Por
Marco Neves
Com a devida vénia ao autor, Prof. Marco Neves, aqui
transcrevemos o oportuno e interessante texto, cujo título elucida o tema nele
tratado.
Neste Dia da Criança,
fazemos uma viagem à origem da palavra portuguesa «criança». E, como habitual
por aqui, também damos uma espreitadela a outras línguas…
Antes de começarmos,
note como a palavra tem um sufixo muito curioso: -ança. Encontramo-lo
em palavras que mostram um excesso, como «festança», mas também em palavras
menos superlativas: «confiança», «esperança» (entre tantas outras).
Portanto, o que este
sufixo faz é pegar num verbo e transformá-lo num nome. «Confiar» transforma-se
em «confiança»; «esperar» transforma-se em «esperança» — e por aí fora.
Ao contrário doutros
sufixos, o sufixo -ança parece ter perdido a força. Criou palavras durante
séculos e, um belo dia, cansou-se. Hoje, é difícil usá-lo para criar novas
palavras. «Amar» pode transformar-se em «amança»? Dificilmente. «Parar» pode
ser «parança»? Na verdade, sim: «parança» está nos dicionários, tal como, entre
outras mais raras, «falança». Mas palavras como «teclança» seriam difíceis de
criar agora (mas nunca se sabe…).
Em contraste, há
outros sufixos que continuam a trabalhar sem parança: se amanhã aparecesse um
país chamado «Talaguistão», é bem provável que os seus habitantes fossem
os talaguistaneses.
O sufixo -ês está vivo e recomenda-se.
No caso da
palavrinha que nos trouxe aqui, o sufixo -ança, num tempo em que ainda andava
cheio de pujança, encontrou o verbo «criar», chegou-se a ele e nasceu uma bela «criança».
Este «criar» veio — surpresa! — do latim, mais propriamente da forma verbal
«creāre». O verbo latino já tinha vindo da antiga forma proto-indo-europeia «*ḱer-», que significava «crescer»
ou «fazer crescer» e que também
está na origem do verbo português «crescer». O verbo «criar»
também deu origem a «criatura»,
«criação», «cria», «criadouro»…
E o -ança? Veio do
sufixo latino «-antia», que deu origem a sufixos semelhantes em muitas línguas:
o castelhano «-anza», o catalão «ança», o francês «ance», o italiano «anza»…
Curiosamente, esta
mistura entre o verbo «criar» e o tal sufixo deu origem a uma palavra muito
parecida em castelhano: «crianza». Só que, neste caso, o significado
não é o próprio humano pequenino, mas sim o processo de criação… O
dicionário da Real Academia Española dá este significado à palavra (entre
outros): «Acción y efecto de criar, especialmente las madres o nodrizas
mientras dura la lactancia.» Ou seja, «la crianza del hijo» é
a «criação do filho».
A maneira como as
línguas próximas moldam os materiais de forma subtilmente diferente deixa-me
sempre com cócegas no cérebro. É como se, nestas pequenas diferenças, víssemos
o avesso da costura com que se cosem as línguas. Cada um de nós tem a sua
pancada; para mim, quando me ponho a olhar para as línguas e as pequenas
diferenças entre elas, sinto-me como criança com um brinquedo novo.
Feliz Dia da
Criança!
1 comentários:
Mais um interessante texto em que o autor pesquisa para encontrar a relação entre a gramática (ou as gramáticas) e o significado de algumas efemérides. Percebo a excitação que sente - regressando à criança que foi e se calhar nunca deixou de ser - quando se queda a olhar para as línguas e as diferenças entre elas.
Hoje, Dia da Criança, liguei e falei com as duas filhas (52 e 50 anos), a neta (24 anos) e o neto (14 anos) porque continuo a ver, intacta, a criança que foram. Sinto é pena de não poder voltar a ser avô e ciente de que só serei bisavô se a neta não protelar muito a procriação (é solteira ainda). Talvez seja pelo reforço desse sentimento afectivo que a condição de avô concede que desde há alguns anos me regalo a ver as crianças a brincar ou na companhia dos pais. Muitas vezes, disparatadamente, até reprimo o impulso de pedir quem as leva ao colo para mas emprestar por um bocadinho. Hoje mesmo aconteceu quando passei na rua por uma jovem mãe. E escusado é confessar o meu abatimento moral quando as televisões noticiam a morte de crianças nas tenebrosas paragens do mundo que sabemos quais são. Em África, na Europa Oriental ou no Médio Oriente, sobretudo. No fundo, todos nós nunca deixamos de ser crianças. E ainda bem.
Um abraço
Adriano
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