SINAIS INEQUÍVOCOS DE BOA GOVERNAÇÃO EXIGEM-SE

sábado, 5 de março de 2016
AFINAL QUEM NÃO É COMBATENTE PARA A INDEPENDÊNCIA?

 Lei n.º 6/74 de 19 de Julho do Conselho de Estado decreta e eu promulgo, para valer como lei constitucional, o seguinte:
ARTIGO 2.º
O reconhecimento do princípio da autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo 1.º da Constituição Política de 1933. (O “bold” é meu)
(Publicada no Suplemento do Diário do Governo (Português) nº 167 – I Série)

Não me parece haver qualquer dúvida de que o 25 d’Abril criou uma plêiade de “corajosos e generosos” nacionalistas. Com a PIDE totalmente desmantelada e a tropa portuguesa completamente desmobilizada não era difícil ser-se patriota e na sequência “combatente da liberdade da Pátria”. Mesmo assim não faltaram manifestações (felizmente poucas) de portuguesismo nem tão pouco vivas ao General Spínola e à Junta de Salvação Nacional que ele presidia. Neste quadro era muito mais difícil descobrir quem não era “combatente da liberdade da Pátria” do que quem o era.

Os cabo-verdianos do PAIGC, que se supunha estarem nas matas da Guiné-Bissau mas que se encontravam dispersos (desmobilizados?) pelos Estados Unidos, França, Bélgica, Holanda, Senegal, Suécia, Côte d’Ivoire entre outros países, foram chamados a “toque de caixa” a reunir para a definição de uma estratégia para tomar de assalto o poder em Cabo Verde, mas não sem antes prestar o “juramento” de um pacto de silêncio – uma espécie do mafioso “omertà”, no dizer de um consagrado analista político – quanto ao que se passou e se passava entre eles no âmbito da participação na luta armada na Guiné. Quantos cabo-verdianos estariam no teatro de guerra em Abril de 1974? E não venham com a treta de “missão de serviço”!.. Nestes casos as coincidências são, obviamente, muito suspeitas… Hoje são quase todos “comandantes” sem se saber ao certo o que é que estariam a comandar ou o que teriam realmente comandado e por quanto tempo.

O entusiasmo que o 25 d’Abril despertou para uma participação política era global no “espaço português”. Ninguém, absolutamente ninguém, ficou indiferente. E criou-se deste modo uma impressionante “fauna” de políticos, daqueles que J.M. Coetzee, prémio Nobel da Literatura 2003, se refere no seu livro “Verão” quando diz “que a política faz ressaltar o pior das pessoas” e acrescenta: “porque a política é demasiado conveniente e demasiado atraente como teatro no qual podemos representar as nossas emoções mais básicas. Emoções básicas, quer dizer ódio, rancor, despeito, inveja, desejo de sangue, etc.” (Fim de citação, o itálico é meu).

E foi assim que Cabo Verde foi varrido de lés a lés por uma onda sem precedentes de indivíduos sequiosos de manifestar as suas emoções básicas. O escassíssimo número de militantes do PAIGC residentes em Cabo Verde empertigou-se, ávido de mostrar o serviço que não tinha feito ou não tinha podido fazer. O efeito é o mesmo. De Portugal veio o reforço e com ele a capacidade mobilizadora dos jovens estudantes – manipuláveis e facilmente manipulados e muitos, subitamente transformados em “militantes na clandestinidade” – empolgados pela brilhante luta armada que o PAIGC tinha conduzido na Guiné e ébrios da propaganda do prestígio desse Partido do qual também queriam ser parte. A acrescer o indecoroso e vergonhoso apoio selectivo do MFA (Movimento das Forças Armadas), o panorama político das Ilhas modificou-se e a balança pendeu fortemente para o PAIGC que deu um salto quantitativo. O que ganhou particular relevo depois do MFA ter permitido o vergonhoso assalto à Radio Barlavento.

