1. Assistimos – aqueles que tiveram o privilégio de ter, no momento, energia eléctrica – na passada 4ª feira a mais um sensaborão “debate” televisivo sobre as presidenciais. Debate não, porque só em escassos momentos ele se esboçou, mas sim às respostas dos candidatos a determinadas questões. Com o devido respeito e consideração que nos merecem os jornalistas presentes questionamos seriamente o seu papel único – cronometristas. Nada mais fizeram do que dizer aos candidatos que o tempo havia esgotado. Mesmo acerca do tempo Aristides Lima estava completamente perdido e poucas vezes utilizou na íntegra os dois minutos e meio a que tinha direito e que devia saber, porque fruto do acordo entre eles. Os jornalistas não foram sequer capazes de centrar as respostas dos candidatos às questões levantadas (lidas). É o caso (não único), por exemplo, da resposta evasiva de Aristides Lima à pergunta crucial, directa e concisa formulada por um telespectador/internauta sobre a sua participação na reunião do Conselho Nacional do seu partido que elegeu Manuel Inocêncio.
2. A tentativa por parte de Jorge Carlos Fonseca (JCF) de animar o debate através de um “fait divers” – as declarações de José Maria Neves acerca da morte de Cabral – não me pareceu muito feliz, e foi pouco pertinente. Primeiro, porque se trata de uma mensagem directa e exclusivamente dirigida para o interior do PAICV com destinatário identificado; segundo, porque fora desse contexto, o assunto nada tem a ver com as presidenciais; terceiro, porque os pergaminhos – políticos, profissionais, intelectuais e de cidadania – de JCF não se coadunam com o recurso a argumentos e situações menos elevados e descontextualizados; por último, porque desta vez JMN não disse nenhuma inverdade.
3. Amílcar Cabral é uma figura da História Universal e não pertença, “amigo” ou “familiar” de quem quer que seja. E sob este ângulo, falar da morte de Cabral é, por exemplo, como falar da morte de John Kennedy, Patrice Lumumba, Olof Palm ou de outros homens famosos da História barbaramente assassinados. Haverá ao longo dos anos inúmeras teses sobre Amílcar Cabral e a sua Obra, que se diferenciam umas das outras por uma vírgula a mais ou a menos ou uma palavra diferente… Não compreendo a sanha que suscitaram as declarações de JMN.
4. A morte de Amílcar Cabral é tabu (ou trauma) para aqueles que a viveram directamente e não para o apuramento histórico onde o véu se vai desvendando tese após tese. De tal forma é tabu (ou trauma) que nem Aristides Pereira, companheiro e adjunto de Amílcar Cabral se atreveu a “contar” a sua verdade no seu livro endossando-a, imagine-se, ao cubano Óscar Oramas. Como se diz na Guiné: é segredo de barraca de fanado. Aliás, a morte de Amílcar Cabral é hoje, tido como monopólio intelectual de Óscar Oramas, Oleg Ignatiev e José Pedro Castanheira entre poucos outros, e, estranhamente, ninguém de Cabo Verde, da Guiné-Bissau ou do PAIGC não obstante os seus “historiadores” militantes.
5. Não é preciso ser Sherlock Holmes para saber que JMN desta vez até tem razão. Basta lembrar, na sequência da morte de A. Cabral, do número incalculável de “camaradas” que foram fuzilados ou barbaramente espancados até à morte para se inferir que o assunto era fundamentalmente interno. E não se circunscreveu aos assassinos materiais. Portanto dizer que derivam da falta de lealdade e que constitui uma traição é de La Palice. Aliás, é o próprio A. Cabral que numa profética premonição disse:
“Se um dia eu for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente por um homem do meu povo, do partido, talvez mesmo, da primeira hora.”
