Por José Pedro de Barros Duarte Fonseca*
As razões do falatório não são as mais felizes, pois
trata-se da suspeita de plágio de um logotipo estrangeiro e possível
apropriação inadequada do mesmo. Custa-me muito a crer que um assunto desta
importância não tenha passado pelo crivo do Instituto da Qualidade, pelouro da
área da propriedade intelectual em Cabo Verde. Este órgão do Ministério da
Indústria e Energia tem de fazer uma busca internacional a esta marca nova
antes de a aprovar.
Eles são, no fundo, os verdadeiros
responsáveis se deixaram passar tal falha e por deixarem que se lance o logo
sem que se tenha feito um pré-registo da marca. Portanto não nos podemos
antecipar a qualquer pronunciamento deles e, acima de tudo, não nos podemos
substituir aos tribunais especializados em litígios sobre marcas, patentes e
modelos de utilidade e sair na praça pública a ditar sentenças sobre tão
delicada matéria. Temos de ter todas as variáveis em jogo na mão antes de
culpar seja quem for, nomeadamente se a outra marca ainda está protegida, se o
dono a terá licenciado ou se se encontra no domínio público.
Haja mais tranquilidade e seriedade no culpabilizar
seja quem for. Uma coisa é levantar a suspeita outra é substituirmo-nos aos
tribunais. Quero defender o rigor e a isenção intelectual que vem faltando em
algumas das publicações nas redes sociais.
Há duas grandes diferenças em termos de litígios de
propriedade intelectual em patentes ou marcas. Nas patentes copia-se uma
tecnologia ou processo, fabrica-se e tira-se vantagem económica dessa ação. Os
tribunais estão cheios de processos litigiosos de propriedade intelectual, o
mais icónico e estudado é o caso da Pepsi vs. Coca Cola, que acabam em chorudas
indeminizações.
Eu próprio (e Cabo Verde) já fui vítima de roubo de
uma patente de captação de energias das ondas do mar exposta na EXPO 98 em
Lisboa. Este projeto foi desenvolvido no INIT na Praia nos anos 80 e 90, teve
prémios internacionais em exposições de tecnologia na Suíça e Bélgica. Mais
tarde foi roubado e desenvolvido pelos ingleses, belgas e brasileiros. E não há
coincidências pois a empresa que aparece no Brasil a dizer-se promotora foi a
Tractebel que tinha um representante no INIT, onde desenvolvemos a patente. Ninguém
veio dizer nada em defesa dos interesses de Cabo Verde.
Isto é que acontece com as patentes em que os países
desenvolvidos se apropriam dos frutos da inovação de países mais fracos e tiram
proveito da sua propriedade intelectual. Esses países menos desenvolvidos
também têm culpas pois não valorizam os esforços dos cientistas e intelectuais
e eles acabam a sua vida na pobreza e com pensões de miséria. Mas sempre foi
assim na história e aconteceu com grandes cientistas como Tesla ou Roberto
Duarte Silva, entre muitos.
Hoje a Universidade Técnica do Atlântico está a criar
condições para a implementação de uma cátedra dedicada ao vasto trabalho
científico de Humberto Duarte Fonseca. Estas ações levam à atração dos jovens
para a ciência e novas tecnologias e estimulam a inovação e criatividade.
Vejam o caso das energias renováveis onde os
cientistas que registaram patentes e tiveram prémios e distinções
internacionais logo a seguir á independência, como Humberto Duarte Fonseca, Ruy
Spencer dos Santos ou eu próprio, não ocuparam lugares de dirigentes na Electra
ou Cermi, nem no Instituto de Qualidade. Outros se vão aproveitar do trabalho
pioneiro e de desbravamento de terrenos virgens.
O que nos vale é que a história se encarrega de repor
a verdade e mais tarde ou mais cedo, anos depois da morte desses cientistas,
aparecem praças, ruas e escolas com os seus nomes, enquanto que dos “diretores”
ninguém se lembrará. No entanto esses lugares continuam a ser para os “boys” ou
como se dizia no tempo do partido único, para os melhores filhos da terra, seja
lá isso o que for.
