Caro Leitor, perca uns minutos do seu tempo e leia este
belíssimo texto de apresentação do livro de A. Ferreira, "Mulheres de Pano Preto" por Maria Odette Pinheiro no Salão Nobre da
Câmara Municipal de S. Vicente.
Fazendo jus ao
livro, o texto é também um convite a uma reflexão sobre o processo da nossa
independência e sobre a nossa História recente.
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APRESENTAÇÃO DO LIVRO “MULHERES DE PANO
PRETO”
(ARMINDO FERREIRA, Edição do Autor,
2015)
São Vicente, 14 de Janeiro de 2016
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por Maria Odette Pinheiro
Mulheres
de Pano Preto, o livro que está a ser aqui apresentado, é uma obra que
essencialmente descreve acontecimentos que na Guiné e em Cabo Verde tiveram
lugar grosso modo entre pouco antes
do 25 de Abril de 1974 e pouco depois do golpe de estado do chamado Movimento
Reajustador que, a 14 de Novembro de 1980, pôs fim ao projecto da unidade
Guiné-Cabo Verde.
É
com muita habilidade que o Engenheiro Armindo Ferreira descreve esses
acontecimentos, usando o género historiográfico da novela histórica, através do
qual, usando a ficção, pela boca das suas personagens, com descrições e
diálogos muito bem conseguidos e de agradável leitura, vai contando e
interpretando os eventos, os quais tiveram consequências determinantes na vida
das populações tanto da Guiné como de Cabo Verde.
Nascido
na Guiné, filho de pai caboverdiano e mãe guineense, o autor fez os estudos
liceais parcialmente na Guiné e parcialmente em Cabo Verde, e os superiores em
Portugal. Conhecedor destes três países, viveu e trabalhou na Guiné durante
grande parte dos acontecimentos descritos, mantendo com Cabo Verde um contacto
mais ou menos estreito através de laços familiares.
É
assim que as suas personagens ficcionais se encontram bem posicionadas para nos
informar acerca do que aconteceu nesse período, descrevendo com maior ou menor
vivacidade a atmosfera da época, os sonhos e as esperanças, as quase certezas;
mas, também, desfazendo mitos e apontando as incoerências, lembrando os
atropelos aos direitos humanos, o sofrimento de tantos nas duas nações em que o
Estado esteve dominado pelo mesmo partido único; desmistificando, assim, muito
do que se tem dito ou silenciado acerca desse período
O
título, Mulheres de Pano Preto, tem a ver com as viúvas guineenses e as mães
enlutadas que perderam os seus filhos na esperança da liberdade, durante a luta
da independência; mulheres imortalizadas no poema de Armando Salvaterra,
cantado pelo artista guineense José Carlos Schwarz, Mindjeres di Pano Preto.
São
mulheres que, segundo as personagens do livro, sofreram duplamente: primeiro,
pelos horrores da guerra que lhes levou os seus entes queridos; depois, por
terem sido traídas nas promessas de dias melhores, pelas quais a independência
da Guiné acabaria com a opressão; e que a liberdade longamente sonhada seria
finalmente alcançada; e que da luta surgiria o tão propalado homem novo: um
homem abnegado e desinteressado, que poria o interesse do seu povo acima de
todos os outros interesses, para trazer à Guiné a almejada paz e o progresso na
igualdade e no respeito pelos direitos de todos os seus filhos.
Na
página 120 é-nos dito que quando os altos dirigentes do PAIGC chegaram a
Bissau, e fizeram o primeiro comício, “a população estivera radiante e
transbordante de júbilo… Houve pessoas que choraram de contentamento, outras
abraçavam-se e formulavam certezas num amanhã de progresso e de
desenvolvimento; e risonho para as gerações vindouras. Uma nova era e uma nova
esperança acabavam de ser anunciadas e, para muitos, de nascer para todos os
guineenses”.
Mas,
bem ao contrário, as mulheres de pano preto, à semelhança de muitos outros
homens e mulheres, despertaram abruptamente do seu sonho e viram-se privadas
daquilo por que tanto haviam ansiado. Encontraram-se desencantadas, ameaçadas,
sem as liberdades mais elementares, desrespeitadas, violentadas, numa atmosfera
de medo, quase pavor, esperando a hora em que lhes poderiam bater à porta para
levar novos entes queridos, muitas vezes ao encontro duma morte clandestina,
sem direito a julgamento, funeral ou campa.
A
cena desenvolve-se principalmente na Guiné, começando à volta de um grupo de
alunos do liceu Honório Barreto, que viviam ainda uma adolescência descuidada e
ensaiavam timidamente os primeiros namoricos.
