Com a devida vénia ao autor, um dos maiores
pensadores portugueses deste tempo, Professor Eduardo Lourenço, transcrevo aqui
um texto de sua autoria sobre a nossa Língua comum e que me foi enviado pelo amigo e colaborador
do «Coral Vermelho», Adriano Miranda Lima. Convido o leitor a lê-lo como uma meditação sábia, sobre os transcendentes e históricos processos de formação plural e diversa da Língua portuguesa.
A CHAMA PLURAL
Por Eduardo Lourenço
Não se pode dizer de língua
alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais
exacto. É ela que nos inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os
portugueses falam, que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade
presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente
transformação e trans-histórica, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem
ouviríamos nela os rumores originais da longínqua fonte sânscrita, os mais
próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes bárbaras
das muitas que assolaram a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica
língua, que espanta não tenham sido mais densos, e teremos o que chamámos, com
apaixonada expressão, o “tesouro do Luso”.
Na nossa Idade Média o
estatuto da língua era, como o das outras falas cristãs, um “falar” sem
transcendência particular. Com o Renascimento, abertura sobre o universal
segundo o modelo greco-latino, paradoxalmente, os “falares” europeus tornam-se
“língua”, e a língua, signo privilegiado de identidade. Nascem os discursos
hagiográficos da língua nacional, da bela língua italiana para Bembo, da altiva
fala castelhana para Nebrija, da polida língua francesa para Du Bellay, da
nossa nobre e suave língua portuguesa para Fernão de Oliveira, Barros, António
Ferreira que a converte em objecto de culto e de orgulho. Diz-me que língua
falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum destes endeusamentos ou apologias
da dignidade das línguas nacionais é inocente. Fazem parte do processo
histórico em que culmina o sentimento nacional.
Descobre-se que a língua não
é um instrumento neutro, um contingente meio de comunicação entre os homens,
mas a expressão da sua diferença. Mais do que um património, a língua é uma
realidade onde o sentimento e a consciência nacional se fazem “pátria”.
Ainda vem longe o tempo em
que para cada uma das línguas dominantes da cultura europeia se torne também
claro que uma língua não é um dom do céu, destinado à vida eterna, mas um
tesouro que deve ser defendido da usura do tempo e das pretensões das outras a
ocupar os espaços sem defesa.
A língua é uma manifestação
da vida e como ela em perpétua metamorfose. Não há expressão mais melancólica
que a tão comum e tão pouco meditada de “língua morta”, nem maravilha maior que
a da sua ocasional ressurreição. Como o universo, uma língua viva deve estar em
perpétua expansão, ao menos no seu espaço interior, sob pena de se tornar ainda
em vida “língua morta”. Essa vitalidade não releva apenas da mera ordem
voluntarista ou do ritualismo conservador de academias ou profissionais das
nobres ciências da gramática, ou da filologia. É, sobretudo, obra dos que a
trabalham ou a sonham como exploradores de um continente desconhecido:
romancistas, dramaturgos, poetas, sobretudo, que não apenas os que assim se
chamam mas todos os que na quotidiana vida inventam sem cessar as expressões de
que precisam para não se perder tempo que passa, do mundo que se renova e
transfigura.
É de supor que os homens se
tenham inventado como seres falantes por um acto mágico, por um “fiat” ainda
hoje misterioso que cada palavra recomeça como se o fogo de hoje se ligasse ao
fogo original por uma cadeia de chamas que se ateassem umas às outras. Essa
magia original é ao mesmo tempo um desafio e um exorcismo. O destino de cada
cultura está intimamente ligado a esses dois papéis que toda a língua encarna.
As culturas que o esquecem são as que têm já, dentro de si, as primícias do seu
esgotamento. Por graças da História, a língua portuguesa encontrou-se, em dado
momento, em condições de elevar esse desafio, esse exorcismo conaturais a toda
a fala, a exercício, quase se podia dizer, a missão vital, amalgamando como
poucas o destino da sua cultura ao destino da sua língua. Essa aventura podia
ter sido, como outras europeias, apenas um exemplo mais da violência colonizadora
clássica. Foi também isso, mas foi algo mais e mais importante.