Voltando ao tema de início desta comunicação, nas
marcas basta que se use a forma de um logo, uma imagem ou uma palavra parecida
existente numa marca e chama-se a isso prática decetiva ou concorrência desleal,
com intuito de retirar vantagem económica dessa ação.
Quando o tribunal exige reparações elas são, em geral,
financeiras. Por exemplo se eu criar uma marca toblertwo estou a fazer
concorrência desleal ao toblerone e cabe a ele reclamar em tribunal. Casos
interessantes de uso indevido de marcas, já que estamos a falar do chocolate
toblerone é o uso de uma imagem das montanhas Matterhorn, que foi substituída
pela linha de uma montanha mais comum, para não violar as regras estabelecidas
pela Suíça sobre o uso de iconografia, depois de o proprietário da marca decidir
transferir parte da produção do chocolate para fora do país.
De acordo com uma lei de 2017, o “Swissness Act”, só é
permitido usar símbolos nacionais — como por exemplo a cruz branca sobre fundo
vermelho — ou a designação made in Switzerland em produtos alimentares
quando os ingredientes são exclusivamente, ou na sua maior parte, suíços (com
algumas exceções quando não existem no país, caso do cacau, por exemplo). Ora,
metade da produção da Toblerone vai passar para a Eslováquia — onde é feito
outro chocolate, o Milka — como anunciou a empresa em junho do ano passado, e a
“roupagem” do chocolate vai mesmo ter de mudar.
Em Cabo Verde temos o Monte Cara como símbolo nacional.
Sejamos francos e vamos ver que não é o mesmo com uma
marca de turismo que copia o logo de uma lavandaria. Nem sequer são ramos
concorrenciais. Talvez a lavandaria até se torne mais conhecida por isso.
É indiscutível uma semelhança gritante entre os dois
logos e tem de ser investigado em nome da honestidade intelectual, mas
convenhamos que nas redes sociais o que se tem visto são conclusões
precipitadas e um julgamento em praça pública com base em suposições quando o
assunto é muito mais sério e complexo.
Para fechar gostaria de dizer que temos de falar bem
dos nossos e valorizar estes novos tempos em que grandes médicos caboverdeanos
brilham nos EUA, jovens investigadores descendentes de caboverdeanos criam
empresas em start-ups que são vendidas à Google e cientistas e investigadores
descendentes brilham na Europa e África. É aí que nos temos de focar e o
governo tem a sua responsabilidade em acarinhar esses cientistas, atribuir
nacionalidade e reconhecimento, para estimular outros jovens, senão vamos sair
sempre a perder pois seremos roubados e os nossos projetos desenvolvidos em
laboratórios e empresas estrangeiros. Ficamos só com a fama e nas medalhas e
aclamações de futebolistas.
Para ilustrar este fenómeno queria aqui referir um
grande projeto de Humberto Fonseca, o balizador tangencial Dina-Kate,
abreviatura dos nomes dos seus pais, Leopoldina e Torquato. Esta tecnologia
teve muitos e distintos prémios e menções honrosas internacionais. Trata-se de
um sistema automático de navegação espacial, aérea, marítima ou terrestre que
se baseia na traçagem de linhas virtuais no espaço que são descodificadas por
um leitor, com base no efeito de Doppler. Assim um avião aterra em pleno
nevoeiro ou bruma seca, um submarino se desvia de minas ou duas naves acoplam
no espaço ou aterra na Lua.
Logo a seguir à apresentação do projeto os ingleses
andaram atrás de Humberto Fonseca, foram insistentemente a Angola solicitar que
ele cedesse a patente pois os aeroportos de Londres têm um problema frequente
de nevoeiro. Humberto Fonseca não vendeu e argumentava que o seu invento era
para Cabo Verde pois aqui também temos problemas de bruma seca.
Acontece que o poder de quem tem a rainha de
Inglaterra por trás era tal que a empresa inglesa Plessey Automatics, que mudou
de nome tempos depois, acabou mesmo por, misteriosamente, conseguir o projeto e
desenvolveu aquilo que hoje chamamos ILS. Um dia, ainda Humberto Fonseca era
vivo, mas já bastante doente, apareceu na televisão a notícia que o aeroporto
de Heathrow em Londres acabara de inaugurar um novo sistema de navegação aérea
designado por KATE II, que tornava segura a aterragem com visibilidade deficiente.
