CRÓNICAS PARA FAZER
RIR, OU TALVEZ NÃO - I
(Leia só se tiver um fino sentido de
humor)
IDENTIDADE
- M.
Odette Pinheiro
Quando
os disparates são demasiado grandes, há duas maneiras de lidar com eles. Ou se
lança mão de todos os argumentos da lógica e do conhecimento, ou então… Eu
optei por esta segunda alternativa.
Parece que os inteligentes
piraram. Piraram quase todos. É que segundo o jornal “O Público” (e é verdade
porque eu vi o respectivo vídeo, para que as culpas não escorreguem para a
jornalista) essa gente inteligente gostaria que eu dissesse uma coisa que eu
não posso dizer. E não posso, por várias razões.
Começo pela primeira. Sou
bisneta de judeu, daqueles que andaram pelo mundo de terra em terra à procura
de um lugar onde fossem bem recebidos e onde o seu dinheirinho fosse apreciado
em vez de fazer a inveja dos menos industriosos. Os pais do meu bisavô chegaram
cá vindos de Marrocos, não sei se por se terem cansado de comer tâmaras, e
descobriram o seu oásis em Santo Antão, tendo até direito a campa no cemitério
judeu da Ponta do Sol (se quiserem verificar).
Nhô Abron (de Abraão, em
Português), meu bisavô, também lá enterrado, quando chegou à idade casadoira,
escolheu para sua mulher uma mulatinha bastante escura (como sabem em Cabo
Verde há-as de todas as tonalidades, é só escolher) e muito pobre (ai o amor!),
e gostou tanto dela que lhe fez nove filhos (e parece que nunca saltou a
cerca!): oito meninas e um rapaz que já vieram um pouco menos escurinhos que a
minha bisavó, mas não da cor do pai (beije, como a maior parte dos semitas).
Não que isso me interesse,
pois cresci sem noção de que a cor da pele tinha a ver com o que estava dentro.
Agora parece que se quer voltar ao muito antigamente já longínquo, e destrinçar
entre aqueles que são escurinhos, escurinhos, e clarinhos, clarinhos. Que
retrocesso! Eu nunca o fiz enquanto crescia. Nunca me olhei ao espelho para ver
se estava a ficar demasiado escura. E andava todos os dias no mar e ao sol, ali
na Escasinha, Prainha, ou Lajedo, na Ponta de Sol, dali esta paixão que tenho
pelo mar. Aprendi a nadar às costas do meu avô, ainda bem pequenina, e nunca
mais parei. E adorava o sol.
Gostava da minha bisavó
cor de chocolate bem escuro, do meu avô beije, dos irmãos do meu pai, uns
escuros e outros claros, e respeitei-os a todos como sendo iguais. Será que
precisamos que um Martim Luther King venha desafiar-nos: “Tenho um sonho, que
um dia os meus quatro filhos viverão numa nação em que não serão julgados pela
cor da sua pele mas pelo conteúdo do seu carácter?” Que Deus nos livre, mas
precisamos atalhar esta corrente daninha enquanto é tempo, se há gente a tentar
fazer a cabeça dos nossos jovens e a incentivá-los a outras coisas que não
sejam o aperfeiçoamento do seu carácter (desculpem esta nota de seriedade, mas
o problema é sério mesmo. São capazes de os convencer que ainda são escravos, e
teremos mais uma revolta dos escravos, só que já não será à moda antiga! Agora,
com boca bedjo e tudo).
Para voltar à genealogia e
para fazer bem as contas, como o sangue da minha bisavó já era misturado, minha
avó deve ter ficado com bastante menos de 50% de sangue vindo de África, 2 donde remotamente
haviam vindo uns antepassados. O meu avô era também de sangue misturado, pois o
pai era descendente (muito perto) dum português, o primeiro Vera-Cruz destas
ilhas. Mistura com mistura dá misturada! Lá saiu a minha mãe quase branca
(branca não, que é a cor da neve, novamente beije como o meu bisavô). É que a
hereditariedade tem destas coisas. O potencial beije estava lá escondido na avó
e no avô, e pumba, veio ao de cima na minha mãe: linda e de um cabelo que lhe
dava pelas costas (não me tomem isto como ofensa, mas gostos são gostos! Também
gosto do encaracoladinho, curto e com muito gel para ficar cheio de brilho e a
emoldurar a cabeça. É uma belezura, como diz o brasileiro! Do que já não gosto
tanto é desses prolongamentos artificiais, para fazer parecer o que não é. Como
os soutiens muito enchumaçados! Mas é só uma questão de gosto, e não tenho nada
contra o gosto de ninguém, e não penso que os gostos em si sejam sinais de
insegurança identitária.
Do que a
minha mãe teve sorte é de não ter sido menina e moça ao tempo da independência,
pois teria de andar a fugir das tesouras dos progressistas que estiveram a
correr atrás das meninas que tinham cabelos longos e lisos para lhos cortarem,
pois as “africanas” não têm cabelos assim. (Será que ali é que começaram os
disparates que lemos em “O Público”?)
De volta
ao meu pedigree (com o devido respeito pelos meus antepassados), do lado
do meu pai a coisa não é menos complicada pois há uma bisavó filha de inglês
(sim, súbdito de Sua Majestade). Aliás, sempre nos consideramos primos dela (ai
a alienação!) e até ficámos muito… desculpem que não se diz, “chateadinhos”,
quando não recebemos convite para o casamento do primo Charles e da Diana
(realmente a família já não é o que costumava ser!). E o Pinheiro é de um
Português que umas quatro ou cinco gerações atrás veio cá parar, gostou e
ficou. Ou foi obrigado a ficar. Que isto de se precisar de autorização de saída
não começou com a independência. Estes copiaram de outros a ideia luminosa.
