quarta-feira, 10 de maio de 2023

 

In English please: a língua inglesa e a internacionalização do Ensino Superior

 

 Por: JOÃO DUARTE FONSECA

 Professor Universitário

 

E era toda a Terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. Genesis, 1:1

Quando em 1714 a França e a Áustria assinaram o acordo que pôs fim à Guerra da Sucessão Espanhola, Luís XIV impôs que o documento fosse escrito em Francês, contrariando a prática até então habitual de usar o Latim nos tratados internacionais. Simbolicamente, a nação que à data era a mais poderosa da Europa reclamava para o seu idioma o prestígio até então adstrito ao império que moldara a construção da Europa muitos séculos atrás, e com tal eficácia o fez que o Francês iria ser unanimemente aceite como a língua da diplomacia desde então até meados do século 20.

 Porém, o desfecho da Segunda Guerra transferiu para o outro lado do Atlântico o domínio das questões globais, e o estatuto de Língua Franca – ou seja, de idioma transnacional usado para superar as barreiras linguísticas entre os povos – foi então inequivocamente capturado pelo Inglês.

Nos dias que correm é difícil encontrar uma instância internacional onde o Francês seja adoptado como língua de referência (o Tribunal Europeu, com sede no Luxemburgo, é talvez o único exemplo relevante). Do Latim é ainda mais difícil encontrar os traços: se bem que seja ainda, com o italiano, uma das duas línguas oficiais do Vaticano, em 2014 o Papa Francisco decretou que o Latim deixaria de ser a língua oficial do Sínodo dos Bispos.

Serve esta brevíssima resenha para ilustrar como o papel transnacional de uma língua reflecte em cada etapa histórica o sucesso – ou o declínio – das ambições imperiais da nação de origem. Ao contrário do que se possa pensar, a actual hegemonia da língua inglesa é meramente circunstancial: reflecte o domínio geopolítico dos Estados Unidos no Pós-Guerra, e não qualquer superioridade ou vantagem específica do idioma. Neste contexto em que língua e geopolítica se misturam, compreendem-se os receios frequentemente manifestados no Sul Global quanto à actual adopção do Inglês como língua franca. Devemos recear que a “imposição” de uma língua estrangeira a um povo seja uma nova forma de colonização? E em que medida a linguagem que usamos condiciona a forma como entendemos o mundo que nos rodeia, comprometendo a autonomia cultural dos povos?

Numa primeira análise, podemos traçar um paralelo com o papel do dólar na economia globalizada desde o acordo de Bretton Woods em 1944: com cerca de 60% do total das reservas cambiais à escala global, o dólar tem permitido aos Estados Unidos a imposição de uma ordem geopolítica, para crescente desconforto de economias emergentes como os BRICS, cujas dívidas soberanas oscilam ao sabor das taxas de juro decretadas pela Reserva Federal. Mas será o paralelismo entre a moeda e a língua – trocando “saúde da economia” por “pujança da cultura” – adequado? A acreditar nos antropólogos estadunidenses E. Sapir e B. Whorf, que conduziram as suas investigações entre as duas guerras do século 20, sim.

Segundo a teoria da relatividade linguística por eles desenvolvida, que atingiu grande popularidade entre os especialistas durante várias décadas, a percepção é condicionada pelo pensamento que por sua vez é condicionado pelo léxico e pela gramática, resultando que povos com línguas diferentes são necessariamente levados a construir diferentes representações da realidade. Nesta perspectiva, a adopção de uma língua única para o intercâmbio de ideias, renunciando a todas as outras, seria um cataclismo cognitivo de dimensões globais. Mas acontece que a relatividade linguística tão em voga durante grande parte do século 20 não iria resistir enclausurado num silo a reclamar a língua como bandeira identitária.

No presente, a adopção do Inglês como Língua Franca da Academia é o passaporte exigido para participar na vertiginosa viagem rumo às sociedades do conhecimento. No caso de Cabo Verde, essa opção abre também as portas ao recrutamento internacional de estudantes, algo reconhecido actualmente como um ingrediente essencial da sustentabilidade financeira das instituições de ensino superior. Aceitando esta premissa, urge pôr em prática um programa de capacitação dos docentes universitários e investigadores de Cabo Verde para a utilização da língua inglesa como ferramenta de trabalho.

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que há cerca de um século trouxe a linguística para o domínio da antropologia, afirmou que “os limites da minha língua são os limites do meu mundo”. Nesta óptica, acrescentar um idioma à proficiência dos Cabo-Verdianos nada retira, e só pode alargar a sua mundividência: o Crioulo para os afectos e a cultura, o Português para a partilha no universo da lusofonia, o Inglês para acertar o passo com o que de mais avançado se faz à escala global em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação. In English please: a língua inglesa e a internacionalização do Ensino Superior ao apertado escrutínio, tanto conceptual como empírico, a que foi sujeita. Investigações no âmbito do desenvolvimento cognitivo infantil revelaram que o pensamento se desenvolve antes da fala, colocando em causa a premissa básica da teoria.