Cabo
Verde é o cenário alternativo, pois acontecimentos que cá tiveram lugar são
também contados, embora de modo indirecto, através de cartas ou das visitas de
familiares que viviam nestas ilhas, mantendo, a família e os amigos na Guiné a
par do que por cá ia acontecendo.
Parte
do enredo passa-se, também, em Portugal, já que, como era vulgar acontecer,
alguns dos protagonistas foram para lá prosseguir os estudos, e lá ficaram a
viver. Alice e Tomás, personagens principais, mais outros ligados a eles pela
amizade dos bancos do liceu, então já formados e a trabalhar, são apanhados
pelo 25 de Abril na então metrópole. E como tantos caboverdianos e guineenses
fizeram no após 25 de Abril, acorreram pressurosos, com a esperança de que
seriam uma mais-valia para a reconstrução da sua terra, agora em liberdade e
com igualdade de todos os cidadãos.
Dizem-nos
na pág. 117 que, todos os que assim faziam, “faziam-no absolutamente
convencidos de que o mérito e o conhecimento prevaleceriam sobre o diploma ou
estatuto de combatente. Estavam dispostos a largar tudo e voltar à terra, em
atitude generosa que consideravam prioritária face aos seus projectos pessoais,
para dar o seu melhor perante aquilo que achavam serem as necessidades do país
em recursos humanos ante a almejada gigantesca tarefa de reconstrução
nacional”. Tomás e Alice nunca imaginaram quanto se arrependeriam mais tarde,
com a prisão arbitrária de Tomás e acontecimentos bem graves que puseram em
risco o seu casamento!
Infelizmente,
em todos os tempos a História (com H maiúsculo) é escrita e contada da
perspectiva dos vencedores. Há uma verdade oficial que impera e tende a
perdurar, raramente contestada. Frequentemente os vencidos são silenciados ou a
sua voz perde-se no esquecimento até da geração presente, quanto mais das
gerações futuras; ficam, aqui e ali, só vozes tenuemente ouvidas através de
registos esparsos dos que teimaram em não se calar e em continuar a contar a
verdade que viveram, ou viram viver, e que difere bastante da perspectiva linda
e triunfante dos que venceram.
Este
é o mérito de Mulheres de Pano Preto. Conta a outra metade da verdade, da
história de todos nós, da independência, para que ela não seja monocórdica ou
fique unilateral; para que apresente os diversos aspectos, muitas vezes
contraditórios: uma história feita, é verdade, de sacrifício e abnegação da
parte de milhares de guineenses e poucas dezenas de caboverdianos que na Guiné
lutaram pela independência dessa colónia, esperando conseguir a reboque a de
Cabo Verde; uma guerra em que houve glória, mas também contradições e horrores,
em que muitas vezes a praxis se
desviou profundamente, quase que posso dizer, opostamente, ao que era
anunciado; o que talvez se possa justificar por serem assim as guerras.
Mas
a guerra acabou. E os portugueses partiram. E o que se seguiu foi decididamente
não glorioso, pois os combatentes escolheram cobrar dos respectivos povos um
juro e um capital excessivos pelo que haviam investido na luta, coartando-lhes
a liberdade, proclamando-se únicos interlocutores legítimos na decisão do seu
destino e, mais pronunciadamente na Guiné, arvorando-se em senhores da vida e da
morte dos seus “súbditos”, como nas monarquias absolutas da Europa dos tempos
de antanho!
Somos
lembrados das prisões sem culpa formada e por tempo indeterminado, dum e doutro
lado do mar, em celas insalubres e conspurcadas com esterco, sem direito a
advogado, a alimentação e a visitas, esperando o dia em que os algozes
resolvessem soltar os presos e devolvê-los à liberdade. Aliás, liberdade, não –
pois liberdade não rima com mordaça. Aprisionem o ser humano no seu corpo, mas
não lhe aprisionem a alma: não lhe roubem a liberdade de pensar e de se
exprimir, de ser ele próprio, de escolher o seu destino, o que talvez seja o
pior dos sofrimentos!
Mas
nessa época, ambos os tipos de liberdade eram bastante condicionados, e o livro
reflecte isto bem: falar não se podia, pois havia delatores por todos os lados;
e para alguém se deslocar para fora de Bissau, ou para sair da Guiné e de Cabo
Verde, precisava de uma autorização de saída, que era negada ou dificultada a
muitos, conforme estivessem ou não nas boas graças dos dominadores. Personas non gratas eram impedidas de sair, e alguns foram-no, mesmo de Cabo
Verde, até para continuar os estudos; outros foram metidos num avião, sem aviso
prévio, e obrigados a aportar a outras paragens: desterrados da sua própria
terra.