Mas o que
acontece comigo não é excepcional. É o que acontece com grande parte dos
caboverdianos, mesmo os lá de Rincão, Ribeirão Manuel e lugares do Santiago
profundo, considerados de raça mais pura. Investiguem e vão ver a misturada que
encontram, a despeito de opiniões mais doutas de que não há muita mestiçagem
física em Cabo Verde! Donde vieram os Lubranos, Veigas, Monteiros, Pintos, Reis
Borges, Queridos, Mascarenhas, etc. etc. etc., todos com antepassados bem
identificados vindos da estranja, que lhes misturaram o puro-sangue africano?
Não me venham dizer que foram só escravos a quem mudaram o nome. E que por terem
a cor do chocolate muito escuro só têm genes vindos da mãe África, e não do
papá Europa.
É que os
genes que determinam a cor da pele são complicados. São poligenes, e por isso
aditivos e não funcionam segundo a lei de Mendel (lembram-se, o frade que gostava
de brincar com ervilhas, e entretinha-se a cruzá-las?). Quanto à cor da pele,
há dois pares de genes, Aa e Bb, em que os chamados alelos designados pelas
letras maiúsculas produzem grande quantidade de melanina, enquanto os de letra
minúscula produzem pouca quantidade. Adicionam-se, conforme os genes que cada
um tem. Assim, duas pessoas (até agora macho e fêmea) com dois pares médios
(AaBb) cruzando-se entre si podem dar todas as cambiantes: desde o AABB, pele
negra, isto é, chocolatão; até aabb, pele clara (chamada de branca). É por isso
que encontramos toda a diversidade em Cabo Verde. Filhos dum pai e duma mãe
mulatos médios, podem ser desde o branco ao negro, e é o que acontece em muitas
famílias. Se duvidarem, verifiquem na Internet. Nem tudo que aparece lá é verdade,
mas isto é de fonte segura.
(http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Genetica/genesnaoalelos4.php).
Do lado
“africano”, se tivéssemos nós tido os nossos Kunta Kintés (do livro de Alex
Halley e filme Roots), que, apesar de escravos, teimosamente tivessem
contado às suas filhas Kizzys donde eram e as glórias da família, e tivessem
insistido em que elas contassem aos seus filhos, e esses aos filhos dos filhos,
e assim por diante, talvez pudéssemos dizer exactamente de onde vieram as nossas
raízes africanas que se foram diluindo na caboverdianidade. Mas não aconteceu,
e só sabemos que remotamente alguns dos nossos antepassados vieram da costa
ocidental da mamã África. Com o tempo deixaram de ser o que eram e nós passámos
a ser quem e o que somos hoje. HOJE! Como ouvi num filme quando eu era ainda
criança, “o passado é uma porta fechada, e a chave está perdida”. O passado já
não me pertence, o futuro não sei se o terei. Só tenho o hoje. Carpe diem, como
escreveu Horácio. Agarra o presente!
Quanto à
segunda razão, e voltando aos nossos inteligentes, o que querem que eu responda
quando me perguntam o que eu sou? O que escolher nessa misturada, de avós,
bisavós, tetravós? A única resposta lógica e segura é que eu sou caboverdiana.
Agora, quando me perguntam onde é que isso fica, digo-lhes que fica a cerca de
400 milhas marítimas da Costa Ocidental da África, um pouco abaixo das Canárias
(se se considerar o Norte para cima, isto também pode ser contestado), mais ou
menos na linha horizontal (para quem sabe geografia, paralelo) do Senegal.
Maior precisão, só no laboratório! Assim toda a gente fica a saber onde ficam
estas ilhas onde tive a felicidade de nascer (até pareço o Lúcio na CAN!).
Agora,
definir-me a mim ou a minha identidade pelo nome de um continente é
absolutamente absurdo, pois ninguém mais no mundo o faz. O brasileiro diz que é
brasileiro e não sul-americano, o holandês diz que é holandês e não europeu, o
russo, a mesma coisa (doutro modo eles teriam um problema, com essa mania de
estarem em dois continentes ao mesmo tempo: teriam de dizer se eram russos
europeus ou russos asiáticos!).
Além
disso, definir a minha identidade por um continente é uma coisa muito
arriscada, pois um continente é uma coisa grandinha demais. Ficariam a pensar se
eu sou do Magrebe (e teria a obrigação de ser beije claro, e até de rezar de
rabo para o ar), se sou lá das terras de Haile Selassie, com as suas conotações
étnicas e religiosas específicas, se sou lá mais para o Sul e sofri o
apartheid, se … tantas possibilidades que é impossível mencioná-las todas!
Assim,
minha gente, por favor, contentem-se com o facto de nós, que nos consideramos
caboverdianos, dizermos que somos caboverdianos. Mas não vão falar mal de nós
para os jornais portugueses, que isso é muito feio! É pior que ter os
embaixadores estrangeiros a meter-se nos nossos assuntos! Se nos quiserem
chamar de complexados ou alienados, o problema é vosso, mas façam-no aqui
dentro. Entretanto, leiam Freud e vejam (melhor no sofá, com ajuda) se isso não
é o que ele chamou de projecção: atribuir a outrem aquilo com que não estamos
confortáveis dentro de nós mesmos. Traumas de infância? Ou então, é show!
Politicamente correcto!
2 comentários:
Como cheguei atraso aos comentários, transfiro para a continuação deste texto (mais à frente) a minha opinião.
Apenas para recordar, àcerca do regresso ao passado, o que eu ouvi no Eden-Park, num documentário comentado em brasileiro que terminava assim: "Como seria bom regressar ao passado...Porém, a porta que conduz ao passado está fechada e a chave, perdida!"
Claro, a gente não pode regressar ao passado, mas a nossa memória, sim!
Mantenha,
Zito
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