 Por outro lado, as repetições dos trabalhos de campo na base da teoria expuseram sérias falhas metodológicas. E actualmente predomina a noção de que a cultura de um povo condiciona a sua língua, e não o inverso. A hierarquia das línguas sempre reconheceu as diferenças entre línguas nacionais – ligadas a um território –, línguas supercentrais, usadas em múltiplos territórios, e línguas hipercentrais, que ligam entre si os povos independentemente do território. São exemplos da primeira categoria o Italiano, o Sueco ou o Crioulo de Cabo Verde. No segundo grupo estão o Espanhol, o Árabe, o Português ou o Francês. Actualmente, só uma língua preenche os requisitos da terceira categoria: o Inglês.

A esta luz, a adopção pragmática de uma língua alheia para a partilha internacional de conhecimento afigura-se uma forma inteligente de não perder o comboio cada vez mais globalizado do desenvolvimento, sem a qual se corre o risco de ficar romanticamente enclausurado num silo a reclamar a língua como bandeira identitária. No presente, a adopção do Inglês como Língua Franca da Academia é o passaporte exigido para participar na vertiginosa viagem rumo às sociedades do conhecimento. No caso de Cabo Verde, essa opção abre também as portas ao recrutamento internacional de estudantes, algo reconhecido actualmente como um ingrediente essencial da sustentabilidade financeira das instituições de ensino superior.

Aceitando esta premissa, urge pôr em prática um programa de capacitação dos docentes universitários e investigadores de Cabo Verde para a utilização da língua inglesa como ferramenta de trabalho. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que há cerca de um século trouxe a linguística para o domínio da antropologia, afirmou que “os limites da minha língua são os limites do meu mundo”. Nesta óptica, acrescentar um idioma à proficiência dos cabo-verdianos nada retira, e só pode alargar a sua mundividência: o Crioulo para os afectos e a cultura, o Português para a partilha no universo da lusofonia, o Inglês para acertar o passo com o que de mais avançado se faz à escala global em matéria de Ciência, Tecnologia e Inovação.

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Eis um artigo de uma qualidade invejavelmente superior, que recomendo ao "professor" do post anterior leia vezes sem conta, até que transpire dicionário e gramática por todos os poros. É como os castigos físicos (género flexões de braço) que se aplicam na tropa aos recrutas que se portam mal ou não se esforçam.
Não há dúvida que o inglês é a única língua "hipercentral", ou, usando outro classificativo, universal. Mas é preciso ver que a língua inglesa tem o mandarim chinês à perna: o inglês é falado por 1,132 bilhão de almas e o mandarim chinês por 1,117 bilhão. No mundo ocidental é claro que para nós falará sempre mais alto o inglês como ferramenta unificadora na ciências e nas tecnologias. Mas vai ser preciso aguardar a evolução do mundo nas próximas décadas para ver onde ficará o centro de gravidade depois de a China juntar a sua esmagadora superioridade demográfica ao seu crescente desenvolvimento económico, científico e tecnológico. Ah, mas lembrei-me agora da Índia e a sua população de 1, 408 bilhão de almas. Isto porque, não obstante a diversidade de línguas nacionais no país, o indi e o inglês são as línguas da administração do Estado, sendo que o uso do inglês aumentou consideravelmente com o crescimento industrial do país e a chegada das multinacionais, ou seja, com a globalização. Desta forma, reajustando as minhas considerações, é bem possível que o inglês nunca venha a ser destronado do seu pedestal.
Quanto à língua nacional/oficial que entre nós melhor ferramenta se predispõe para a aprendizagem correcta do inglês, tendo em vista as exigências do mundo global, põe-se a velha e debatida questão de saber que vantagem efectiva poderá ter o crioulo (língua dos afectos e da cultura) em toda esta tramitação. O ensino oficial do crioulo (necessariamente uniformizado) contribuirá para melhorar o desempenho linguístico dos cabo-verdianos, como defendem os autores do ALUPEC? Isto é, facilitará a aprendizagem do português e línguas estrangeiras, neste caso o inglês?
Não acredito. Até porque considero que o "inginhero” do post anterior não é mais que uma vítima de todo este imbróglio linguístico em que nos meteram os pseudo-nacionalistas. Este epifenómeno só surgiu com a independência. E a sua evidência é tanta que em Portugal e no Brasil parece que tem sido exigida aos alunos caboverdianos uma prova de competência linguística para serem admitidos nas respectivas universidades.
Antigamente bastava uma boa quarta classe para os cabo-verdianos adquirirem um desempenho normal em português. Por exemplo, o célebre Cunco, mestre das Oficinas do Estado em S. Vicente, não era "inginhero", só tinha a quarta classe, mas tinha um notável engenho para lidar com as máquinas. E bem sei como ele escrevia o português porque era meu parente. Ah, o meu professor de Admissão ao Liceu, Alfredo Brito, julgo que só tinha a quarta classe, mas foi com ele que consolidei os alicerces da língua portuguesa que hoje falo e escrevo.

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