplos, e poderia ir buscar
muitos mais, demonstrar como a literatura é capaz de tocar a duas mãos nas
emoções e cognições; e com este, texto apelar aos futuros psicólogos, futuros
docentes, futuros biólogos - e provavelmente a muitos dos seus professores -
para lerem boa literatura pois o nosso ramo de negócio, como se diz nos tempos
atuais, é a alma humana e para qual precisamos de abrir todos os horizontes
possíveis.
In: Diário de Notícias, 27/04/2023.
Ana Cristina Silva -Professora do
Ispa - Instituto Universitário e escritora.
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