Pelo
livro, se ainda não sabíamos, somos informados dos fuzilamentos dos comandos
africanos: milhares e milhares de soldados guineenses que lutaram do lado das
tropas portuguesas, e que mesmo depois de desarmados voluntariamente ao abrigo
de falsas garantias, foram raptados na noite para nunca mais serem vistos,
caindo em valas comuns mercê das balas de pelotões de fuzilamento: eles e
muitos civis. Desapareceram sem deixar rasto. Houve também fuzilamentos
públicos, aos quais a população foi conclamada a assistir – até crianças! Foi
então que, página 299, assistindo ao que se passava na sua Guiné, as mulheres
de pano preto, as mulheres grandes da Guiné, “puseram as mãos na cabeça e
gritaram bem alto a sua profunda dor e a sua angústia”.
Assim,
muitos foram como que cilindrados por não cooperarem com o partido, ou por
diferirem dos seus dogmas, talvez o principal tendo sido o da unidade
Guiné-Cabo Verde, acerca da qual os povos dos dois Estados nada puderam dizer,
e que tanto dum lado como doutro era motivo de forte contestação.
É
possível que em Cabo Verde na altura não se tivesse a noção exacta do quanto os
próprios guineenses eram opostos a esse projecto, o da unidade, mas os diálogos
do livro são esclarecedores. Viam-no como um modo de os cabo-verdianos eternizarem
a dominação dos guineenses, o que era a sua interpretação do papel que os
nossos patrícios, devido à sua maior escolaridade, desempenhavam na
administração colonial, sempre em posições de mando ao lado dos portugueses;
além de que, outrora, a Guiné fora um distrito administrativo do Governo de
Cabo Verde; e ainda outros antecedentes mais negativos, como a Guerra da
Pacificação, em que soldados caboverdianos haviam sido utilizados para
submeterem os guineenses; para cúmulo, na guerra da independência os
caboverdianos eram a cúpula, tendo morrido pouquíssimos em combate – enquanto
os guineenses seguiam para as frentes da batalha e morriam às centenas,
morrendo também aos milhares a população civil, que era dizimada pelos
bombardeamentos – não tendo morrido ninguém em solo caboverdiano.
Mas
a questão da unidade era tabu, não podia ser discutida nem contrariada, nem
sequer em Cabo Verde, onde havia argumentos contra muito válidos. Quem se
opusesse à unidade era inimigo do partido. E muitos dos que sofreram prisões e
perseguições várias, tanto na Guiné como em Cabo Verde, sofreram-nas porque
foram veementemente contrários a esse projecto. Mas o futuro veio a dar-lhes
mais que razão: era uma unidade tão artificial, que sensatos eram os que se lhe
opuseram.
Quanto
a Cabo Verde, onde não houvera luta armada, com a independência de todas as
colónias garantida por Portugal na nova Lei Constitucional de Julho de 1974 e a
nossa especificamente estipulada no acordo de Argel de 29 de Agosto do mesmo
ano, a transição para a independência poderia ter-se dado com serenidade,
reflexão e sem clivagens sociais. O acordo de Argel afirmava que “a delegação
portuguesa, em nome do seu governo, reafirma o direito do povo de Cabo Verde à
autodeterminação e independência, e garante a efectivação desse direito”.
Mas
a agenda do partido, como o livro torna bem claro, não era simplesmente levar
Cabo Verde à independência (como também não o era para a Guiné). Para ambos os
territórios o objectivo era instalar o regime totalitário que se seguiu, sobre
a égide do partido único de orientação marxista-leninista, regido pelos que
combateram na Guiné e mais uns poucos que concordavam com a sua orientação
ideológica.
Essa
agenda requeria que se instalasse um clima revolucionário que legitimasse a
imediata entrega do poder, que não desse lugar a quaisquer reflexões e em que
se pudesse subjugar todas as correntes contrárias. Esse clima, quase estado de
sítio, é evidente nos diálogos e nas cartas trocadas pelos personagens do
livro: milícias populares armadas a patrulhar as ruas, barreiras nas estradas
para procurar armas imaginadas (numa terra em que sob Portugal a população
nunca teve armas!), tomada das rádios para passar só a mensagem revolucionária,
insultos gritados e escritos nas paredes das casas, prisões arbitrárias sob
acusações nebulosas ou desprovidas de fundamento, pessoas exiladas. Todos os
que poderiam ter uma voz discordante foram silenciados e amedrontados, de modo
que a Assembleia Nacional Popular que declarou a independência e passou a reger
o país sob a batuta do partido, tinha 100% de deputados que o apoiavam.
Implantou-se,
assim, um regime opressivo e autoritário, que atrasou de muitos anos a chegada
da democracia e o desenvolvimento mais acelerado dos dois Estados. E ao causar
fracturas profundas, das quais ainda não conseguimos recuperar, e ao destruir a
camada mais lúcida e preparada da sociedade civil, criou um estado de apatia e
desmotivação e uma dependência do Estado, que Cabo Verde ainda não conseguiu
sacudir.