Muito desplante.
Ironia do destino que tal tecnologia foi criada por um
caboverdiano do Mindelo e que a ilha ande a mendigar pela instalação do sistema.
Nos anos a seguir á independência Manuel Duarte ainda tentou levar uma ação ao
tribunal de Haia, reivindicando a nossa autoria, mas em vão. Mascarenhas Monteiro
atribuí-lhe a medalha de 1ª classe do Vulcão, a título póstumo.
O facto é que só os países em cujos cidadãos
registaram, desenvolveram e foram premiados por frutos de propriedade
intelectual endógena são admitidos na Organização Mundial do Comércio, como
aconteceu com Cabo Verde nos anos 90, por sinal no mesmo dia que a China. Isto
só mostra que os países não se medem aos palmos, mas sim pela capacidade
intelectual dos seus cidadãos.
Em conclusão temos de admitir que nos temos destacado
em inovação e criatividade no futebol, nas artes, na música e literatura, o que
é ótimo para o desenvolvimento integral do cabo-verdiano. Também obtivemos, da
independência até agora, grandes vitórias na educação, bem como no
desenvolvimento de privilegiadas e sólidas relações internacionais que nos
permitem ter uma economia avançada e um turismo florescente.
Resta-nos agora trabalhar a área da propriedade
industrial. Falo com a autoridade de quem foi pioneiro na construção de modelos
reduzidos e de ter feito os primeiros ensaios de laboratório de tecnologias de
energia “made in Cabo Verde”. Não passei à fase de construção e teste de
protótipos porque o país ainda não estava preparado. O facto dessas patentes já
terem caído no domínio público passados 15 anos do seu registo, não quer dizer
que não as possamos desenvolver, apesar de perdermos a exclusividade.
Se quisermos associar-nos a uma empresa africana ou
chinesa e desenvolver o nosso projeto de energia das ondas do mar, por exemplo,
temos todo o direito, sem sermos acusados de plagio. Em alguns casos a evolução
dos materiais e tecnologias faz com que o produto seja ainda melhor que o
original. O centro de gravidade dos próximos passos até sermos donos das nossas
tecnologias serão as indústrias e as universidades.
Na universidade temos de mudar a mentalidade e deixar
de as ver como locais onde se ganha bem dando 10 horas de aulas por semana. Há
que fazer da universidade verdadeiros centros de inovação e investigação
científica. Recentemente foi criada a Fundação para a Ciência e Tecnologia em
Cabo Verde, grande iniciativa do governo nesse sentido. Assim chegaremos ao
objetivo de pensar as tecnologias, construir modelos, ensaiá-los, construir
protótipos, testá-los e introduzi-los no mercado. Essas novas tecnologias feitas
em Cabo Verde devem, dentro do possível servir objetivos estratégicos nacionais
como a energia, pescas e ambiente.
Se já alcançámos a categoria de país de
desenvolvimento médio graças às nossas conquistas na educação, a chave para o desenvolvimento
pleno reside na ciência e tecnologia. As ferramentas estão aí.
Mãos á obra
* Professor da UTA, Ph.D. em Eng. Mecânica IST- Lisboa 2004. Pós-graduação (Patent attorney) em patentes, modelos industriais, marcas, concorrência desleal, contratos de licença de fabricação e transferência de tecnologia. Uni. de Direito de Concord, EUA 1992.
1 comentários:
Foi-me muito proveitosa a leitura de artigo, pois são aqui denunciados factos que a maior parte dos cabo-verdianos desconhece. Designadamente, o balizador tangencial Dina-kate, invenção do Eng. Duarte Fonseca, que foi descaradamente roubado pelos ingleses. Na verdade, a aposta primacial da universidade cabo-verdiana deve ser na área das cências e tecnologias. Em detrimento dos chamados "cursos de lápis e papel", que pouco contribuem para o desenvolvimento do país.
Enviar um comentário