Por Adriano Miranda Lima[i]
Calha estar a escrever
numa altura em que se assinala o 99º aniversário de Mário Soares, o homem
político a quem muito devemos o privilégio de viver numa democracia prestes a
comemorar o cinquentenário. Ele que, se fosse vivo, não deixaria, mesmo em idade
mais avançada, de fazer ouvir a veemência da sua voz para condenar sem apelo
nem agravo aqueles que aproveitam a liberdade para atentar contra o regime
democrático e agredir os que o servem. Ultrapassa os limites do desrespeito o
teor de certas afirmações e atitudes, como a que se ouviu recentemente a André
Ventura quando proferiu que “é preciso dar um pontapé no traseiro ao Augusto
Santos Silva”. Este cidadão não é um parceiro de café ou tasca, é simplesmente
a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, eleito
pelo povo.
Ignoro que reacções
suscitaram na sociedade política tão deploráveis palavras. Mas se com o
silêncio e a passividade dos democratas a intenção é a pedagogia da tolerância
e da moderação, esquecem que isso pode ser interpretado como fraqueza ou
cobardia por aqueles que ignoram a ética e os princípios e não hesitam em
recorrer a processos iníquos para descredibilizar a vivência democrática. São
os que apostam na degradação do debate político e na tentativa de
desqualificação, deslegitimação e enfraquecimento do adversário. À argumentação
racional e fundamentada, preferem a provocação, a insinuação, a vacuidade e o
espalhafato verbal e gestual. De facto, a direita radical e populista é incapaz
de discussão em moldes democráticos, pelo que o discurso se centra e se
consagra na proclamação de inimigos políticos e no negativismo, não em
propostas sérias e responsáveis.
Porém, ao falar em
ameaças à estabilidade democrática, talvez seja curial valorizar também o
efeito deletério que indirectamente resulta da atitude política dos partidos
mais à esquerda. Partidos que se distinguem sobremaneira por uma sistemática e
cerrada oposição, mesmo contra políticas de governos do centro-esquerda, há que
reconhecer a quota parte das suas responsabilidades no bloqueamento da vida
nacional que volta e meia ocorre e leva a eleições fora do ciclo legislativo
normal. A história política desta II República fala por si. Basta revisitar os
vários incidentes de percurso que impediram o consenso nacional em sede
parlamentar e provocaram situações de ruptura orçamental, obrigando a três
intervenções do FMI, desde 1977, com inevitáveis reflexos na progressividade do
crescimento do país. Como geralmente se constata, o que esses partidos exigem é
a aprovação pura e simples das suas políticas programáticas, sob pena de
oposição obstrutiva, o que, se acontecesse a seu bel-prazer, convenhamos que desvirtuaria
a lógica e a coerência do programa de quem foi eleito para governar. O recurso
constante e exaustivo a reivindicações, greves e manifestações dos sectores do
Estado demonstra que tais prerrogativas são, por enquanto, praticamente
exclusivas de quem tem trabalho assegurado para toda a vida. Os sectores
privados não dispõem de instrumento de luta equiparável porque dependem de um
vencimento cuja garantia não tem a sustentação do poço sem fundo (no imaginário
de alguns) que é o Estado.
Assim, cada um que ponha
as mãos na consciência e avalie honestamente o peso inflexivo dos actos que
pratica quando a tendência é julgar a saúde do regime elegendo como os únicos
culpados os dois partidos que até agora assumiram a governação do Estado. É
muito cómodo colocar-se à margem e contribuir para engrossar o sentimento
anti-sistema, mediante proclamações e teatralizações demagógicas, servindo-se
preferencialmente das redes sociais, o meio por excelência onde a
extrema-direita se tem expandido aqui e em outros países.
O que se passa em
Portugal naturalmente que é influenciado pelo que vai acontecendo pelo mundo
fora, com as democracias a ressentirem-se do surgimento de forças políticas da
direita que radicalizam o discurso e inflamam o propósito de alterar os
fundamentos do Estado democrático. Mas nada acontece sem uma causa. Em quase
todo o lado, os países sofreram um abanão provocado pelas forças do mercado e
pela inversão ou desordenamento da hierarquia entre o interesse público e o
interesse privado. Hoje, ninguém já duvida de que a globalização, que se
propunha como a via para a resolução pacífica dos conflitos políticos, como
imaginou Fukuyama, de repente parece postergada, dando lugar à guerra, como
estamos a ver. Apreensivamente, aguarda-se o que sairá das próximas eleições
presidenciais americanas, porque o regresso de Trump representa uma potencial
ameaça à saúde das democracias mundiais, pela maléfica influência que à
distância não deixará de exercer no espaço planetário.
Aqui chegados, cabe
perguntar se a insuficiência ou a menor qualidade da nossa democracia
justificam a emergência de movimentos ou forças que lhe são adversas. A
resposta é dada pela história e dispensa considerações, tão clara é a diferença
entre a vida dos povos governados em democracia e a dos submetidos a ditaduras.
Mais, pergunta-se se o problema está na qualidade dos políticos ou no seu
insuficiente comprometimento com a causa pública. Com razão acrescida, a
resposta é redondamente negativa. O sistema político em apreço não é estável ou
definitivamente ultimado como ideia e conceito, e quem o interpreta e aplica
está tão sujeito às engrenagens da complexidade da própria natureza humana como
à instabilidade e mutabilidade dos fenómenos sociais. Porque ambas estão
irremediavelmente interligadas. Eu que não sou político e não tenho familiares
na política, considero absolutamente inaceitável alimentar o preconceito de que
os políticos são “eles” e nós somos “nós”, apontando-os como os únicos
responsáveis pelos insucessos do país. Ora, os políticos emanam da nação, e,
embora se devam distinguir por atributos e qualidades específicos, é surreal
supor que a sua idiossincrasia os diferencia necessariamente da massa genética
de onde provêm e onde a natureza forjou a matriz identitária comum. A
democracia não pode deixar de reflectir as virtudes e bem assim os defeitos do
todo colectivo, não exclusivamente ou segmentariamente os de quem é eleito para
liderar. Não é preciso muito esforço para se confrontar com o paradoxo que é
elaborar certos juízos denegridores da classe política por aqueles que a
escolhem. É disso que se alimentam os populistas e radicais, gente que tenta
enganar os ingénuos e os desatentos com artes de esquizofrenia política.
Estou convencido de que o
povo não deixará de fazer valer a sua sabedoria e o seu instinto quando
proximamente for às urnas, enquanto já se vai preparando para as festas
natalícias.
1 comentários:
Reafirmo os meus agradecimentos pela publicação neste espaço dos meus artigos de opinião. E aproveito para deixar aqui os meus votos de Boas Festas aos amigos Ondina Ferreira e Armindo Ferreira.
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