6. E o que espanta é mais a reacção que veio da oposição. E, francamente, JMN tem aberto tantos flancos para atacar que não vejo necessidade nenhuma de o fazer por figuras gradas da oposição, neste que considero um falso facto político. E não acredito que a nossa classe política, nomeadamente a oposição, tenha sido impulsionada por mimetismo com o “caso Camarate” em Portugal que volta e meia abre processos, para proceder de forma pouco consentânea com a realidade do assassínio de A. Cabral. Ponhamos os pés no chão. Com problemas sérios na agenda do País, empolgar ou mesmo falar da morte de Amílcar Cabral nesta “altura do campeonato”, para além de uma citação histórica, é revelador de uma oposição sem rumo e sem ideias, com pouquíssima capacidade de avaliar o estado real em que nos encontramos e que se agarra a qualquer “fait divers” para simular que está activa e vigilante.
7. Amílcar Cabral foi assassinado em Conacry, há cerca de quatro décadas, e não em Cabo Verde… A sua morte é já, há bastantes anos, um caso de investigação histórica e não criminal. E pode ser referência de qualquer conversa política. Basta situá-lo no seu espaço e tempo para o saber. Pedir contas pela sua morte ou solicitar uma investigação criminal é de uma insensatez política confrangedora. Ou um grotesco farisaísmo. Dissipar energias trazendo a sua morte para o debate político fora do contexto meramente histórico e/ou ideológico é de uma ligeireza assustadora quando o País se confronta com inúmeros problemas graves e determinantes para a sua sobrevivência, bem-estar e futuro.
8. Penso que não devemos dissipar energia entrando na guerra dos outros quando precisamos dela para as nossas batalhas. Devemos escolher criteriosamente os alvos. Por exemplo, a nossa participação na Comissão Permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas não é uma mais-valia a ostentar. Todos os países da CEDEAO já lá estiveram – da Gâmbia à Nigéria passando pela Guiné-Bissau, Serra Leoa ou Burkina Faso. Alguns até duas e três vezes e ninguém viu o prestigio que daí adveio a não ser para determinadas pessoas atingirem os seus fins.
9. Preocupante, e não tive ainda ecos sobre o devido tratamento do assunto, é o grito de alerta dado por Felisberto Vieira:”Só peço jogo limpo”. E di-lo quem tem autoridade para o fazer. Ele conhece muito bem os meandros e o funcionamento do seu partido. Tem sido “general de campanha” de todas as eleições ganhas pelo PAICV, designadamente, as duas últimas presidenciais de triste memória. Jorge Carlos Fonseca que se cuide. Eles conhecem-se e defendem-se. E até pode acontecer que da sua vigilância mútua JCF se beneficie, desenvencilhando-se da crónica “ingenuidade” do MpD neste particular.
10. Voltando ao “debate” não é a resposta àquelas questões que nos levaria a escolher os candidatos. As respostas não significam de per se capacidade, carácter, integridade e descomprometimento político para as cumprir. Temos que ir para além das simples declarações. Temos que analisar cada um dos intervenientes e situá-los. E dos três candidatos elegíveis – o Jack que me perdoe a franqueza – Jorge Carlos Fonseca é aquele que melhor se posiciona para um desempenho com contornos de maior isenção. Não é da oposição formal nem é da situação. E não tem com o Governo nem com o PM qualquer afinidade ou animosidade. Tem portanto distanciamento e posicionamento necessários para ser um bom árbitro e conhecimentos para intervenções cirúrgicas quando necessárias. Dos outros dois, Manuel Inocêncio de Sousa é completamente alinhado. É ele que o diz sem qualquer titubeio. É um candidato integrado no projecto hegemónico do seu partido. Quanto a Aristides Lima é sabido que tem uma guerrilha aberta com o PM. É a essência da sua candidatura. Não hesitou em cindir o seu partido para o benefício do seu projecto político pessoal sem sequer ter exaurido os mecanismos de recurso. Ninguém acredita que ele possa ser um factor de união do País tão necessário para os tempos difíceis que aí vêm. Num quadro absolutamente lógico, com ele na presidência, não é expectável um ambiente de estabilidade, o que seria mau até para a oposição. Contudo, os políticos são como os melões…
A. Ferreira
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