A celebrada alma portuguesa
pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada
pelo Mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial,
eram demasiado fracos para “impor”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela
seja hoje a fala de um país-continente como o Brasil ou língua oficial de
futuras grandes nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde
comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Malaca ou
a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos da sua existência, foi mais
benevolência dos deuses e obra do tempo que resultado de concertada política
cultural. Sob esta forma, um tal projecto seria mesmo anacrónico. Nenhum autor
português, nem estrangeiro, escreveu acerca da nossa acção uma obra como “a
conquista espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar
e lusitanizar.
O derramamento, a expansão,
a crioulização da nossa língua foram como a das nossas “conquistas”, obra
intermitente de obreiros de acaso e ganância (da terra e do céu) mais do que
premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados – que
terá sido a romanização do mundo antigo ou a francisação e anglicisação dos
impérios francês e britânico.
Quiseram também as
circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua
europeia, em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na
sua versão caseira, para tomar esse ritmo aberto, sensual, indolente, do
português do Brasil ou o tom nostálgico da de Cabo Verde.
A miragem imperial
dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só a língua do velho recanto
galaico-português ficou como elo essencial entre nós, como povo e como cultura,
e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se
compreendem entre as demais… Uma língua não tem outro sujeito que aqueles que a
falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objecto, mas
cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é,
na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.
Mas como duvidar que a longa
cadeia dos mais exemplares e ardentes dos seus guardiães, aqueles que tornaram
sensível o que nela há de imponderável, de Fernão Lopes a Gil Vicente, de
Camões a Vieira, de Castro Alves a Pessoa, de Machado de Assis a Guimarães
Rosa, ou de Baltazar Lopes a José Craveirinha, se apague ou se estiole? Houve
épocas de depressiva configuração em que não era possível pensar no futuro da
nossa plural e una fala portuguesa, sem alguma melancolia.
Hoje, não temos motivos para
imaginar que, em prazo humanamente concebível, o seu destino seja o dos famosos
versos da Tabacaria de que o tempo apagará o traço e a memória. A pluralizada
língua portuguesa tem o seu lugar entre as mais faladas no Mundo. Isso não
basta para que retiremos dessa constatação empírica um contentamento, no fundo,
sem substância. Se contentamento é permitido, só pode ser o que resulta de
imaginar que esse amplo manto de uma língua comum, referente de culturas afins
ou diversas, é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde
todos quantos os acasos da História aproximou, se comunicam e se reconhecem na
sua particularidade partilhada. Não seria pequeno milagre num Mundo que sonha
com a unidade sem alcançar outra coisa que o seu doloroso simulacro.
Eduardo
Lourenço, ensaísta, professor universitário e filósofo, usa da palavra durante
a cerimónia de entrega do Prémio Pessoa 2011, 14 de maio de 2012 em Lisboa.
Eduardo
Lourenço (São Pedro de Rio Seco, 1923) é um professor e filósofo português.
Entre 1953 e 1965, foi leitor de Cultura Portuguesa na Alemanha e em França.
Começou como maître assistant na Universidade de Nice, até que se tornou
jubilado pela mesma, em 1988. Em 1989, assumiu funções como conselheiro
cultural junto da Embaixada Portuguesa em Roma e, desde 1999,
ocupa o cargo de administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. Ganhou o Prémio
Pessoa em 2011.
1 comentários:
O Eduardo Lourenço, um dos mais esclarecidos intelectuais da nossa praça, extraordinariamente lúcido nos seus 90 anos já ultrapassados, explica-nos, para o bom entendedor, que a riqueza da língua portuguesa está na pluralidade dos seus cambiantes. Pena é a imbecilidade dos políticos não deixar perceber isso.
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