Face a lei atrás referida e publicada a menos de dois meses a seguir ao 25 d’Abril, – nem sequer tinham chegado a Cabo Verde os de Conacri – a luta já não era para a independência, tanto mais que a lei era apenas uma clarificação de uma outra (Lei 3/74 de 19 de Maio) – que na verdade nunca foi verdadeiramente “necessária” em Cabo Verde – mas para saber qual o partido que devia tomar o poder. Todos lutavam para a independência – o PAIGC, a UPICV e mesmo a UDC que não a punha de parte mas apenas, prudentemente, solicitava um compasso de espera. É neste envolvimento, constitucionalmente aberto (Lei 3/74) pelo Governo Português desde 19 de Maio de 1974 (menos de um mês depois do 25 de Abril) que se pergunta: Afinal quem não lutou para a Independência?

Ou lutar para a independência significa ter estado do lado do “Projecto de Unidade”, hoje gorado, do PAIGC? É esta a narrativa que se tem tentado passar, isto é, a legitimação daqueles que estiveram (alguns) no mato e que ao longo de quinze anos se sentiram os únicos que haviam lutado para a independência de Cabo Verde. Imagine-se!... Lutado militarmente nas matas da Guiné para a Independência de Cabo Verde. Não soa a absurdo? Não parece bizarro? Convenhamos!...

Nos primeiros quinze anos da independência cantaram loas à Guiné-Bissau e seus combatentes; condecoraram-se exclusivamente uns aos outros; distribuíram entre eles patentes militares como se neste País tivesse havido guerra e houvessem lutado; repartiram benesses entre si; autossatisfizeram-se plenamente numa autêntica orgia de onanismo político, exaltando as excelências do Partido Único. Era a consagração dos “melhores filhos desta terra” como ufanamente se vangloriavam.

Primeiro, o golpe de estado de 1980 na Guiné-Bissau provou que o seu (do PAIGC) Projecto de independência – adstrito à Unidade Guiné Cabo Verde – era um grande embuste para os cabo-verdianos, não obstante ter desempenhado o fulcral papel de os colocar, suster e consolidar no poder.

Depois, as eleições de 13 de Janeiro de 1991 mostraram à exaustão de que nem eram os “melhores filhos desta terra” nem era benquisto o seu governo. E com uma boa ajuda do MpD aprenderam a lição. E agiram em conformidade: Há que alargar o nosso núcleo com vista a legitimar a nossa narrativa, pensaram eles. E chamaram para o seu “núcleo de combatentes” todos aqueles que eles haviam desprezado que se deslumbraram e se sentiram incompreensivelmente “honrados” – são pouquíssimas as excepções – e se dispuseram vaidosa e oportunisticamente a subalternizar-se.

Lançando mão a uma iniciativa que também não lhes pertencera nos seus quinze folgados anos de Partido Único – distinguir cabo-verdianos fora do seu «núcleo de combatentes» – proliferaram e vulgarizaram as condecorações e estenderam-nas até a muitos daqueles a quem tinham chamado traidores, consolidando a estratégia. Também neste particular foram muito poucos os que não dobraram a cerviz para a passagem do colar ou para se deixarem encandear com o brilho da medalha.

Hoje, aparece por aí gente com arreganhos de combatente a reivindicar não se sabe bem o quê nem com que autoridade, numa tentativa de se “autenticar” aos olhos da população e se demarcar dos outros a quem querem expurgar.

Onde estariam alguns desses “moluscos” há 40, 30 ou mesmo menos anos atrás?

Pouco ou nada me interessaria se são ou não “combatentes para a independência” ou, como sói dizer-se: “estaria completamente nas tintas” não fosse o Estado chamado a contribuir.