Mulheres
de Pano Preto contribui também para desmistificar duas falsidades que continuam
a imperar entre nós: a primeira, que quem não estava de acordo com o partido
era contra a independência, especialmente, como já vimos, quem estivesse contra
a unidade Guiné-Cabo Verde, caso da UPICV, partido com maior implantação em
Santiago, e que foi desmantelado pela força, pela prisão e desterro dos seus
líderes.
A
segunda falsidade: que aqueles que pediam alguma reflexão, e um tempo mais
alargado de transição, para se poder equacionar o problema da autossuficiência
de Cabo Verde e da sobrevivência do povo, até então vitimado pelas secas e
pelas fomes, eram, igualmente, contra a independência. Foi o caso da UDC,
tentando a sua implantação em São Vicente, que queria uma transição mais
alargada e reflectida, equacionando todas as alternativas. Nunca desejaram que
tudo continuasse na mesma, como tanto se faz crer. Estas duas falsidades ainda
hoje são esgrimidas por alguns, para justificarem os desmandos de então.
Além
dos que eu tenho mencionado, Mulheres de Pano Preto é decididamente um livro
que ajuda a esclarecer muitos outros factos desse tempo determinante na nossa
história, sendo portanto de leitura obrigatória para os que quiserem ser bem
informados.
Se
me permitem, terminarei com uma palavra pessoal, já que o lançamento do livro
foi integrado nas comemorações desta semana, entre o 13 e o 20 de Janeiro, duas
datas tão importantes para nós. Os meus comentários não têm o fito de reabrir
feridas mal cicatrizadas ou de acirrar ódios e malquerenças meio adormecidos.
Mas precisamos, sim, de encontrar um equilíbrio, em que, dando o verdadeiro
valor à independência, se reconhece que ela poderia ter sido alcançada noutro
clima e por outras vias que não a da clivagem social, a destruição das elites
caboverdianas e do sofrimento desnecessário de tantos homens e mulheres que não
se reviam na ideologia e nos dogmas do PAICV. Poderíamos ter sido livres em
1975! Poderíamos ter tido eleições multipartidárias e um regime aberto. Até porque
os 15 anos de partido único nada fizeram para amadurecer o povo politicamente.
Pelo contrário! O amadurecimento só pode acontecer em liberdade!
Assim,
recordar o outro lado tem o mérito de ajudar a suster um certo triunfalismo dos
vencedores e a excessiva cultura dos heróis, trazendo-os a um nível mais
terra-a-terra, de homens corajosos, sim, mas que cometeram os seus erros, e
alguns bem crassos: fizeram bem, mas à mistura houve muito mal e sofrimento
desnecessário.
Bom
seria que os que causaram tal sofrimento o reconhecessem, tivessem um pouco de
humildade e até pedissem perdão aos que foram feridos pelo caminho, o que os
elevaria moralmente e ajudaria a sarar as chagas que abriram. Na ausência
disso, peçamos a Deus que, embora não esquecendo o passado, saibamos todos
construir um futuro melhor: futuro que só pode ser bem construído quando nos
livramos das mágoas e dos ressentimentos, quando estes já não nos afectarem a
ponto de determinarem o nosso comportamento e nos fazerem desviar da construção
de um País de paz e concórdia.
Mulheres
de Pano Preto contribuirá, decerto, para que um dia, quando com o devido
distanciamento se escrever a verdadeira história, ela não seja silenciosa
quanto ao sofrimento dos vencidos, mas seja uma história equilibrada, que
considera todas as perspectivas. Então, talvez, algum sábio conte aos seus
netos que a bandeira custou em mais do que uma maneira.
Bem-haja
a independência, mesmo com os custos que teve, e bem-haja o 13 de Janeiro, que foi
a verdadeira libertação desta terra. Quanto à abertura, eu teria também algo a
dizer. Mas isto seria outra história!
Por
favor, leiam o livro!
2 comentários:
Para nós que vivemos com alguma ingenuidade os períodos antes e pós independência, e também o 13 de Janeiro já bastante amadurecido, este livro, bem como os de outros autores com histórias semelhantes deviriam merecer por parte instituições responsáveis pela formação de gerações futuras uma maior divulgação.
Apesar de serem muito recentes, estes acontecimentos, assim como também a escravatura, fazem parte integrante da história do País e, os alunos dos liceus merecem estas informações, que devidamente trabalhadas lhes ajuda a perceber melhor a realidade em que estão a viver o dia a dia.
Livro sobre um período muito interessante e difícil da história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde mas que felizmente acabou da melhor maneira para este último país.
Braça,
Djack
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