sábado, 13 de maio de 2023

 

Comentário de Adriano Miranda Lima à publicação seguinte

“Descolonização da Língua portuguesa?” de Ondina Ferreira

Por ter achado oportuno e interessante o comentário, acima mencionado; por considerar que merece ter maior visibilidade e melhor leitura dos que visitam o “Blog”, com a devida vénia ao autor,  publico-o sob este formato.

 

 

Dra. Ondina Ferreira, prezada Amiga, também fui assaltado pelas mesmas dúvidas quando ouvi a escritora Paulina Chiziane afirmar a necessidade de “descolonizar” e limpar” a nossa língua, que é de todos e de ninguém em particular. Como não tive oportunidade de ler o texto integral da sua intervenção, as minhas dúvidas mantiveram-se e nem mesmo com a tentativa de compreensão da Dra. Ondina Ferreira elas se desfizeram.

Claro que libertá-la de anglicismos e galicismos não é o que está em causa. Se é um facto que desde tempos remotos alguns vocábulos franceses e ingleses se foram convertendo em palavras portuguesas adaptadas para vincular o mesmo significado, e não são tão poucas como isso, o que hoje tendencialmente se verifica é algo exagerado e abusivo e sem que se justifique. E também algo diferente porque se usa na conversação em português o termo ou a expressão em inglês puro e genuíno Neste caso, “descolonizar” e “limpar” tem de ser uma preocupação, mas antes disso importará que o utente da língua não crie conspurcações desnecessárias.

Mas a minha dúvida é se algumas das palavras citadas pela escritora laureada devem ser objecto de qualquer acção de limpeza ou processo de descolonização. Por exemplo, “matriarcado e patriarcado”, uma vez que o seu significado é do âmbito da sociologia e da antropologia, conectando-se com a fenomenologia histórica, não vinculando exclusivamente os povos africanos e, por isso, não podendo ser-lhes atribuída uma interpretação pejorativa que suscite racismo.

“Palhota” não passa de uma habitação rural contruída com recursos naturais à mão (palha e canas). Em Cabo Verde e em certas regiões do interior de Portugal utiliza-se pedra, o meio abundante na natureza. A diferença entre uma palhota e um casebre de pedra é apenas no material da construção, não na sua indigência básica. Só com intenção marcadamente pejorativa se pode ver na palavra palhota uma ideia de racismo. O facto de um régulo me receber em 1972 na sua palhota numa aldeia de Moçambique (era maior e melhor que as outras) não lhe retirava dignidade aos meus olhos e menos ainda aos olhos do próprio. Esse régulo nutria uma simpatia particular pela minha pessoa.

Por fim, a palavra caatinga ou catinga. Usa-se no Brasil desde os primórdios da colonização do seu território e significa um terreno árido com vegetação característica. Mas passou, de facto, a ser usado, não sei desde quando e onde, certamente nos territórios africanos, de forma pejorativa e em alusão ao cheiro típico exalado por africanos. É evidente que tanto brancos como pretos podem exalar cheiro típico por falta de higiene, mas sei que havia a crença de que os africanos exalavam um cheiro próprio ou por falta de higiene ou por uma questão hormonal. Dizia-se em Angola, como eu bem sei, “catinga de preto”, pelo que, aqui sim, há toda a razão em eliminar dos dicionários esse significado da palavra deixando incólume o outro, o verdadeiro. É indigno e urge a limpeza.

Portanto, fico com dúvidas sobre as verdadeiras palavras que, no critério da senhora Chiziane, justificam acção depurativa. Outras certamente haverá que poderão requerer “limpeza”, mas no meu entendimento não poderá ser por qualquer rasoira saneadora. Porque se virmos bem não seremos apenas nós, os africanos ou de origem africana, a assumir esse encargo, mas sim todos os falantes da língua, independentemente da sua geografia e cultura. Como os linguistas sabem melhor do que eu, as transformações numa língua não se operam por deliberações administrativas, mas sim pelo contínuo e prolongado desuso de palavras no léxico da comunicação entre as pessoas.

Para concluir, porque já fui longe demais, não quero deixar de considerar que a escritora não tinha qualquer necessidade de começar a sua intervenção com estas palavras: “Sou negra, e depois?” “sou africana, e depois?”. Sim, e depois, Paulina Chiziane? Qual a razão por que formulou essas duas interrogações? Compete-lhe mais a ela responder do que o júri que lhe atribuiu o prémio ou os milhões de lusófonos que assistiram à cerimónia. E que até devem ter ficado, como eu fiquei, encantados com a beleza da senhora e com a dignidade do seu porte e apresentação.

Como tenho Moçambique no meu coração, mais do que Angola, por onde andei primeiro, não me esqueço de uma cena ternurenta proporcionada por um soldado moçambicano natural de Inhambane que era meu subordinado. Ele fazia parte de um grupo de 50 praças que reforçavam a minha companhia. Estudou numa missão protestante e falava e escrevia o português como qualquer metropolitano escolarizado. Ora, no dia 10 de Junho de 1972, já lá vão 51 anos, ele, que ajudava na escolarização dos meninos da aldeia local, decidiu organizar um pequeno espectáculo teatral com a classe escolar. O tema foi “Camões e o amor”. Eu e os meus graduados fomos assistir e aplaudimos. Comove-me ainda esta recordação.

As minhas felicitações, Dra. Ondina Ferreira, pelo seu importante texto e pelo que representa de luta empenhada pela valorização do português e pela sua real promoção como língua materna e instrumento de comunicação entre os falantes da nossa terra.

Adriano Lima

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Da minha parte, agradeço a publicação. Pena é espaços
como estes, em que são tratados assuntos de importância, como é o problema linguístico em Cabo Verde, entre outros, não serem mais frequentados. Se efectivamente o são, acontece que faltando o comentário fica impossibilitado o debate. Mas o problema não é exclusivo do Coral Vermelho, pois dum modo geral os blogues sérios se queixam do mesmo. Frequento assiduamente mais 3 e o problema é o mesmo.

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