Mas porquê só agora se descobriram ou foram alcandorados a “combatentes da liberdade da Pátria”? A miragem de arrecadar umas moedas não lhes deixou parar um segundo, um só sequer, para meditar sobre esta viragem brusca daqueles que durante tanto tempo – pelo menos 15 anos – os desprezaram, os diminuíram, os humilharam, os vilipendiaram assumindo-se e agindo como únicos (com poucas e incontornáveis excepções) combatentes para a independência deste País e agora os chamam para o seu seio.

Sim, combatentes para a independência porque a liberdade só veio a 13 de Janeiro de 1991.

Não tiveram um átimo de reflexão para ajuizar que os militantes da UPICV e da UDC também lutaram da mesma forma para a independência deste País. Não vêm que isto é sobretudo uma manobra de legitimação de uma narrativa que procura a credibilização perdida?

A ganância, a vaidade e o oportunismo não podem justificar tudo. O Homem tem a sua dignidade. É suposto ter coluna vertebral.

E... Meu Deus, alguns vendem-se por tão pouco!...

Toda esta corrida ao “ouro”, à Associação dos Combatentes que se transformou no “El Dorado” cabo-verdiano, se deve a mais uma extravagância – usando um eufemismo – do nosso (des)governo. E configura mais uma manifestação autista do nosso Primeiro-Ministro. A sua habitual ligeireza com que encara os assuntos de Estado e a inquestionável estratégia de bajulação aos chamados “históricos” do seu Partido para lhes ganhar confiança e apoio, vêm custando muito caro ao erário.

Surpreende como é que a ministra das Finanças, sempre tão racional, calculista (no sentido contabilístico) e cuidadosa com o erário, a braços com a enorme dívida pública e problemas de tesouraria, embarcou numa leviandade destas. E como é que os grandes “patriotas” ou “nacionalistas” bem conhecedores da fragilidade económica do País se acomodam e se rejubilam com um estatuto de configuração, para muitos, parasitária ou mesmo, “mercenária”?

Causa estranheza conceder vitaliciamente, aos de Conacri pensões escandalosas e obscenas – ao nível do vencimento do nosso Presidente da República – e com benesses várias, e a todos os outros (mais várias centenas) um subsídio de 75 contos mensais, quando o salário mínimo é de 11 contos mensais e o vencimento de um professor do ensino secundário (nível 07/A) é de 54 contos, apenas por ter participado no e ao lado do PAIGC para o assalto ao poder e (já agora!...) esquecendo-se de, pelo menos, os da UPICV que também lutavam para a independência do País e daqueles que foram “expatriados” (fortemente lesados pelo processo) impedidos de participar na independência do seu País apenas porque lhes fazia frente não embarcando no processo da Unidade, hoje, de tão triste e má-memória.

A eleição para a Constituinte – o culminar, o verdadeiro desfecho do “processo oficial da independência” – a 30 de Junho de 1975 foi totalmente dominada de forma fraudulenta (está no seu ADN) pelo PAIGC.

Admitamos que, por hipótese, – bastaria não ter havido batota – tivessem entrado (não necessariamente mas eventualmente maioritariamente) nessa Assembleia Constituinte grupos de cidadãos afectos a UPICV ou a UDC. Quem seriam os combatentes da Liberdade da Pátria?

O Estado não é, nem pode ser partidário. Não pode premiar – conceder subsídios ou pensões – os “militantes” de um partido em detrimento de todos os outros cidadãos nacionais. É o que a actual lei dos subsídios para combatentes sugere. E esta situação tem de ser corrigida.

 A haver subsídios (ou pensões) com o dinheiro dos contribuintes para os “combatentes”, estes devem ser avaliados e escrutinados por uma entidade independente do Estado eleita pela Assembleia Nacional por uma maioria qualificada (mais de dois terços), com critérios objectivos publicamente conhecidos e não por uma associação privada de génese marcadamente partidária e conduta manifestamente clientelista, com inscrições obtidas apenas através de uma simples declaração avalizadora. Isto não invalidaria o registo na Associação que continuaria a utilizar os seus critérios próprios para aceitação e inscrição dos seus membros. Numa palavra: a inscrição ou aceitação na “Associação dos Combatentes” não será motivo suficiente para que o Estado desembolse subsídios.

E tendo em conta que a participação numa luta com a natureza da que se vem tratando ao longo deste texto não é feita com motivações materialmente compensatórias mas apenas (supostamente) por entrega abnegada, por nobreza de espírito, por convicções pessoais, a lei devia visar apenas aqueles que, pela sua participação, tenham sido “prejudicados” encontrando-se, por este facto, em situação difícil, o que implica a ponderação de cada caso e nunca a generalização que se configura abusiva, virtualmente injusta e potencial fonte de oportunismo.

A generosidade gratuita e leviana do Primeiro-ministro com o dinheiro dos contribuintes deve ser motivo de profunda análise do próximo Governo, considerando que somos um país que, também ele, ainda vive de subsídios e de dádivas. É uma questão moral!

Nada é irreversível!... Mas para isto é preciso vontade e perspectiva política de boa governance que implica (além de ignorar clientelas partidárias e familiares) uma gestão séria, rigorosa, adequada, justa e útil do dinheiro dos contribuintes. Um próximo Governo deve dar sinais inequívocos desta postura.

A.   Ferreira

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...



A coerência do raciocínio e a precisão do verbo estão aqui de mãos dadas com a legitimidade moral e a clareza dos princípios na denúncia de uma situação que é absolutamente escandalosa. Seria já questionável se a “recompensa” se limitasse a uma distinção simbólica que contemplasse os tais “combatentes da liberdade” de última hora e de cujas façanhas ninguém ouvira antes falar. Mas quando está em causa o erário público, sustentado pelo contribuinte, ainda mais num país com as carências que se conhecem, brada verdadeiramente aos céus. E custa compreender a passividade da sociedade civil, que parece aceitar passivamente todas malfeitorias e desvarios, mostrando que afinal de contas continua tão amordaçada como nos tempos da PIDE e do Partido Único.
Como o Armindo Ferreira aqui diz, e com toda a propriedade, a seguir ao 25 de Abril surgiram heróis de pacotilha por todos os cantos. Heróis que em muitos casos não passavam de uns cobardolas ou oportunistas. Aconteceu em Cabo Verde como aconteceu em Portugal. Lembro-me de que um mês antes do 25 de Abril o Marcelo Caetano recebeu no estádio de Alvalade, num jogo entre o Sporting e o Benfica, uma estrondosa ovação dos 80 mil espectadores sentados nas bancadas. Quantos “revolucionários” não saíram dali para encher as ruas de Lisboa no 1º de Maio?
E em relação agora aos que andaram no mato na Guiné ou em Conacri. Quando é que o povo cabo-verdiano lhes conferiu mandato para tal? E, sendo assim, que legitimidade existe para serem ressarcidos do que quer que seja? O Armindo tem razão quando questiona se os antigos militantes da UPICV e da UCD também não teriam direito a esta recompensa por igualmente terem soltado a sua voz pela independência. A verdade é que, exceptuando os que saíram para a “Luta” no mato, todos os outros têm de ser medidos pela mesma bitola, a não ser que, como diz o Armindo, se trate de uma questão meramente partidária, como inquestionavelmente é.
Subscrevo inteiramente este texto e também acho que o próximo governo devia anular este vergonhoso processo. Creio que nem os países ricos se dão a luxos desta natureza. Por exemplo, nunca passou pela cabeça de ninguém que em Portugal fosse concedida uma pensão vitalícia aos opositores do regime de Salazar. E, segundo li, até uso de porte de arma e tratamento VIP são concedidos a alguns desses “melhores filhos da terra”.
Este texto, pela sua qualidade e importância, devia ter a maior difusão possível, visto que é um grande contributo para o esclarecimento da sociedade sobre uma matéria por demais polémica, isto só para fazer uso de um eufemismo.

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